Pesquisa sob controle

Leia voto de Cezar Peluso sobre pesquisas com células-tronco

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2 de junho de 2008, 19h59

O ministro Cezar Peluso se destacou no Supremo Tribunal Federal por defender duramente que as pesquisas com células-tronco sejam fiscalizadas pelo Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), embora o artigo 5º da Lei de Biossegurança, que permite as pesquisas, não trate do assunto. Ainda assim, Peluso votou pela total improcedência da Ação Direta de Inconstitucionalidade.

Mas Peluso perdeu. Seu voto foi contabilizado junto com a minoria que votou pela parcial procedência da ação, ao colocar restrições à pesquisa. Mesmo assim, não se conformou. Ele explicou que a imprensa entendeu mal seu voto, que ele não tinha colocado restrições às pesquisas e, ao final do julgamento, discutiu com o ministro Celso de Mello sobre o mesmo tema. Isso porque Celso de Mello reagiu à sugestão de que a restrição de Peluso, minoria na corte, fosse incluída na redação final da decisão do Supremo.

Em seu voto, o último a ser lido no segundo dia de julgamento, na quarta-feira (28/5), Peluso explicou que a vida é uma sucessão de mudanças, um processo contínuo. E a fertilização em laboratório não é nada por si só. Se o embrião não for colocado em um útero não haverá transformação, portanto, vida.

“A potencialidade do zigoto de criar um ciclo vital não basta para se identificar como uma vida ou reivindicar a aplicação do Estatuto Ético da vida”, disse. “É difícil dizer que um óvulo ou um espermatozóide têm capacidade, por si só, de criar uma vida”.

O ministro enfatizou o seu entendimento de que não há vida sem a capacidade de se mover por si mesmo ou desenvolver com autonomia o ciclo da vida. Para ilustrar, ele colocou duas hipóteses. Perguntou: “Se um laboratório está pegando fogo e há uma criança de cinco anos e dois embriões, quem você salva? E depois, se no laboratório que pega fogo há um adulto de 25 anos e uma criança de cinco, quem você salva? Entre um adulto e uma criança a decisão não é tão óbvia”, disse.

Mas ressaltou que é imprescindível que os genitores autorizem o uso das células para pesquisas, o que já está previsto em lei. “Não se encontra fundamento algum para tirar do casal o direito sobre os embriões.” Com a doação, os pais perdem o poder jurídico sobre os embriões, entende. Cezar Peluso fez a ressalva, ainda, de que as células-tronco não podem ser usadas para nenhuma experiência eugênica. “Jamais podem ser usadas para sondagem ou manipulação genética.”

Por fim, defendeu que o uso de células embrionárias seja restrito a pesquisas para desenvolvimento de tratamentos médicos.

Leia o voto

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.510-0 DISTRITO FEDERAL01

RELATOR: MIN. CARLOS BRITTO

REQUERENTE(S): PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA

REQUERIDO(A/S): PRESIDENTE DA REPÚBLICA

ADVOGADO(A/S): ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

REQUERIDO(A/S): CONGRESSO NACIONAL

INTERESSADO(A/S): CONECTAS DIREITOS HUMANOS

INTERESSADO(A/S): CENTRO DE DIREITO HUMANOS – CDH

ADVOGADO(A/S): ELOISA MACHADO DE ALMEIDA E OUTROS

INTERESSADO(A/S): MOVIMENTO EM PROL DA VIDA – MOVITAE

ADVOGADO(A/S): LUÍS ROBERTO BARROSO E OUTRO

INTERESSADO(A/S): ANIS – INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO

ADVOGADO(A/S): DONNE PISCO E OUTROS

ADVOGADO(A/S): JOELSON DIAS

INTERESSADO(A/S): CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL – CNBB

ADVOGADO(A/S): IVES GRANDRA DA SILVA MARTINS E OUTROS

V O T O

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO: 1. Está a Corte diante da delicada e grave tarefa de decidir se deve mantida, à luz da Constituição da República, a autorização, dada pela Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, no art. 5º e §§, para fins de pesquisa e terapia, sob determinadas condições, ao uso de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro.

