Inteligência da Constituição

Sobre o início da contagem de prazo para defesa prévia

Autor

  • Luís Guilherme Vieira

    é advogado e cofundador e conselheiro do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) e da Sacerj (Associação dos Advogados Criminais do Estado do Rio de Janeiro).

6 de junho de 2008, 14h15

Entre as inovações introduzidas pela Lei 10.792/03 (inclusive o odiento e inconstitucional Regime Disciplinar Diferenciado, ou, no verbo de René Ariel Dotti, o regime da desesperança), está o contraditório no interrogatório do réu que, antes tido como exclusividade do juiz, passou a ser um verdadeiro ato defensivo (reconhece-se que significativas doutrina e jurisprudência já o rotulavam de defensivo, mas ele era meio-defensivo, poder-se-ia dizer), permitindo, às partes, formular, aos interrogandos as perguntas consideradas imprescindíveis ao pleno exercício da ampla defesa (art. 188, CPP).

Com efeito, quando o citado artigo, com a nova redação que lhe foi emprestada, se refere às partes, é inconteste que o legislador ordinário tinha em mente todas as partes do processo, sem exceção, e não apenas, como vêm pensando alguns (poucos) membros do Judiciário e do parquet, à defesa técnica do réu que está sendo submetido a interrogatório e ao presentante do Ministério Público, motivo pelo qual todos devem ser intimados a comparecer à audiência, sob pena de nulidade (art. 564, inc. IV, CPP), conforme ressalta Roberto Delmanto1.

Deu-se, portanto, ao interrogatório uma interpretação em consonância com a Constituição da República e, claro está, com a preservação das garantias nela previstas, com especial destaque para os princípios que norteiam o contraditório, a ampla defesa e o devido processo penal.

Neste fio de pensamento, tem-se que o interrogatório judicial do réu está a merecer redobrada atenção por parte de todos, porque o rumo do processo criminal pode vir a ser comprometido de forma indelével com as perguntas formuladas pelo juiz e pelo órgão acusador, público ou privado, e principalmente com as eventuais respostas deste ou daquele interrogando ouvido a posteriori. Tais interrogatórios podem refletir, direta ou indiretamente, na defesa daqueles que tiverem, pouco importando a razão — pode até ser circunstancial, como se vê com freqüência na messe forense, por ter constado, aleatoriamente, na denúncia, como o último dos denunciados —, sido inquiridos em primeiro lugar.

Em processos criminais nos quais múltiplos são os acusados, com interrogatórios designados para datas as mais diversas e fracionados, única e exclusivamente, em homenagem à boa e regular marcha processual, para que ocorram em dias e horários diferentes (isto sem falar naqueles que são ouvidos por intermédio de cartas precatórias ou rogatórias), a defesa prévia, peça das mais importantes para a defesa, ganhou contorno de relevo ímpar porque um denunciado inquirido em segundo lugar poderá trazer, em sua fala, fatos que podem influir, sobremodo, nas diligências ou no rol de testemunhas daqueloutros que foram ouvidos em primeiro, principalmente se se pensar que esta é a única oportunidade de se postular a produção dessas provas

Em resumo, o réu que for inquirido, pelo juízo, num primeiro instante, já terá ofertado suas alegações preliminares e, quando se considera, como vem sendo considerado, que o prazo para a sua defesa prévia passa a viger nos três dias subseqüentes ao seu interrogatório (art. 395, do CPP), sua defesa será prejudicada de forma indelével, porque não poderá, já que preclusa a oportunidade, arrolar esta ou aquela testemunha, requerer esta ou aquela diligência, apresentar esta ou aquela exceção que teriam, ao seu descortínio, o condão de clarificar/extirpar determinados pontos controvertidos que somente vieram ter aos autos por intermédio do termo de interrogatório de co-réu ou partícipe inquirido em data posterior.2 Ademais, não se deve desconsiderar, também, a malfadada (e também inconstitucional) delação premiada (ou, como prefere, com acerto, José Carlos Dias, extorsão premiada), muito em voga em tempos que, por vezes, lembram um Estado não-democrático de direito.

Decerto, os que por último forem interrogados e, conseqüentemente, por último oferecerem suas alegações preliminares terão uma inquestionável vantagem sobre aqueles que já as tiverem apresentado, no que se revelaria, como se revela, uma gritante afronta ao princípio constitucional da isonomia (art. 5°, caput, CR), mola constitucional que garante, aos atores de processo, o princípio que se convencionou denominar paridade de armas.

A forma de afastar esta balda, à luz da carta cidadã e da novel legislação extravagante, é a determinação de que os prazos para oferecimento das defesas prévias somente passem a viger após a realização do último interrogatório judicial (lembre-se que o processo, enquanto não esgotada esta etapa, estará paralisado; portanto, qualquer prejuízo às partes e ao regular andamento do processo não advirá com a adoção desta postura garantista), no que teria, in casu, perfeita cabida à aplicação analógica (art. 3º do CPP) do disposto no artigo 241, inciso III, do CPC, na redação que lhe foi dada pela Lei 8.710/1993, a qual dispõe, em síntese apertada, que, no caso de processo com multiplicidade de réus, o prazo para contestação inicia-se após a juntada do último aviso de recebimento ou mandado citatório cumprido.

Mutatis mutandis, em respeito às garantias fundamentais e ao espírito do legislador ordinário, o prazo para a apresentação das preliminares alegações, em tempos hodiernos, há de começar a fluir, tão-só, após a realização do interrogatório do último réu — se este tiver sido inquirido por carta precatória ou por carta rogatória, somente após a juntada da última deprecata —, devendo o juiz, depois disto, intimar as partes, para que tenham ciência de que devem, querendo, praticar ato processual de relevo inquestionável.

Notas de rodapé

1 — DELMANTO, Roberto. BIBCCRIM, ano 15, n. 183, p. 19, fevereiro, 2008;

2 — Maior o número de acusados, maior a necessidade de se apresentar a defesa prévia após o derradeiro interrogatório, v.g., Luigi Ferraioli (Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 661), que, ao tratar do direito penal de exceção, pontua a problemática dos maxiprocessos, do gigantismo processual e sua capacidade de neutralizar possibilidades materiais de defesa.

Artigo originalmente publicado no Boletim IBCCrim 187, de junho de 2008

Autores

  • é advogado criminal (RJ e BSB) e diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa. Foi secretário-geral do Instituto dos Advogados Brasileiros, onde presidiu, também, a Comissão Permanente de Defesa do Estado Democrático de Direito.

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