Ruído na linha

Entrevista: Ricardo Molina, perito forense

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8 de junho de 2008, 9h50

Ricardo Molina - por SpaccaSpacca" data-GUID="ricardo_molina.jpeg">Trabalho é o que não falta para o perito em fonética forense Ricardo Molina. Com a multiplicação estratosférica das interceptações telefônicas nas investigações policiais, o especialista tem sido cada vez mais procurado pelos acusados para elaborar laudos sobre as gravações. E com a experiência de quem faz até 120 perícias por ano, Molina não tem dúvida em dizer que a qualidade das gravações produzidas pelas polícias do país é ruim o suficiente para invalidá-las como provas judiciais confiáveis. “Há pouca transparência e uma mistificação técnica”, afirma o perito em entrevista ao Consultor Jurídico. “Quando não é o conteúdo que é manipulado, é a qualidade técnica que é péssima.”

Pelas normas internacionais, não deveriam ser aceitas como provas judiciais gravações que no Brasil são tidas como verdades absolutas e incontestáveis. Assim, são aceitas como boas interceptações com interrupções da gravação feitas automaticamente pelo sistema de telefonia. Só, que explica o perito, interrupções absolutamente iguais a esta podem ser feitas para adulterar o conteúdo das conversas gravadas. Por isso, ensina Molina, de acordo com as normas internacionais da fonética forense, gravações com interrupção devem ser descartadas, mesmo que a interrupção seja resultado de falha técnica.

Não se trata apenas de uma questão técnica, diz Molina. Como o sistema de grampos é uma caixa preta, não é possível fazer uma auditagem independente sobre as gravações. “A responsabilidade quanto à autenticidade da gravação é da operadora de telefonia, que é uma empresa privada e sem fé pública”, diz. Molina conta que mesmo amparado por uma ordem judicial, não conseguiu conhecer o sistema de interceptação usado pela Polícia Federal.

Outro problema é o da interpretação. Como todo mundo está com medo de falar ao telefone, acaba conversando em código. E a polícia acaba fazendo uma interpretação livre de tudo o que se conversa pelo telefone. Assim, ao telefone, camisa vira dólar, farinha é droga e tênis é arma. Pode ser até que o código seja verdadeiro, mas como ensina o perito e prescrevem as convenções técnicas internacionais, não cabe ao perito que faz a transcrição da gravação autenticá-lo.

A disparidade de força entre a polícia e os acusados é outro problema apontando pelo perito. Ele conta que os envolvidos em operações polícias contam com apenas três dias para elaborar uma defesa prévia em cima de uma acusação baseada em até 15 mil conversas telefônicas. “Não dá nem tempo de ouvir o material”, afirma Molina, ao apontar outro defeito: os relatórios produzidos pela polícia são parciais. Eles são feitos para achar elementos acusatórios dos envolvidos.

A situação dos grampos fez o técnico empunhar a bandeira política por uma maior transparência na atuação da polícia. Convidado para se pronunciar na CPI das Interceptações Telefônicas Clandestinas, que acontece na Câmara dos Deputados, Molina destroçou os métodos empregados pela Polícia Federal. Aproveitou a tribuna para propor mudanças nos procedimentos como a criação de um banco de dados paralelo com as gravações e a inclusão de um lastro criptográfico para identificar vazadores.

Ricardo Molina de Figueiredo é professor da Faculdade de Medicina da Unicamp. Mas não é médico. Chegou a estudar engenharia, mas graduou em música. Só ao fazer mestrado, encontrou-se com a fonética forense, especialidade que lhe rendeu fama nacional.

Molina conta que quando tomou gosto pela área, o Brasil não dispunha de peritos na matéria. Tanto é que em 1991, a Polícia Federal o convocou para auditar uma fita em que o ministro do Trabalho no governo Collor, Antonio Rogério Magri, admitia ter recebido uma propina de US$ 30 mil. Seu nome caiu então no noticiário. “Foi um caso que quase me atropelou, porque eu não estava sequer preparado psicologicamente para lidar com uma coisa daquele porte”, afirma.

