Velha lei

Código do Processo Penal está em contradição com Constituição

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5 de junho de 2008, 0h02

Como é de conhecimento, nosso Código de Processo Penal data de 1941, onde vigia sob ditames dados por outra Constituição — diferente da atual.

De acordo com Bonavides, as Constituições estão classificadas em nominais ou semânticas, cujos textos são simplesmente formais; e normativas, que possuem relação direta entre as aspirações da nação e as leis que a compõe — que acaba por dar legitimidade a tal Carta.

A Carta de 1937, base do sistema quando instituído o atual Código de Processo Penal, bem representou o momento por que passava o Estado brasileiro, marcado pelo golpe de 10 de novembro que impôs uma Constituição outorgada, dispensando o trabalho do representante popular constituinte. A inspiração, segundo diversos autores, desta Carta outorgada foi a Constituição da Polônia, com certa influência do fascismo de Mussolini e do nazismo de Hitler — e certamente sua ideologia trazia os excessos e pendores autoritários das suas inspiradoras. Tal inspiração acabou por contribuir para que esta Carta ficasse singelamente conhecida como, e fosse mordazmente apelidada, “A Polaca”.

O ministro Francisco Campos, que foi seu ideólogo, em sua exposição de motivos, deixa-nos perceber o viés antidemocrático desta ao dizer que “o conceito político da democracia não era mais adequado aos novos ideais da vida. A liberdade individual e suas garantias não resolviam os problemas do homem. Eram ideais negativos, que não garantiam ao indivíduo nenhum bem concreto, seja no domínio econômico, seja no domínio moral, seja no domínio intelectual e político”. Sob tal ideologia surge o Código de Processo Penal que persiste em vigorar.

Acontece, porém, que a CF de 1988, cujo viés é substancialmente diferente da que permeava a sociedade à época do dito CPP, trouxe novos institutos e suscitou novos princípios, e entre a Constituição que orientava a nação quando do surgimento do nosso CPP e a atual, nossa sociedade experimentou períodos de muita agitação, tanto política quanto institucional, ora sob regimes autoritários ora sob regime mais democrático.

A Constituição de 1988 encerra diversos princípios e garantias, com ideários de maior participação popular e uma sábia preocupação, visto os anos de exceção que a antecederam, com a afirmação de direitos e garantias individuais. Devendo, como evidencia Rocha, as normas do Código de Processo Penal, estar em justa sintonia com as garantias que a Constituição estabelece — com destaque às incrustadas no artigo 5º e incisos (dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos) e artigo 93, IX (da fundamentação das decisões judiciárias), entre outras.

Como nos mostra Oliveira enquanto a ideologia do CPP mostra-se claramente autoritária, havendo sempre preocupação com a “segurança pública”, nossa atual Constituição prima por um sistema com uma gama de garantias individuais, a começar por considerar a inocência do acusado, regra, que terá seu status alterado apenas quando houver sua responsabilidade penal reconhecida por sentença condenatória transitada em julgado, como preceitua o artigo 5º, LVII “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Há notadamente uma contradição no sistema processual brasileiro onde, de um lado há o texto constitucional com significativos valores a garantir o cidadão e de outro, com resquícios inquisitivos, o Código de Processo Penal a viger.

O viés garantista da nova Carta passou a demandar do processo muito além do meio para a simples aplicação da lei penal, mas, sobretudo, exige que este se transforme em meio de garantia ao cidadão frente ao poder punitivo do Estado. Realiza-se então — como nos ensina Oliveira, uma busca da igualdade, durante a persecução criminal, entre o acusado e o Estado, que “ocupa posição de proeminência, respondendo pelas funções investigatórias e acusatórias, como regra, e pela atuação da jurisdição, sobre o qual exerce o monopólio”.

Artigo 595 como complemento do artigo 594 e suas devidas interpretações

Diz-nos o artigo 594 do Código de Processo Penal que há necessidade de recolhimento à prisão do réu, ou prestação de fiança, para que possa promover apelação, “salvo se for primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória, ou condenado por crime de que se livre solto. Da leitura de tal artigo pode-se, fazendo uma interpretação literal, chegar-se à conclusão, como nos diz Moreira, de que há violação à Constituição em pelo menos dois pontos, primeiro quanto à presunção de inocência, garantida pelo texto constitucional e segundo quando assegura a ampla defesa – e recursos inerentes.

Causa estranheza a prisão de alguém antes de julgado, definitivamente, culpado, cujo fulcro encontra-se expresso no artigo 5º, LVII, da Constituição Federal, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Com exceção para a prisão provisória em caráter liminar — que merece uma discussão mais profunda que não nos cabe aqui promovê-la. Está-se, pois, obrigando a prisão de um acusado cuja culpa ainda não foi declarada em decisão transitada em julgado, este ser obrigado à recolher-se à prisão — um atentado à nossa Carta.

