Estudo de caso

A inaplicabilidade automática da Súmula 150 do STJ

Autor

  • Guilherme Veiga Chaves

    é especialista em Direito Constitucional Internacional pela Universitá di Pisa / UNIPI Itália mestre em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco advogado sócio do escritório Gamborgi Bruno & Camisão.

5 de junho de 2008, 0h01

Diversos são os processos que tramitam perante a Justiça Estadual em que há manifestação de interesse da União, suas autarquias ou empresas públicas. Nesses casos os juízes estaduais determinam a remessa dos autos à Justiça Federal para que seja apreciado tal pedido de ingresso, aplicando automaticamente o enunciado da súmula 150 do STJ, editada no dia 7 de fevereiro de1996, que assim dispõe:

Súmula 150 do STJ: Compete à Justiça Federal decidir sobre a existência de interesse jurídico que justifique a presença, no processo, da União, suas autarquias ou empresas públicas.

Nesses 12 anos o Superior Tribunal de Justiça mudou de posicionamento. E uma lei foi editada criando nova modalidade de intervenção. Hoje há casos de inaplicabilidade automática da súmula 150 do STJ. Neste trabalho duas hipóteses serão abordadas: a) quando já há reiterada jurisprudência do STJ afastando o alegado interesse do ente federa; b) quando o pedido de intervenção do ente federal é fundamentado na Lei 9.469/97 e não há recurso por parte do interveniente.

A inaplicabilidade da súmula 150 do STJ quando o STJ firmou jurisprudência proclamando ausência de interesse do ente federal.

A súmula 150 do STJ determina que compete à Justiça Federal decidir sobre a existência de interesse jurídico que justifique a presença, no processo, da União, suas autarquias ou empresas públicas. Desta forma, havendo intervenção aplica-se automaticamente a súmula.

Em alguns tipos de demanda há intervenção sistemática de ente federal alegando suposto interesse na ação e requerendo o deslocamento da competência, mesmo tendo a Justiça Federal declarado a inexistência de interesse, reiteradas vezes, com decisões confirmadas pelo TRF e STJ. Outras vezes nesses processos os juízes federais suscitavam o conflito negativo de competência e o STJ ora apreciava a suscitação e declarava a competência da Justiça Estadual e ora não conhecida o conflito porque cabia apenas a devolução dos autos à Justiça Comum e não o conflito, nos termos da súmula 224 do STJ.

Privilegiando os princípios da economia, da celeridade e razoabilidade e plausibilidade, o Superior Tribunal de Justiça firmou novo posicionamento declarando a inaplicabilidade da súmula 150 quando a própria Corte já firmou jurisprudência declarando a ausência do alegado interesse do ente federal, podendo o juiz estadual apreciar a plausibilidade e a razoabilidade do pedido interventivo e rejeitá-lo. Isso tem contribuído para evitar maior tardança na prestação jurisdicional.

Neste sentido cita-se decisão da lavra do ministro Humberto Gomes de Barros, no julgamento do RgAG 705.905-SP, interposto pela União que defendia a tese que o seu pedido de interesse não poderia ter sido apreciado pela Justiça Estadual, nos termos da súmula 150 do STJ:

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL. USUCAPIÃO. ANTIGO ALDEAMENTO INDÍGENA. INTERESSE DA UNIÃO. AUSÊNCIA. SÚMULA 150. INAPLICÁVEL.

— Tendo em vista que a ausência de interesse processual da União já foi proclamada em precedentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, inaplicável a Súmula 150. Precedentes.

No mesmo sentido:

REsp. 263.994-BARROS MONTEIRO REsp. 263.995-SÁLVIO;REsp. 185.976/PASSARINHO, Rel. p/ acórdão Sálvio de Figueiredo Teixeira; REsp. 121.827-PASSARINHO, Rel. p/ acórdão Sálvio de Figueiredo Teixeira; REsp. 195.266/ROSADO; REsp. 193.395/ROSADO; REsp. 195.327/ROSADO; entre outros.

Pesquisando jurisprudência dos Tribunais identificam-se dois tipos de ações em que o pedido de intervenção de ente federal perante a Justiça Estadual já foram afastados por reiterados precedentes dos TRFs e STJ.

O primeiro exemplo é o alegado interesse de União nas ações de usucapião de imóveis compreendidos em antigos aldeamentos indígenas. Alguns dos precedentes do STJ que declararam a ausência de interesse da União são: AgRg no Ag 730279 / SP; STJ; RESP 141134-SP; RESP 185976-SP; RESP 132602-SP; e CC 18604-SP.