Desde então seu nome ficou ligado a casos tão diversos quanto retumbantes: a compra de votos para a reeleição de Fernando Henrique Cardoso; o acidente aéreo com os integrantes da banda Mamonas Assassinas; o pagamento de suborno no caso Waldomiro Diniz; as mortes de Celso Daniel e de Paulo César Farias; e os atentados do PCC em São Paulo. Quando a Unicamp fechou o laboratório de fonética forense, Molina abriu uma empresa privada para continuar a fazer as perícias.

Também participaram da entrevista os jornalistas Maurício Cardoso e Rodrigo Haidar.

ConJur — Há exagero nas interceptações telefônicas?

Ricardo Molina — O último caso que recebi, por exemplo, tinha dez DVDs com três mil gravações cada. Tudo de um caso só, que era a Operação Águas Profundas [Vinte e seis pessoas foram presss em 2007 acusados de fraudar licitações da Petrobras]. A polícia faz escuta por três anos e depois eles entregam o pacote na mão do indiciado, que vai ter três dias para a defesa prévia. Não dá nem tempo de ouvir o material. É um flagrante desrespeito. As armas não estão sendo iguais.


ConJur — A polícia tem agentes suficientes para escutar tudo isso?

Molina — Supõe-se que sim, porque as gravações são acompanhadas de relatórios. Só que a maioria dos textos é sintética. Eles não transcrevem a gravação. Quando fazem, colocam uma coisa que eles chamam de diálogo. É maluco: diálogo é uma sinopse.

ConJur — Como é o manuseio da polícia desse material?

Molina — Até a CPI dos Grampos está interessada nessa questão, porque ninguém sabe a a resposta, a não ser a própria polícia. Uma vez, uma juíza deferiu pedido para que eu fizesse a assistência técnica da degravação de interceptação em um caso que acompanho. A primeira vez que fui à sede da PF em Brasília, eles me deixaram três horas esperando em pé, de tanta raiva que estavam da ordem judicial. Tive de ir três vezes, com uma bateria de advogados, para conseguir entrar. “Como uma pessoa de fora vai entrar no ninho da PF?”, pensaram. Aquilo era uma violação para eles. E o que eles chamam de acompanhamento é colocar você em uma mesa para ler o relatório deles.

ConJur — Em que situação isso aconteceu?

Molina — É o caso que envolve um desembargador [ José Eduardo Carreira Alvim, do TRF da 2ª Região, acusado na Operação Hurricane]. Não vou discutir a questão, porque a acusação é ridícula. Eles inventaram uma história depois de dois anos e meio de gravações com base em um minuto de conversa. Se não falar alguma coisa que possa ser interpretado como comprometedora nesse tempo todo, a pessoa pode se candidatar a santo. No caso é pior, porque a conversa que incrimina o cliente não foi ele que falou. Foi uma conversa que uma pessoa do círculo dele teve com a esposa e alguém no fundo disse alguma coisa que parecia o incriminar. Quer dizer que se uma pessoa fala na rua que você recebeu um milhão, você pode ser processado? Fofoca é uma coisa, fato é outro. E depois ele é filmado preso, vira manchete na televisão.

ConJur — O procedimento de interceptação da polícia tem auditagem?

Molina — Não. E a polícia faz questão de dificultar o máximo que estranhos tenham acesso às informações. Mesmo no meu caso, que tinha uma autorização judicial para acompanhar o processamento das gravações, eles não deixaram. Sempre dizem que as gravações são autênticas, mas quando se questiona interrupções nas conversas, eles afirmam que são falhas sistêmicas.

ConJur — Dá para diferenciar as falhas sistêmicas das provocadas?

Molina — Desafio os peritos deles a irem na frente de um juiz com uma gravação que eu vou editar e dizer o que é falha sistêmica e o que não é. No sistema Nextel, é impossível diferenciar. A polícia diz que as gravações são autênticas porque é assim que recebem da operadora. A responsabilidade quanto à autenticidade da gravação não é mais da polícia, mas da companhia telefônica, que é uma empresa de capital privado e sem fé pública. Nada do que foi gravado pode servir como prova, porque é passível de manipulação. Uma vez escrevi em um laudo dizendo que é melhor consultar os engenheiros da Nextel. Evite intermediários.