Alega a demandante, a Procuradoria-Geral da República, em substância, que tal autorização violaria o direito à vida e à dignidade da pessoa humana, objetos respectivos do art. 5º, caput, e do art. 1º, inc. III, da Constituição Federal.

A gravidade e a delicadeza da tarefa vêm, não apenas da já em si algo complexa questão jurídico-constitucional da causa, mas também do conflito, que lhe subjaz, de opiniões sobre os progressos e expectativas da engenharia genética e das técnicas de fertilização artificial, de um lado, e, de outro, das justas inquietações que, despertando a temática em relação à dignidade da pessoa humana e ao futuro da humnidade, evocam, como paradigma perturbador do potencial escatológico da tecnologia, os rumos dramáticos em que se transviaram os estudos sobre a fissão nuclear. E conflito exacerbado, senão deturpado em boa medida, pelo contraste de posições que, cada uma a seu feitio, não conseguem desvencilhar-se da forte carga de irracionalidade sobre assunto que toca as profundezas mais obscuras do psiquismo e do espírito humano.


I. Refutação dos argumentos impertinentes.

2. Antes de entrar a expor meu pensamento sobre a questão central da causa, gostaria de, não apenas por intuitiva necessidade de método e de coerência lógico-jurídica, senão também em homenagem a todos os ilustres interlocutores deste nobre diálogo, refutar, posto que com brevidade, dentre os principais argumentos apresentados por ambas as correntes, aqueles que, com o devido respeito, me parecem menos sólidos ou consistentes, e, como tais, irrelevantes para a decisão.

2.1 Em primeiro lugar, embora reconheça dê lugar a comparação ilustrativa, tenho por insuficiente a analogia retórica que se intenta estabelecer entre os momentos da chamada morte encefálica e, a contrario sensu, do início da vida, o qual se daria com a neurulação, ou estágio de esboço do sistema nervoso.[1]

A opção legislativa, tomada pelo art. 3º da Lei federal nº 9.434, de 1997,[2] pela morte encefálica como marco relevante do diagnóstico de óbito para fins de transplante ou tratamento, bem como sua regulamentação, por via da Resolução do Conselho Federal de Medicina – CFM nº 1.480/97, baseia-se na técnica normativo-operacional da ficção jurídica, que reproduz mera convenção, embora não despida de fundamentos médico-científicos. É que ninguém disputa que o ser humano vítima de morte cerebral não está, deveras, biologicamente morto.[3] O fim da vida é determinado, nesse caso, menos por injunções intransponíveis de natureza biológica do que por específicas razões de conveniência social e política, concernentes ao aproveitamento de tecidos e órgãos para transplante e doação, com o manifesto propósito de salvar vidas alheias e reduzir os custos materiais e emocionais da manutenção de uma vida em estado vegetativo, sob prognóstico fechado. Não é este o lugar para discutir a bondade ou a validez dessa concepção normativa.

2.2. Em segundo lugar, em absoluto não vem ao caso, nem releva em nada a circunstância ou a eventualidade de, para experimentos científicos de finalidades terapêuticas, as pesquisas com células-tronco adultas (CTA) se prefigurarem mais ou menos promissoras ou frutíferas do que aquelas voltadas para as célultas-tronco embrionárias (CTE).

Os objetos teóricos de pesquisas não traçam caminhos mutuamente excludentes. Considerando-se que, ao propósito, nenhuma das tecnologias conhecidas demonstrou cabal suficiência no sentido de esgotar as potencialidades científico- terapêuticas, fica desde logo claro que o estudo com as CTE é de todo em todo adequado e recomendável, na medida em que pode contribuir para promoção de objetivos e valores constitucionais legítimos, que são o direito à vida, à dignidade, à saúde e à liberdade de investigação científica. E, porque é decisiva para a ciência, a consideração de sua velocidade ou aspecto temporal aparece ainda como manifestamente importante, até porque, como há de ver-se, não sacrifica nenhum princípio jurídico nem direito algum, sobretudo os que protegem a vida e a dignidade humanas, para realização daqueloutras altas finalidades, com a intensidade e amplitude desejáveis.