O segundo exemplo é o suposto interesse da Caixa Econômica Federal em querer figurar no pólo passivo das demandas, nas ações em que se discute com exclusividade o seguro habitacional adjeto do mútuo hipotecário. Os precedentes do STJ que declararam a ausência de interesse são ainda mais números do que o caso acima:

“Esta instância superior já se manifestou, de forma definitiva, sobre a competência da Justiça Estadual nas ações em que se discute a respeito do contrato de seguro adjecto ao mútuo hipotecário”. (REsp 973.729 – SC/ Humberto Gomes de Barros, j. 04.07.2007)

“Agravo de Instrumento. Seguro Obrigatório. Contrato de Mútuo Habitacional. Competência da Justiça Estadual. Litisconsorte Necessário. CEF. Inexistência de interesse. Cobertura Securitária. Pagamento em pecúnia. Súmula 5 e 7 do STJ. Recurso improvido”. (STJ. AI 769.541-PR/ Hélio Quaglia Barbosa. DJ 01.02.2007).

No mesmo sentido:

AgRg no REsp 811.069/GOMES DE BARROS; CC91.071/PARGENDLER; CC 91.081/PARGENDLER; CC91.068/GONÇALVES; CC 91.104/GONÇALVES; CC91.086/GONÇALVES; CC 65.946/GOMES DE BARROS; CC 91.090/PARGENDLER; CC 91.069/GONÇALVES; CC46.309/GONÇALVES; CC 23.967/PARGENDLER; CC91.075/QUAGLIA BARBOSA; EDcl no CC85.443/ANDRIGHI; Ag no REsp 811.069/GOMES DE BARROS; CC 89.690/QUAGLIA BARBOSA; CC91.085/UYEDA; REsp 713.373/CASTRO FILHO; CC91.092/ UYEDA; Ag 930.314/GOMES DE BARROS; CC21.412/PEREIRA; CC 18.198/ROSADO DE AGUIAR; CC91.088/PASSARINHO JUNIOR; CC 91.074/ GONÇALVES; Ag 769.541/QUAGLIA BARBOSA, dentre outros.

Em razão dos precedentes acima que declararam a ausência de interesse da Caixa Econômica Federal nas ações de seguro habitacional cujo pedido é para recuperação estrutural do imóvel que ameaça desabar, os Tribunais Estaduais têm apreciado e afastado o pedido de intervenção da empresa pública, sem remeter os autos à Justiça Federal para decidir questão já superada, fundamentando na inaplicabilidade da súmula 150/STJ ao caso.

Neste sentido:

Agravo de instrumento. Ação ordinária de responsabilidade obrigacional securitária. Intervenção da Caixa Econômica Federal como litisconsorte passivo necessário. Exegese do artigo 47 do Códex Instrumental. Desnecessidade de remessa dos autos à justiça federal. Não-aplicação da súmula 150 do STJ. Conflito de natureza privada. Precedentes do STJ, do TRF da 4ª região e do TJSC. Competência da justiça estadual. Decisão vergastada reformada. Recurso provido. (TJSC; AI 2007.036119-8; Criciúma; Segunda Câmara de Direito Civil; Rel. Des. José Mazoni Ferreira; DJSC 06/05/2008; Pág. 83).

Segundo firme compreensão do Superior Tribunal de Justiça, coonestada também pela jurisprudência do tribunal federal da 4ª região, compete à Justiça Estadual processar e julgar as demandas relativas à cobertura securitária de imóvel adquirido com recursos do sistema financeiro de habitação, não se revelando presente, nesse tipo de controvérsia, qualquer interesse jurídico do agente financeiro (CEF) em ordem a lhe assegurar a sua intervenção facultativa ou compulsória na lide" (TJ-SC. AI n. 2007.049006-6, de Lages, Rel. Des. Newton Janke, j. 14-2-2008).