ConJur — Mas isso só acontece no sistema usado pela Nextel?

Molina — Não, mas o Nextel tem a o problema de ser um canal de cada vez. Tecnicamente não se pode autenticar porque é uma descontinuidade. É diferente de um telefone que está ligado e sempre gravando um ruído de fundo, que funciona como uma espécie de cola entre as falas. Se isso é eliminado, não há coerência nas falas. O argumento da polícia é de que a conversa parece lógica.

ConJur — No cinema, os filmes são montados e parecem bastante lógicos.

Molina — As pessoas estão tão apavoradas de falar ao telefone que as conversas não parecem lógicas, porque todo mundo fala de forma cifrada. Inverteu a coisa. A pessoa que não deve nada começa a falar cifrado. Se por acaso cair no grampo, a polícia vai interpretar que tem culpa porque ele está falando cifrado.

ConJur — A operadora pode interferir no processo?

Molina — A relação da polícia com a operadora é uma coisa que não se sabe muito bem como funciona. As operadoras não gostam de falar. São muitos estágios do momento em que a ligação é feita até quando a conversa é gravada na PF. A operadora faz os grampos contra a sua vontade. O processo das operadoras precisaria ser transparente para a sociedade.

ConJur — E não é?

Molina — Infelizmente não. Talvez até para poder manipular. Uma ressalva importante: o que é autorizado é o grampo de um número telefônico. Mas, quando se está gravando aquele número, você grava todas as pessoas que usam aquele número, inclusive a família. Já vi casos com questões íntimas, que não tinha nada a ver com a investigação. Você está violando o direito de pessoas que não têm, em princípio, nada contra elas. Imagine, por exemplo, descobrir que o empresário tem uma amante? É uma gravação que pode desaparecer depois. Pode interessar para ser negociada.


ConJur — Não dá para saber como foi feita a gravação?

Molina — Não. E nem por quantas mãos passou. Uma coisa que a polícia não revela é o modus operandi da gravação. O argumento dela é que se fez comparação com a cópia original. Mas, se não tenho acesso a isso, como posso acreditar nessa história? A gravação é autêntica porque a Polícia Federal diz que é autêntica. Só quem não trabalha com informática que pode cair numa história dessas. São explicações mambembes, que não convencem. Uma das idéias que sugeri foi mandar as gravações para dois lugares. Um para a polícia e outro para um banco de dados que guardaria a cópia de segurança. Assim, seria possível checar o que passou pela operadora e foi para a polícia.

ConJur — Qual seria a metodologia para se dar alguma confiabilidade ao grampo?

Molina — É um dos assuntos que a CPI está discutindo: a criação de uma comissão técnica, que tente manter um sistema realmente à prova de fraude. Atualmente, a polícia afirma que as interrupções não são fraudulentas porque outras gravações têm os mesmos defeitos. É um silogismo ao contrário: uma gravação é boa porque é tão ruim quanto as outras. Se você compara um objeto com outro que não foi periciado, você está cometendo um crasso erro de lógica. No Nextel, sempre que se aperta e solta o botão, cria aquele intervalo que pode ser de 10 milisegundos ou de três segundos. Depende da velocidade dos interlocutores em acionar os botões. A Nextel, por uma questão de economia de transmissão, normaliza esses intervalos para 200 milisegundos. Para engenharia de comunicação é maravilhoso, mas para autenticar é um problema. As gravações ficam mais curtas do que elas aparecem na conta telefônica. Quem garante de que a conversa não foi editada? E o problema é que a maioria dos grampos é Nextel.

ConJur — Qual é o problema das interrupções?

