Amor divino

Concubina não tem direito a dividir pensão com viúva, diz STF

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3 de junho de 2008, 22h17

A pensão por morte do fiscal Valdemar do Amor Divino Santos deve ser paga apenas à viúva Railda Conceição Santos. Ela não precisa dividir o valor com Joana da Paixão Luz, que foi concubina de Santos por 37 anos. A decisão tomada nesta terça-feira (3/6) é da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal.

O Tribunal de Justiça da Bahia havia determinado a divisão da pensão entre as duas mulheres ao considerar que Paixão e Santos tiveram uma união estável paralela ao casamento de Santos com Conceição. Com Conceição, ele teve 11 filhos e com Paixão, nove.

O ministro Marco Aurélio (relator) afirmou em seu voto que o parágrafo 3º do artigo 226 da Constituição diz que a família é reconhecida como a união estável entre homem e mulher, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. Segundo o ministro, o artigo 1.727 do Código Civil prevê que o concubinato é o tipo de relação entre homem e mulher impedidos de casar. Neste caso, entendeu o ministro, a união não pode ser considerada estável. É o caso também da relação de Santos e Paixão.

Os ministros Menezes Direito, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski acompanharam o relator. Lewandowski lembrou que a palavra concubinato — do latim, concubere — significa compartilhar o leito. Já união estável é “compartilhar a vida”, salientou o ministro. Para a Constituição, a união estável é o “embrião” de um casamento, salientou Lewandowski, fazendo referência ao julgamento da semana passada, sobre pesquisas com células-tronco embrionárias.

Já para o ministro Carlos Britto, ao proteger a família, a maternidade, a infância, a Constituição não faz distinção quanto a casais formais e os impedidos de casar. Para o ministro, “à luz do Direito Constitucional brasileiro o que importa é a formação em si de um novo e duradouro núcleo doméstico. A concreta disposição do casal para construir um lar com um subjetivo ânimo de permanência que o tempo objetivamente confirma. Isto é família, pouco importando se um dos parceiros mantém uma concomitante relação sentimental a-dois” (Clique para ler o voto-vista do ministro)

O ministro votou contra o recurso do estado da Bahia, por entender que as duas mulheres tiveram a mesma perda e estariam sofrendo as mesmas conseqüências sentimentais e financeiras .

Leia o voto do ministro Marco Aurélio

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 397.762-8 BAHIA

 

 

RELATOR : MIN. MARCO AURÉLIO

RECORRENTE(S) : ESTADO DA BAHIA

ADVOGADO(A/S) : PGE-BA – ANTONIO ERNESTO LEITE RODRIGUES

RECORRIDO(A/S) : JOANA DA PAIXÃO LUZ

ADVOGADO(A/S) : CÁTIA RÉGIA TELES NERY E OUTRO(A/S)

RELATÓRIO

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – O Tribunal de Justiça do Estado da Bahia acolheu pedido formulado em apelação, ante fundamentos assim sintetizados (folha 223):

APELAÇÃO CÍVEL. ADMINISTRATIVO. PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO DE EX-COMPANHEIRA. DIREITO AO RECEBIMENTO, AINDA QUE CASADO FOSSE O DE CUJUS.

Na inteligência da regra do art. 226, parágrafo 3º, da Constituição, tem a companheira direito à pensão, uma vez demonstrada a união estável, ainda que se trate de união paralela com a de um casamento em vigor.

 Apelo provido. Decisão unânime.

No recurso extraordinário de folha 228 a 238, interposto com alegada base na alínea “a” do permissivo constitucional, o Estado articula com a transgressão do artigo 226, § 3º, da Carta Política da República bem como da Lei nº 9.278, de 10 de maio de 1996, que teria regulamentado o preceito. Salienta, em suma, que não se pode reconhecer a união estável entre o falecido e a autora, diante da circunstância de o primeiro ter permanecido casado, vivendo com a esposa até a morte. Alude aos impedimentos dos artigos 183 a 188 do Código Civil e da Lei nº 9.278/96. Argumenta que a união estável apenas ampara “aqueles conviventes que se encontram livres de qualquer impedimento que torne inviável possível casamento” (folha 234). Aponta que seria contraditório “o mesmo Estado que pune relações bígamas (ilícitas) querer proteger os seus autores” (folha 234). Evoca precedentes jurisprudenciais e ensinamentos doutrinários.

A recorrida apresentou as contra-razões de folha 246 a 252, defendendo não haver sido demonstrada a ofensa ao artigo 226, § 3º, da Constituição Federal. Diz ainda do acerto da conclusão adotada pela Corte de origem.

O procedimento atinente ao juízo primeiro de admissibilidade encontra-se às folhas 257 e 258.

A Procuradoria Geral da República, no parecer de folha 272 a 275, preconiza a negativa de seguimento ao recurso. Eis o resumo da peça:

Constitucional e Previdenciário. Pensão por morte. Rateio entre a esposa legítima e a companheira. Acórdão que se conforma com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Parecer recomendando que se negue seguimento ao extraordinário (art. 102, III, a, da CF).

É o relatório.

VOTO

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (RELATOR) – Na interposição deste recurso, foram observados os pressupostos gerais de recorribilidade. A peça, subscrita por procuradores do Estado, restou protocolada no prazo dobrado a que tem jus o recorrente. A notícia do acórdão atacado foi veiculada no Diário de 19 de junho de 2002, quarta-feira (folha 226), ocorrendo a manifestação do inconformismo em 17 de julho imediato, quarta-feira (folha 228).