EMENTA. RECURSO DE AGRAVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO — IMPROVIMENTO MONOCRÁTICO PELO RELATOR. APLICAÇÃO DO DISPOSTO NO § 1º DO ARTIGO 557 DO CPC. SEGURO HABITACIONAL. INTERESSE DA CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. NÃO DEMONSTRAÇÃO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. INAPLICABILIDADE DA SÚMULA 150 DO STJ. RECURSO IMPROVIDO. DECISÃO UNÂNIME. O simples teor da Súmula 150 do Superior Tribunal de Justiça não impede que o juiz estadual afaste a alegação de interesse da União, quando sem fundamentação razoável, do ponto de vista jurídico, ou por absoluta impossibilidade física, como tem sido reconhecido, em casos tais, na instância ordinária. (Recurso de Agravo 146920-5/01; Relator Des. Jovaldo Nunes Gomes; 5ª Câmara Cível; p. DOE em 15.03.2007).

O posicionamento do ministro Humerto Gomes de Barros, abarcando todos os fundamentos dos votos anteriores, concretizou ser inaplicável a súmula 150/STJ, quando ausência de interesse de ente federal já foi proclamada em precedentes do STJ, podendo o Juiz Estadual afastar a intervenção, privilegiando os princípios da economia, da celeridade, e da razoável duração de um processo.

Conclui-se que o Superior Tribunal de Justiça firmou novo posicionamento. É inaplicável a súmula 150/STJ, sendo desnecessária a remessa dos autos à Justiça Federal, mesmo havendo nos autos manifestação de interesse formulada por ente federal, podendo o Juiz Estadual apreciar o pedido, quando a Corte Superior proclamou em precedentes a ausência de interesse.

A intervenção anômala prevista na Lei 9.469/97

No dia 10 de julho de1997, foi editada a Lei 9.469/97, que dentre outras coisas dispõe sobre a intervenção da União nas causas em que figurarem, como autores ou réus, entes da administração indireta.

A parte da lei que trata da intervenção está prevista no artigo 5º, da seguinte maneira:

Artigo 5º A União poderá intervir nas causas em que figurarem, como autoras ou rés, autarquias, fundações públicas, sociedades de economia mista e empresas públicas federais.

Parágrafo único. As pessoas jurídicas de direito público poderão, nas causas cuja decisão possa ter reflexos, ainda que indiretos, de natureza econômica, intervir, independentemente da demonstração de interesse jurídico, para esclarecer questões de fato e de direito, podendo juntar documentos e memoriais reputados úteis ao exame da matéria e, se for o caso, recorrer, hipótese em que, para fins de deslocamento de competência, serão consideradas partes.

O caput do artigo 5º, da Lei 9.469/97 trata, exclusivamente, de intervenção da União e apenas nos processos em que for autor ou réu autarquias, fundações públicas, sociedades de economia mista e empresas públicas federais.

Tornando claro. Só quem poderia intervir nas ações seria a União, sendo vedada a intervenção das demais pessoas jurídicas de direito público (autarquias, fundações públicas, sociedades de economia mista e empresas públicas). Haveria ainda a vedação de intervenção quando as partes fossem pessoas jurídicas de direito privado ou pessoas jurídicas de direito público estaduais ou municipais.

Ocorre que o parágrafo único, ao invés de completar o sentido ou abrir exceções à norma contemplada no caput do artigo 5º da Lei 9.469/97, contrariando técnica legislativa, amplia sobremaneira a possibilidade de intervenção para todas as pessoas jurídicas de direito público e em qualquer processo, independentemente de quem for parte, bastando que a decisão possa ter reflexos, ainda que indiretos, de natureza econômica. E, mais, a norma não esclarece se o Juiz Estadual pode apreciar a existência ou não do alegado reflexo econômico.

Na prática, hoje, qualquer pessoa jurídica de direito público pode intervir em toda e qualquer demanda mesmo que estritamente privada, alegando interesse econômico sem necessidade de provar esta repercussão, porque o juiz estadual não pode apreciar interesse de ente federal.

Leonardo José Carneiro da Cunha, na obra “Aspectos polêmicos e atuais sobre os terceiros no processo civil e assuntos afins”[1], leciona que este tipo de intervenção é um novo tipo de intervenção e não mais uma modalidade de assistência. A doutrina tem denominado de intervenção anômala. Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, citados por Verônica Santos de Novaes[2], falam em “assistência anômala, verdadeiramente teratológica, sendo de difícil sistematização no ordenamento jurídico processual”.

Há outro ponto no artigo 5º, parágrafo único, da Lei 9.469/97, pouco comentado, e que é o cerne deste trabalho: o deslocamento ou não da competência para a Justiça Federal.