Molina — Acontece o seguinte: tem gravações que param em momentos estranhos. Gravação com interrupção tem que ser desqualificada. Não interessa se foi falha sistêmica, porque não se pode ficar no terreno do hipotético. Quando pergunto aos peritos da PF se podem garantir que a gravação não foi montada, eles respondem “prejudicado”. Como “prejudicado”? A pergunta tem uma resposta simples: sim ou não. Eles não podem garantir e eles sabem disso.

ConJur — As partes têm acesso a todo o material gravado?

Molina — A lei garante que todo o material gravado seja disponibilizado, o que provoca as aberrações. A pessoa recebe 15 mil telefonemas para analisar em três dias. A obrigação da polícia deveria ser transcrever tudo, mas eles não fazem isso sob a alegação de que a quantidade de gravações é muito grande. Então que se grave menos.

ConJur — Há uma seleção do que é gravado e do que é transcrito?

Molina — Há uma dupla seleção. Primeiro, eles selecionam as gravações que acham que são do interesse deles. É um critério estranho, pois se tem coisa que inocenta o acusado, isso não é selecionado. A defesa é que tem que se virar para procurar. Depois tem a seleção da seleção. É quando pegam os melhores momentos e interpretam. A pessoa fala: “E aquele negócio, tudo bem?”. No relatório sai que ele está se referindo àquela juíza que eles estão tentando comprar. Pode até ser que seja isso, mas não se pode deduzir. Se a investigação levou a isso, então não precisa de gravação. Agora, se a prova é a gravação, a coisa está mal contada. Se o cara está falando cifrado e não dá para entender, procure outro jeito. Existe até um dicionário deles: bola vira cocaína, camisa vira dólar, tênis vira arma.

ConJur — Quem faz os relatórios?

Molina — Em depoimento ao Ministério Público, um camarada da polícia mostra bem como a situação funciona. Primeiro, ele diz que é um mero escrivão, que não tem formação nenhuma na área de fonética, mas que foi chamado para fazer transcrições. No mundo todo esse trabalho é feito por gente treinada. Uma coisa que vai provocar efeitos sérios na vida de uma pessoa não pode ser jogada na mão de um cara que se diz incapaz de fazer aquilo. Depois, esse escrivão foi perguntado sobre o critério de seleção. Ele afirma que é orientado pelo seu superior a selecionar os trechos pertinentes e relevantes para a investigação. Ou seja, aqueles que apontam para a culpabilidade. O limite entre edição e montagem é tênue, mas, na Justiça, não pode ter nem uma coisa nem outra. Se é prova, tem que estar íntegra.

ConJur — O perito pode interpretar o que foi dito?

Molina — Não. A Associação Internacional de Fonética Forense e Acústica, que é a organização mais respeitada nessa área tem um código de procedimentos. Um dos itens desse código diz que o perito em momento algum deve fazer juízo de valor quanto à sinceridade do autor da conversa que está sendo transcrita. Quando se interpreta, está se colocando em dúvida a sinceridade de quem fala. Se a pessoa fala camisa, você transcreve camisa. Se diz que camisa significa “dólar”, o perito está violando a norma.


ConJur — Tem uma portaria da PF dizendo que só precisa ser transcrito aquilo que comprova a materialidade do crime.

Molina — Pois é, mas aí quem decide o que deve ser transcrito? Um escrivão. Fico pensando porque alguns grandes nomes, próximos do poder, nunca aparecem nas gravações. Nomes que são bem conhecidos e que a gente sabe que estão envolvidos em consultorias estranhas. Quando o irmão do Lula foi gravado e a gravação foi remetida para a mídia, apareceu apenas um trecho. É curioso: eles nunca gravam pouca coisa, mas só sai na imprensa uma pequena parte. A impressão que fica é que foi uma mostra grátis. Fico imaginando qual seria a reação do escrivão se por acaso encontra uma gravação bombástica? Ele mostraria para o chefe ou tentaria negociar diretamente com a fonte?

ConJur — Há informações de que existiria um mercado muito próspero de compra e venda de gravações.

