Jogo de dívidas

Projeto de Aécio Neves perpetua calote dos precatórios

Autor

  • Bruno Mattos e Silva

    é advogado professor de Direito Comercial consultor legislativo do Senado Federal mestre em Direito e Finanças pela Universidade de Frankfurt (Alemanha) e bacharel em Direito pela USP. Foi procurador federal da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) procurador-chefe do INSS nos tribunais superiores e assessor especial do ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.

3 de junho de 2008, 13h21

Tramita na Assembléia Legislativa do estado de Minas Gerais o Projeto de Lei 2.392/08, cujo art. 26, na prática, possibilita à administração estadual deixar de pagar os precatórios. Assim dispõe referido dispositivo: “A despesa com precatórios judiciários e cumprimento de sentenças judiciais será programada, na lei orçamentária, em dotação específica da unidade orçamentária responsável pelo débito”.

De acordo com o projeto em tramitação, a dotação orçamentária, ou seja, a autorização para efetuar o pagamento dos precatórios será concedida ao órgão devedor (“unidade orçamentária responsável pelo débito”, no dizer do projeto).

No Brasil, o orçamento estatal, decorrente de projeto de lei do Executivo a ser aprovado pelo Legislativo, não é impositivo: os órgãos e entidades contempladas com dotações orçamentárias podem gastar as verbas previstas na lei orçamentária, mas nada obriga que esses gastos sejam feitos. Por isso se diz que o orçamento no Brasil é apenas autorizativo.

Com a dotação prevista para o órgão devedor do Poder Executivo e não para o Poder Judiciário, pode o Executivo pagar ou deixar de pagar os precatórios. Se o Judiciário não tem a dotação, não pode fazer o pagamento do precatório, dependendo do órgão do Executivo que tem a dotação.

Como funciona o sistema de pagamento por meio de precatórios, previsto na Constituição Federal? Os bens das pessoas jurídicas de direito público (União, estado, Distrito Federal, municípios, autarquias e fundações de direito público) não são penhoráveis, razão pela qual a Constituição Federal estabelece no art. 100 o modo pelo qual serão efetuados os pagamentos devidos pelas pessoas jurídicas de direito público em virtude de decisão judicial: é o sistema de precatórios, por meio do qual o Poder Judiciário encaminha ao Poder Executivo uma lista de valores que deverão ser pagos às pessoas que têm crédito a receber decorrente de decisão judicial.

De posse dessa lista, deve o Poder Executivo, em cada esfera de governo (federal, estadual, distrital e municipal), obrigatoriamente, incluir no projeto de lei orçamentária anual dotações específicas para o pagamento dos valores devidos pela pessoa jurídica política (União, estado, Distrito Federal, município) e entidades da administração indireta de direito público, sujeitas ao pagamento por precatório (autarquias, fundações de direito público).

Desse modo, com exceção feita aos débitos de pequeno valor, o pagamento deve ser feito por meio de precatórios. Para cada débito decorrente de decisão judicial transitada em julgado contra uma pessoa jurídica de direito público existe um precatório. Os precatórios expedidos, após incluídos na lei orçamentária, deverão ser pagos, mediante ordem cronológica de sua apresentação, sendo que os precatórios decorrentes de verbas alimentares deverão ser pagos antes dos demais, também em ordem cronológica de apresentação.

Confira-se o inteiro teor do caput do art. 100 da Constituição Federal: “Art. 100 — À exceção dos créditos de natureza alimentícia, os pagamentos devidos pela Fazenda federal, estadual ou municipal, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim”.

O artigo 100 da Constituição Federal é expresso no sentido de que a dotação (ou seja, a autorização para gastar), prevista na lei orçamentária, deve ser consignada ao Poder Judiciário.

Vamos conferir o inteiro teor dos § 1º e §2º do art. 100 da Constituição Federal, de acordo com redação dada pela Emenda Constitucional 30/2000:

“§ 1º — É obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos oriundos de sentenças transitadas em julgado, constantes de precatórios judiciários, apresentados até 1º de julho, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, quando terão seus valores atualizados monetariamente.

§ 2º — As dotações orçamentárias e os créditos abertos serão consignados diretamente ao Poder Judiciário, cabendo ao presidente do tribunal que proferir a decisão exeqüenda determinar o pagamento segundo as possibilidades do depósito, e autorizar, a requerimento do credor, e exclusivamente para o caso de preterimento de seu direito de precedência, o seqüestro da quantia necessária à satisfação do débito”.

Embora o débito seja da União, do estado, do Distrito Federal, do município, da autarquia, etc., devendo constar do orçamento da entidade devedora (art. 100, § 1º), a dotação deve ser consignada ao Poder Judiciário (art. 100, § 2º).