Friso que a premissa do Ministério Público, preconizando a negativa de seguimento ao extraordinário, considerado o artigo 557 do Código de Processo Civil, não vinga. Está-se não no Superior Tribunal de Justiça, mas no Supremo Tribunal Federal e neste não há precedente que respalde o teor do acórdão impugnado mediante o extraordinário. Ao contrário, o tema versado nas razões do extraordinário e constante do acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça da Bahia está a merecer pronunciamento desta Suprema Corte, porquanto ligado à união estável, por vezes potencializada a ponto de suplantar o próprio casamento e os vínculos deste decorrentes. O Tribunal de origem julgou a apelação da autora, reformando a sentença do Juízo a partir de empréstimo de alcance todo próprio, no sentido da especificidade, ao § 3º do artigo 226 da Constituição Federal, consoante o qual:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

(…)

§ 3º – Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

 

 

 

(…)

Pois bem, são as seguintes as premissas fáticas do acórdão atacado via o extraordinário, no que evocada a violência ao § 3º acima transcrito:

a) o cidadão Valdemar do Amor Divino Santos veio a falecer, deixando certa pensão a ser satisfeita pelo Estado.

b) à época do óbito, era casado e vivia maritalmente com a mulher, advindo da relação conjugal onze filhos;

c) o falecido manteve com a autora, Joana da Paixão Luz, relação paralela, tendo o casal filhos. Então, a Corte fez consignar:

Na verdade, essa situação dos autos, embora desconfortável, é muito comum, na cultura brasileira. Como bem reconheceu o ilustre Juiz o de cujus “logrou administrar a subsistência do seu casamento com a segunda ré e um sério e duradouro relacionamento afetivo com a outra,” o que leva a indeclinável conclusão de que o falecido companheiro da autora tinha duas famílias, administrava e assistia as duas, sustentando-as.

Proclamou o Tribunal de Justiça da Bahia a estabilidade, a publicidade e a continuidade da vida dupla, assentando que não poderia desconhecer esses fatos ante a existência do casamento e da prole deste resultante, consignando não haver imposição da monogamia para caracterizar-se a união estável a ser amparada pela Previdência, o que constitui dever do Estado. Placitou, então, o rateio da pensão.

Sob o ângulo da busca a qualquer preço da almejada justiça, não merece crítica o raciocínio desenvolvido. Entrementes, a atuação do Judiciário é vinculada ao Direito posto. Surgem óbices à manutenção do que decidido, a partir da Constituição Federal. Realmente, para ter-se como configurada a união estável, não há imposição da monogamia, muito embora ela seja aconselhável, objetivando a paz entre o casal. Todavia, a união estável protegida pela ordem jurídica constitucional pressupõe prática harmônica com o ordenamento jurídico em vigor. Tanto é assim que, no artigo 226 da Carta da República, tem-se como objetivo maior da proteção o casamento. Confira-se com o próprio preceito que serviu de base à decisão do Tribunal de Justiça. O reconhecimento da união estável pressupõe possibilidade de conversão em casamento. O reconhecimento da união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento, direciona à inexistência de obstáculo a este último. A manutenção da relação com a autora se fez à margem e diria mesmo mediante discrepância do casamento existente e da ordem jurídica constitucional. À época, em vigor se encontrava, inclusive, o artigo 240 do Código Penal, que tipificava o adultério. A tipologia restou expungida pela Lei nº 11.106/05.

Então, o que se tem é que, em detrimento do casamento havido até a data da morte do servidor, veio o Estado, na dicção do Tribunal de Justiça da Bahia, a placitar, com conseqüências jurídicas, certa união que, iniludivelmente, não pode ser considerada como merecedora da proteção do Estado, porque a conflitar, a mais não poder, com o direito posto. É certo que o atual Código Civil versa, ao contrário do anterior, de 1916, sobre a união estável, realidade a consubstanciar núcleo familiar. Entretanto, na previsão está excepcionada a proteção do Estado quando existente impedimento para o casamento relativamente aos integrantes da união, sendo que, se um deles é casado, esse estado civil apenas deixa de ser óbice quando verificada a separação de fato. A regra é fruto do texto constitucional e, portanto, não se pode olvidar que, ao falecer, o varão encontrava-se na chefia da família oficial, vivendo com a esposa. O que se percebe é que houve um envolvimento forte – de Valdemar do Amor Divino dos Santos e Joana da Paixão Luz -, projetado no tempo – 37 anos -, dele surgindo prole numerosa – nove filhos –, mas que não surte efeitos jurídicos ante a ilegitimidade, ante o fato de o companheiro haver mantido o casamento com quem contraíra núpcias e com quem tivera onze filhos. Abandone-se a tentação de implementar o que poderia ser tida como uma justiça salomônica, porquanto a segurança jurídica pressupõe o respeito às balizas legais, a obediência irrestrita às balizas constitucionais. No caso, vislumbrou-se união estável quando, na verdade, verificado simples concubinato, conforme pedagogicamente previsto no artigo 1.727 do Código Civil:

Art. 1.727. As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato.

O concubinato não se iguala à união estável, no que esta acaba fazendo as vezes, em termos de conseqüências, do casamento. Gera, quando muito, a denominada sociedade de fato.

Tenho como infringido pela Corte de origem o § 3º do artigo 226 da Constituição Federal, razão pela qual conheço e provejo o recurso para restabelecer a sentença prolatada pelo Juízo.

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