Molina — Essa é outra grande preocupação da CPI. Há uma forma técnica de resolver a questão do vazamento. É um sistema que dá, para cada gravação, um número criptografado. Se vazar, sabe-se quem foi. O problema é que quando a gravação chega na imprensa, a pessoa é atropelada e julgada sumariamente. Não é raro a mídia colocar no ar coisas que sequer existem. Teve o caso do desembargador [Carreira Alvim]. Por causa das tais falhas do sistema, a frase que apareceu na TV Globo é cortada, não tem na gravação. Ele não fala: “A minha parte em dinheiro”. Mas como estão hipnotizadas, as pessoas não prestam atenção. Se a Globo falou, é verdade. Outro exemplo mais grosseiro foi o caso do assessor do ex-ministro Silas Rondeau, Ivo Almeida Costa, para quem eu fiz um laudo. A Globo diz que uma funcionária da Gautama levava R$ 100 mil em um envelope pardo que estava dentro da bolsa. No laudo, eu disse que os caras têm visão de raios-X. Como eles sabiam o que tinha dentro? Aí, quando a mulher sai do gabinete o envelope é ofício branco. Além disso, o envelope era muito pequeno para caber R$ 100 mil. Só se fosse cheque, porque dinheiro vivo não podia ser. São, no mínimo, mil notas de R$ 100.

ConJur — Seria uma inovação tremenda pagar propina em cheque.

Molina — E em cheque nominal. Seria o cúmulo da estupidez humana receber R$ 100 mil dentro do seu gabinete e depois acompanhar o cara até o elevador sabendo que o ministério está cheio de câmeras. Depois do laudo, a Globo fez mea culpa e reconheceu o erro. Talvez para amenizar os custos do processo que eles vão tomar. Mas no final eles falam que foi a PF quem repassou as notícias. A polícia fala uma abobrinha qualquer e boto no ar assinando embaixo? Esse tripé Polícia Federal, Rede Globo e Ministério Público tem funcionado muito bem. A Polícia Federal faz uma prova ruim, a Globo melhora a prova botando no ar e o Ministério Público pega e age. O promotor já chega no teu laboratório junto com o carro da Globo. A coisa é bem azeitada.

ConJur — Como é o mercado dos grampos ilegais?

Molina — Qualquer detetive particular, já tem um preço tabelado. Grampear telefone fixo é barato: coisa de R$ 300 por dia. E a pessoa dá o relatório com a gravação da semana. Existem vários tipos de grampos. Desde aquele rudimentar, que é abrir a caixa do telefone e botar dois fios desviando para outro ou até pagar alguém da operadora para fazer isso para você. Com os celulares é mais complicado, por isso que é mais caro. Já a polícia faz tudo direto da fonte e a operadora não fica com o backup disso.

ConJur — Por que ela não pode monitorar as conversas dos seus clientes.

Molina — Não pode. Mas, a Nextel, por exemplo, faz alterações na gravação. São alterações que teoricamente seriam feitas pelo sistema. O programa normaliza os intervalos de silêncios. E se alguém da Nextel resolve mexer? Se eles quiserem, é claro que eles podem. No entanto, para a operadora, ficar grampeando é também uma coisa politicamente ruim por estar entregando gravações dos seus clientes.

ConJur — O senhor já teve acesso a gravações ilegais?

Molina — Sim. E elas são tecnicamente muito boas. Não parece tão complicado fazer isso.

ConJur — Dá para fazer boa prova com grampo?

Molina — às vezes dá. Para alguns clientes, falo que não dá para desqualificar a gravação porque ela está boa com começo, meio e fim. O departamento de milagre está em instalação. Como qualquer advogado decente, digo: “sinto muito, mas você vai para a cadeia. O que eu posso fazer é tentar reduzir a tua pena”. Agora, no mínimo, metade das gravações não é boa. Por vários motivos: ou porque não tem conteúdo ou por problemas insolúveis.

ConJur — Tem gravação boa que pelas normas internacionais não seria aceita?