2.3. Tampouco têm peso aqui recursos hermenêuticos tendentes a interpretar a Constituição da República à luz de normas subalternas. Os conceitos de vida e de pessoa, enquanto constituam dados necessários da quaestio iuris da causa, devem ser reconstruídos, senão que construídos, nos supremos limites materiais do ordenamento constitucional.

Tal é a razão óbvia por que já a nada serviria a postura dogmática que, debaixo do pretexto da relatividade dos direitos constitucionais, pretende graduar o direito à vida com a régua impertinente de que, como, nos termos do direito positivo, o crime de homicídio tem pena maior que a prevista para o delito de aborto, então teriam menor dignidade jurídico-constitucional a vida intra-uterina e, a fortiori, as células embrionárias.

O erro aqui é agravado e pouco sutil. As normas penais não valoram de modo diverso, na cominação de penas em cada tipo, o bem jurídico da vida em estado hipotético de violação, mas, sim, a reprovabilidade de cada conduta típica, segundo as modalidades e as circunstâncias da ação humana violadora. Cuida-se, aí, de nítida orientação de política normativo-criminal, que em nada deprecia o eminente grau de dignidade e tutela que a Constituição da República reserva ao chamado direito à vida, que é, antes, o pressuposto ou condição transcendental da existência de todos os direitos subjetivos.


Para vê-lo em toda a nitidez, basta atentar na própria figura do homicídio, cujas penas variam em função de diversos fatores objetivos e subjetivos, inerentes, por exemplo, às hipóteses de aumento ou diminuição, de qualificação, etc..[4] A ninguém terá jamais ocorrido que, para o ordenamento jurídico, valha menos a vida de uma vítima de homicídio simples do que a de alguém morto em emboscada! Mas expressivo, ainda, é o caso o infanticídio (art. 123 do Código Penal), que, em termos de sacrifício do bem jurídico tutelado, em nada difere do homicídio (art. 121 do Código Penal), mas, em razão de condições subjetivas especialíssimas (estado puerperal da mãe), tem pena em abstrato consideravelmente mais branda, sem isso signifique, para a ordem jurídica, sobretudo a constitucional, que a vida do infante valha menos do que a de qualquer outra pessoa.[5]

Poder-se-ia objetar que, neste segundo exemplo, a diferença de penas decorre da menor capacidade de compreensão do agente. Mas, a despeito de ser inconseqüente em si a objeção, outros casos há em que a cominação da pena está relacionada com a ponderação de elementos objetivos do fato criminoso, como se dá, v. g., com o furto de veículo automotor, que, transportado para outro Estado, induz pena abstrata máxima no dobro (art. 155 do Código Penal)! O bem jurídico atingido e seu valor jurídico-patrimonial são exatamente os mesmos, mas são diversas as penas, porque diversos os graus de desvalor normativo das condutas típicas.

Daí se tira que a pena cominada, embora guarde certo nexo lógico com o bem jurídico objeto da tutela criminal, nem sempre é diretamente proporcional ao valor normativo deste, por perceptível necessidade de concretização de justiça, como sucede, estritamente, à fixação teórica das penas dos crimes de aborto e de homicídio, cuja diversidade, de modo e em sentido algum se presta a sustentar peregrina teoria de que o direito à vida seria suscetível de graduações axiológicas no seu status jurídico de fundante valor objetivo constitucional.

Por razões até mais graves e intuitivas, que por isso não merecem senão notas de rodapé, parece, nesse sentido, não menos estéril e ilegítima a invocação de categorias da dogmática e do direito civil, como, por exemplo, remissão às idéias de nascituro[6], de nascimento com vida e de personalidade jurídica[7], todas as quais estão impregnadas de vício metodológico radical e absoluto que, à moda de pecado original, as invalida todas, enquanto mal disfarçadas tentativas de inverter a ordem escalonada das normas que se estrutura a partir da Constituição da República.