Conforme consta da parte final do parágrafo único, do artigo 5º da Lei 9.469/97, a simples intervenção não desloca a competência para a Justiça Federal, devendo os autos permanecerem tramitando da Justiça Estadual.

A redação do referido parágrafo, nesta parte, está longe de ser clara: “e, se for o caso, recorrer, hipótese em que, para fins de deslocamento de competência, serão consideradas partes”. Por falta de clareza da norma, vários processos foram remetidos para a Justiça Federal, por aplicação automática da súmula 150 do STJ, quando no caso ela é inaplicável.

Colocando a frase na ordem torna-se mais fácil a compreensão da norma: A União e entes federais, quando recorrer(em), serão consideradas partes para fins de deslocamento de competência.

A intervenção para esclarecer questões de fato e de direito, podendo juntar documentos e memoriais reputados úteis ao exame da matéria não desloca a competência para a Justiça Federal, que somente ocorrerá se a interveniente interpuser recurso, quando será considerada parte. Não sendo considerada parte antes disso, não há deslocamento da competência. Vários doutrinadores traçam um paralelo com a figura do amicus curiae.

Como conseqüência da imprecisão da norma, o STJ havia se posicionado pela aplicação automática da súmula 150/STJ, quando o ente federal demonstrou interesse com base na Lei 9.469/97, quando no caso ela era inaplicável, conforme se vê do julgado de 2002:

PROCESSUAL CIVIL. CONTROVÉRSIA QUANTO A COMPETÊNCIA. DAS JUSTIÇAS ESTADUAL E FEDERAL. COMPANHIA ENERGÉTICA. INTERVENÇÃO DA UNIÃO. LEI 9.469/97. 1. Manifestado o interesse da União na forma dos artigos. 109, I, da CF e 5º, parágrafo único da Lei 9.469/97, desloca-se a competência para processar e julgar a causa para a Justiça Federal. 2. O artigo. 5º, da Lei 9.469/97, inaugurou novel forma interventiva das pessoas jurídicas de direito público, implicando deslocamento de competência. 3. Intervenção da União com fixação da competência do juízo federal. 3. Recursos especiais providos. (STJ; RESP 399695; AL; Primeira Turma; Rel. Min. Luiz Fux; Julg. 10/09/2002; DJU 02/12/2002; pág. 00234).

Este posicionamento foi alterado com o tempo, aproximando-se do que efetivamente dispõe a parte final do parágrafo único, do artigo 5º, da Lei 9.469/97, quanto ao deslocamento da competência, conforme se vê do julgado de 2005, também do STJ:

Consoante entendimento desta Corte, a simples intervenção da União, suas autarquias e empresas públicas em concurso de credores ou preferência não desloca a competência para a Justiça Federal, porquanto não integra a lide como autor, réu, assistente ou opoente. Precedentes. (STJ. CC 41317 / MG; Rel. Min. Fernando Gonçalves; 2ª Turma; DJ 14.12.2005 p. 164).

Verifica-se que a simples intervenção de ente federal não desloca a competência, sendo inaplicável a súmula 150 do STJ. A competência apenas será deslocada em caso de interposição de recurso, ocasião em que os autos devem ser remetidos à Justiça Federal.

Conclusão

Neste trabalho foram identificadas duas hipóteses em que a súmula 150 do STJ é inaplicável:

a) Privilegiando os princípios da economia, da celeridade e razoabilidade e plausibilidade, o Superior Tribunal de Justiça firmou posicionamento declarando a inaplicabilidade da súmula 150/STJ quando a própria Corte já firmou jurisprudência declarando a ausência do alegado interesse do ente federal, podendo o juiz estadual apreciar a plausibilidade e a razoabilidade do pedido interventivo e rejeitá-lo se entender ausente o interesse.

b) a simples intervenção de ente federal, fundamentada no artigo 5º, da Lei 9.469/97, não desloca automaticamente a competência para a Justiça Federal, sendo inaplicável a súmula 150 do STJ. A competência apenas será deslocada em caso de interposição de recurso pelo ente federal.


[1] “Aspectos polêmicos e atuais sobre os terceiros no processo civil e assuntos afins. Coordenação Fredie Didier Jr., Tereza Alvim Waimbier – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, pág. 582”

[2] A intervenção anômala das pessoas jurídicas de direito público autorizada pela Lei nº9.469/97, in http://www.juspodivm.com.br/i/a/%7B219C28D9-829E-4002-984A-BDAAFEA725C8%7D_9.pdf

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