Molina — Sim. Lá fora eles são bem rigorosos. São normas estabelecidas por organizações idôneas que funcionam quase como leis. Elas dizem, por exemplo, que o perito deve partir do princípio que a gravação é ruim e manipulada. Aqui se faz o contrário. A polícia parte do princípio de que se ela fez, a prova é boa. Além disso, há a questão, que eu acho que é mais grave: a duração do grampo. Isso é um negócio que não pode continuar.


ConJur — A lei estabelece quinze dias.

Molina — Eles estão entendendo que é eterno. Tem casos, por exemplo, de autorização de grampo passada por e-mail, que é um negócio complicado. A polícia diz que não dava tempo e que precisava grampear. Se há urgência, significa que o cara já estava grampeado. Uma autorização de grampo com urgência é suspeitíssima.

ConJur — Afinal, o que é o Guardião?

Molina — O Guardião é um sistema para organizar as ligações. Quem grampeia é a operadora. O Guardião cria arquivos e tabelas como informações sobre dia, hora, número alvo, número de origem. E ele estabelece conexões: se um número ligou para outro, ele começa a grampear este. É claro que a PF nunca vai admitir. Mas, a gente tem algumas informações que indicam que sim.

ConJur — A CPI pode mudar a legislação de modo de fazer com que a escuta telefônica se torne uma prova confiável?

Molina — Há essa vontade política da CPI, mas infelizmente ela não é muito popular. No imaginário da população perpassa a idéia de que a PF é uma instituição fantástica. Os jornais também não dão apoio à CPI porque eles precisam dessas noticias. Não é a imprensa que vai colocar a PF em xeque. Dentro do Congresso é outra coisa, o ânimo é para refrear. Inclusive porque muitos parlamentares estão sendo grampeados.

ConJur — Além da legislação, o que tem que mudar?

Molina — O sistema tecnológico é muito ruim. Se fosse melhor, não teria tantas interrupções. Parece que é cômodo. Tenho certeza que algumas gravações são manipuladas, porque não é possível acontecer coisas assim com tanta freqüência e não consertarem esse negócio. Alguma coisa ocorre entre a captação da operadora e a transmissão para a PF. É ali que acontecem os problemas técnicos que criam descontinuidades. Três engenheiros de telecomunicações resolvem isso, fácil.

ConJur — E por que não consertam?

Molina — Propus na CPI um grupo de estudos que teria acesso ao funcionamento do sistema. Não vou ficar estudando o negócio na teoria. Quero ir à operadora para ver como é que as coisas são feitas. Se as gravações forem boas, as ruins serão desqualificadas. Porque do jeito que está, qualifica tudo pelo defeito. Está havendo pouca transparência e uma mistificação técnica. As provas são indícios indiretos que independem da credibilidade da instituição. Um dos papas da fonética forense, o professor Harry Hollien, que dá aula na Florida, tem um texto clássico que se chama A acústica do crime. Nele, ele fala que o perito não deve ter seu julgamento afetado pela credibilidade da agência que produziu a gravação. E certamente, ele está falando de FBI e CIA. A gente tem que fazer a mesma coisa.

ConJur — A PF formou recentemente uma turma de peritos de fonética forense.

Molina — Um grande equivoco da PF é ter um quadro de peritos quase todo de engenheiros. Eles deveriam colocar mais lingüistas para trabalhar junto, porque estamos falando de linguagem, não de um som qualquer. Há vários níveis de organização, articulação. O som da fala não é como o de um instrumento. Ele vincula informação. É um fenômeno cultural, não é apenas físico. O engenheiro tem dificuldade de lidar com fenômenos sócio-culturais. São reducionistas por natureza.

ConJur — O tom da voz muda o significa do que é dito?

Molina — Nunca se consegue produzir duas frases da mesma forma. Um equívoco que cometem é pensar que a voz é uma impressão digital. Tem gente que faz exames na base do visual: este espectrograma é parecido com o outro, portanto deve ser a mesma pessoa. A sonoridade não é visual. É preciso interpretar o gráfico. Como o número de gravações é grande, tem muita gente dizendo por aí que faz laudos. Mas, têm resultados totalmente insustentáveis.

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