Outra questão a causar estranheza é o fato de a Constituição assegurar aos acusados a ampla defesa, com os recursos a ela inerentes, enquanto o CPP, lei infraconstitucional, exige que para ter acesso a tal direito o acusado (que não tenha bons antecedentes ou não seja primário) deve ser preso. Tal regra complementa-se no artigo 595 que diz “se o réu condenado fugir depois de haver apelado, será declarada deserta a apelação” — condiciona-se o acesso do acusado ao duplo grau de jurisdição à primariedade e bons antecedentes, pressupostos para, em tese, ver-se livre da prisão.

Tanto a ampla defesa como a garantia do duplo grau de jurisdição, embora este não esteja expresso, são tutelados pela Constituição Federal, como nos diz Nucci, fazendo com que os dispositivos que se discute devam, ao invés de serem interpretados literalmente, cotejados com nossa Carta, sendo lidos, como nos mostra Moreira, da seguinte maneira: “não se pode condicionar a admissibilidade da apelação ao recolhimento do réu à prisão, mesmo que ele não seja primário e de bons antecedentes”. Deve-se reconhecer do seu recurso, ainda que solto o réu, e mesmo que tenha sido preso e venha a fugir. A fuga do acusado não será impedimento para o regular andamento da apelação.

Súmula 347 do STJ

Felizmente, sumulou-se recentemente acerca do artigo 595, que analisamos, pacificando então o entendimento. Segundo o Superior Tribunal de Justiça a partir da Súmula 347, para que um recurso de apelação seja conhecido independe a prisão do réu. Para a 6ª Turma é um direito fundamental de o condenado ter acesso à instância recursal — mesmo que tenha empreendido fuga — de acordo com Jurisprudência em Revista. Segundo os ministros o conhecimento e o julgamento do recurso de apelação interposto pela defesa não estão vinculados ao recolhimento do réu à prisão

O que os ministros fizeram foi compatibilizar a norma do artigo 595, do CPP e a atual ordem constitucional. A fuga de um réu, em si, não é crime, devendo o Estado estar de tal forma aparelhado que, em tempo, venha a julgar e prender o condenado. Cabe, como nos ensina Oliveira, ao Estado, responsável pela persecução criminal, diligenciar no sentido de promover a captura do condenado.

As mazelas a que estão sujeitos os nossos tribunais, sem recursos e com membros sob pilhas de processos, não podem mais servir de justificativa para que haja a violação de garantias individuais e entendemos que enquanto resquícios da mentalidade policialesca do Código de 1941 ainda sobreviverem e uma nova codificação, construída sobre a Carta de 1988 e as mudanças que o dia-a-dia em sociedade promoveram, não passarem a vigir, estaremos, enquanto cidadãos e sociedade, sujeitos a tais contraditos.

Lembremo-nos então que, a apelação, assim como qualquer outro recurso, são de interesse do próprio Estado, que assim promove um controle dos atos por ele praticados (atos jurisdicionais), havendo, portanto maior preocupação com a qualidade e regularidade, como nos ensina Oliveira, destes mesmo atos. Como é possível então, visto a importância ao Estado e a toda sociedade, do um exame de uma decisão, haver impedimento a tal exame? Contraria interesses do Estado e da própria sociedade.

Para finalizar a súmula supracitada vêm em hora mais que própria, e como nunca é tarde repetir, nosso Código de Processo Penal foi elaborado sob outra realidade política e histórica completamente distintas da que vivíamos nos anos de 1980 e, citando Oliveira, “não há como querer interpretar o Código de Processo Penal, sobretudo no que respeita ao tema de prisão e liberdade, sem a necessária filtragem constitucional. De duas, uma: ou se opta pelo Código, ou se opta pela Constituição, com o aproveitamento daquela legislação (CPP) apenas nos pontos em que não houver colidência com as normas constitucionais”.

Bibliografia

BONAVIDES, Paulo. História Constitucional do Brasil. Ed. Universidade Portucalense Infante D. Henrique, Porto: 1993.

ROCHA, Francisco de Assis do Rego Monteiro. Curso de Direito Processual Penal. 2 Ed. Curitiba: Juruá, 2007. v.1.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 9 Ed. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2008.

MOREIRA, Rômulo de Andrade. O artigo 594 do CPP: uma interpretação conforme a Constituição. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 52, nov. 2001.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 5 ed. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2006.

JURISPRUDÊNCIA EM REVISTA. Fuga não impede julgamento da apelação. Ano 1, 27.

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