A palavra chave é dotação. Quem tem a dotação tem a possibilidade de efetuar o pagamento. Assim, para resolver o grave problema do atraso no pagamento dos precatórios, no ano 2000, a Emenda Constitucional 30 alterou a Constituição Federal para determinar expressamente que as dotações fossem consignadas diretamente ao Poder Judiciário.

É muito simples: se a administração direta e indireta (Poder Executivo) tiver a dotação orçamentária, será muito fácil frustrar a execução, pois bastará deixar de efetuar todos ou parte dos pagamentos, desde que não se viole a ordem de pagamentos (isto é, desde que não pague fora da ordem cronológica). Não há qualquer sanção (sob aspecto jurídico) pelo descumprimento da obrigação do pagamento de precatórios, pois a medida de seqüestro de verbas, prevista no art. 731 do Código de Processo Civil, só é cabível quando a pessoa jurídica de direito público violar a ordem de pagamento: se ela deixar de pagar os precatórios ou parte deles, desde que não pague com violação da ordem cronológica, não há qualquer sanção jurídica.

Não é razoável (sob um aspecto político, moral e lógico) que em um processo de execução forçada (como é o caso de processo de execução para pagamento de dinheiro) possa o devedor, já condenado, simplesmente deixar de pagar sem sofrer qualquer tipo de sanção. Não é razoável que a decisão de pagar ou não pagar, em um processo de execução forçada, fique a cargo do devedor, que poderá optar por construir lindas pontes e viadutos, dizer que as finanças do Estado estão em ordem, em detrimento de pagar os precatórios de pessoas que, legitimamente, obtiveram na Justiça o reconhecimento dos seus direitos. Não pode o Estado (Poder Executivo) deixar cumprir o que foi determinado pelo próprio Estado (Poder Judiciário). Portanto, a dotação não deve ser efetuada aos órgãos e entidades devedores. Esse foi o espírito da Emenda Constitucional 30/2000.

Se o Poder Judiciário tiver a dotação necessária para o pagamento (como prevê o art. 100, § 2º, da Constituição Federal), poderá efetuar o pagamento devido, pois a ele não interessa reter o dinheiro do pagamento de precatório. Além disso, dispõe o § 6º do art. 100, incluído no ano 2000 pela Emenda Constitucional 30, que a retenção do dinheiro do pagamento configuraria crime de responsabilidade por parte do presidente do tribunal:

“§ 6º — O presidente do tribunal competente que, por ato comissivo ou omissivo, retardar ou tentar frustrar a liquidação regular de precatório incorrerá em crime de responsabilidade”.

Como se vê, a Emenda Constitucional 30/2000 criou uma sanção expressa para o presidente do tribunal que deixar de pagar o precatório. Por outro lado, não existe nenhuma sanção para o dirigente ou gestor do órgão ou entidade devedora que deixar de efetuar o pagamento. Isso não está errado, dentro do sistema estabelecido pelo art. 100 da Constituição Federal, pois, conforme vimos acima, a dotação deve ser consignada diretamente ao Poder Judiciário.

No período anterior à Emenda Constitucional 30/2000, a União acumulou uma grande dívida com as pessoas com decisões judiciais transitadas em julgado e precatórios expedidos. Para resolver esse problema, a Emenda Constitucional 30/2000 determinou que as dotações fossem consignadas diretamente ao Poder Judiciário (para evitar que os precatórios futuros deixassem de ser pagos) e determinou o parcelamento, em até dez anos, dos precatórios referentes a débitos que não fossem de pequeno valor, alimentícios ou previstos no art. 33 do ADCT (para resolver o problema dos precatórios passados).

Contudo, para resolver o problema das finanças das pessoas jurídicas políticas (e dos credores), de nada adianta o parcelamento dos precatórios passados, se os pagamentos dos precatórios futuros não forem feitos. Isto é, caso não se adote o disposto no art. 100, § 2º, da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional 30/2000, o problema continuará insolúvel.

A toda evidência, ao incluir o § 6º no art. 100 da Constituição Federal, quis a Emenda Constitucional 30/2000 assegurar que o presidente do tribunal irá tomar as providências devidas para que os pagamentos sejam efetuados, exatamente para assegurar que o Poder Judiciário não iria cometer o mesmo erro que o Poder Executivo, no tocante ao atraso ou mesmo não pagamento de precatórios, durante o período anterior ao regime estabelecido pela Emenda Constitucional 30/2000.

Assim, quem deve fazer o pagamento deve ser sancionado se não fizer o pagamento. Ou seja, quem deve ser sancionado é aquele que deve fazer o pagamento, caso não faça o pagamento.

Se o § 2º do art. 100 diz que a dotação deve ser feita diretamente ao Poder Judiciário e o § 6º diz que o presidente do tribunal que não fizer o pagamento devido será sancionado, resta evidente que quem deve receber a dotação para efetivar o pagamento é o Poder Judiciário e não os órgãos e entidades do Poder Executivo. É o óbvio.


Agora ficou claro: o art. 26 do Projeto de Lei 2.392/08, que tramita na Assembléia Legislativa do estado de Minas Gerais, não está de acordo com o art. 100 da Constituição Federal.

Ao contrário do projeto que o governador Aécio Neves encaminhou à Assembléia Legislativa, vejamos como a matéria é tratada no âmbito federal.

Dispõe a Lei Federal de Diretrizes Orçamentárias atualmente em vigor: “Art. 32 — As dotações orçamentárias das autarquias e das fundações públicas, destinadas ao pagamento de débitos oriundos de decisões judiciais transitadas em julgado, aprovadas na Lei Orçamentária de 2008 e em seus créditos adicionais, incluídas as relativas a benefícios previdenciários de pequeno valor, deverão ser integralmente descentralizadas aos tribunais que proferirem as decisões exeqüendas, ressalvadas as hipóteses de causas processadas pela justiça comum estadual”.

Como se vê, o caput do art. 32 da Lei Federal de Diretrizes Orçamentárias (LDO-Federal) é expresso no sentido de que a dotação para os pagamentos devidos pelas pessoas jurídicas da administração indireta federal deve ser para o Poder Judiciário (e não para o devedor), exatamente para que o Judiciário possa efetuar o pagamento. Isso está de acordo com o disposto no art. 100, § 2º, da Constituição Federal.

Nem sempre foi assim: antes do advento da Emenda Constitucional 30/2000, as leis orçamentárias da União determinavam que as dotações para pagamento de precatório fossem consignadas para os órgãos e entidades devedoras, tal como continua fazendo o projeto do governador Aécio Neves na Assembléia Legislativa de Minas Gerais. Confira-se como a questão era tratada, tomando-se como exemplo a última Lei de Diretrizes Orçamentárias (federal) aprovada antes da Emenda Constitucional 30/2000:

Lei Federal 9.811/99, art. 20 — As despesas com o pagamento de precatórios judiciários correrão à conta de dotações consignadas com esta finalidade em operações especiais específicas, que constarão das unidades orçamentárias responsáveis pelos débitos”.

Naquela época, os pagamentos de precatórios por parte da União eram efetuados com grande atraso. Não era sem razão: as verbas eram consignadas para os órgãos devedores.

O resultado foi um acúmulo na dívida da União com as pessoas com decisões judiciais transitadas em julgado e precatórios expedidos, que motivou o advento da Emenda Constitucional 30/2000, conforme vimos acima.

Isso mudou: como é de notório conhecimento, a União, o INSS e outras autarquias federais, que foram no passado devedores contumazes de precatórios judiciais, passaram a pagá-los tempestivamente (exceção feita, evidentemente, a casos específicos em que ocorreu erro no processamento do precatório ou no processamento do pagamento).

É que foi corretamente aproveitado pelo Poder Executivo federal o parcelamento dos precatórios pendentes de pagamento, previsto na Emenda Constitucional 30/2000, para a regularização da desconfortável situação de estar o poder público descumprindo as decisões do próprio poder público.

É evidente que isso decorre não apenas do disposto no art. 100, § 2º, da Constituição Federal, que vincula não só a União, mas também os estados membros da federação. O fato de estar a União e as autarquias federais pagando os precatórios decorre de uma vontade política do chefe do Poder Executivo de encaminhar ao Congresso Nacional um projeto de lei de diretrizes orçamentárias em consonância com o referido dispositivo constitucional.

No caso de vários estados membros da federação, como é o caso de Minas Gerais, o procedimento previsto no art. 100 da Constituição Federal não está sendo corretamente obedecido, razão pela qual os credores de precatórios estaduais não estão recebendo os valores devidos tempestivamente.

Há um erro político, consistente em se propor e aprovar uma lei que prejudicará os cidadãos. Há também um erro jurídico, consistente na existência de um dispositivo no projeto de lei estadual de diretrizes orçamentárias que, ao estabelecer que as dotações serão feitas para os órgãos ou entidades devedoras, é claramente inconstitucional, por violar frontalmente o disposto no art. 100, § 2º, da Constituição Federal.

A questão é de opção política do governador do estado. Mas a Assembléia Legislativa também é responsável, pois a ela cabe emendar o projeto de lei encaminhado pelo Executivo, especialmente quando verifica que o projeto do Executivo é gritantemente violador da ordem constitucional e dos interesses da população.

O Projeto de Lei 2.392/2008 precisa ser emendado na Assembléia Legislativa do estado de Minas Gerais para estabelecer que a dotação orçamentária para pagamento dos precatórios deverá ser feita ao Poder Judiciário e não ao Poder Executivo. Caso contrário, a situação atual permanecerá: a administração estadual pagará os precatórios apenas se quiser.

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