2.4. Artificial, forçosa e, como tal, imprestável, é a proposta de equiparação ou analogia entre os procedimentos envolvidos nas pesquisas de células embrionárias e prática abortiva.

A caracterização do crime de aborto tem por pressuposto necessário a preexistência de vida intra-uterina, isto é, de gravidez, pois a gestação é circunstância elementar do tipo penal (arts. 124 e ss. do Código Penal). Ora, abstraindo-se por ora a questão de existir, ou não, vida no embrião congelado, não há como nem por onde imaginar-se delito de aborto sem gestante. Quem seria a gestante na hipótese das pesquisas? Os tanques de nitrogênio líquido?

Essa conclusão cristalina e irrefutável não permite a ninguém de bom senso descobrir afinidades entre aborto e pesquisa científica com células embrionárias congeladas, nem sequer no plano da crítica extrajurídica, como o advertiu a insuspeita MAYANA ZATZ:

“Pesquisar células embrionárias obtidas de embriões congelados não é aborto. É muito importante que isso fique bem claro. No aborto, temos uma vida no útero que só será interrompida por intervenção humana, enquanto que, no embrião congelado, não há vida se não houver intervenção humana. É preciso haver intervenção humana para a formação do embrião, porque aquele casal não conseguiu ter um embrião por fertilização natural, e também para inserir no útero. E esses embriões nunca serão inseridos no útero”.[8]

2.5. Não colhe, ademais, por representar verdadeiro contra-senso, o argumento ad terrorem centrado na possível tendência à comercialização de embriões que se desencadearia por conta da declaração de constitucionalidade da lei de biossegurança.


Esta veda expressamente a mercantilização de embriões excedentários,[9] tipificando-a como crime (art. 5º, § 3º), e, mediante a previsão de outras medidas de controle, ainda que algo tímidas na sua literalidade, mas bastantes, na sua força latente, para justificar e exigir a atuação efetiva dos órgãos e instituições responsáveis por sua observância, concorre para inibir atividades abusivas clandestinas, que de outro modo poderiam ser ignoradas pela indiferença oficial, sob pretexto de vácuo legislativo. As conseqüências práticas supostas pela disciplina normativa e por sua correta interpretação conforme à Constituição da República desacreditam o argumento, pois transportam as pesquisas científicas para o campo delimitado da licitude jurídica, recobrindo de legitimidade e responsabilidade assim o trabalho dos pesquisadores, como as fontes de financiamento e investimento, que já não pré-excluem os estímulos e recursos públicos. A ausência de lei é que incentivaria experimentos abstrusos, antiéticos ou abusivos, à sombra de uma clandestinidade que, conquanto inevitável na medida da natural incontinência humana, o Estado já não pode tolerar sob o domínio de normas cogentes.

2.6. Estou, por fim, em que engenhosas referências à noção de paternidade responsável servem apenas à justificação dos procedimentos de fertilização in vitro (IVF) e de um de seus efeitos colaterais, que é a produção de excedentes embrionários. Cuida-se de questão prévia mas autônoma, que não guarda vínculo direto com a solução do problema jurídico-constitucional agora submetido à Corte.

II. A ausência de vida nos embriões humanos congelados.

3. Há, em tese, alguns – convenhamos predicar a todos eles, à míngua de outro mais preciso e curial, este termo – teóricos sujeitos de direito à vida por considerar no quadro da causa: um é o embrião congelado; outro, o embrião implantado e o feto e, por fim, o ser humano, criança ou adulto, que porta plenamente os atributos a cuja coexistência a ordem constitucional atribui a qualidade de pessoa. A pergunta nevrálgica a que deve a Corte responder é se a tutela constitucional da vida se aplica, na integralidade do seu alcance, à classe dos embriões e, mais especificamente, à dos embriões inviáveis e aos crioconservados.

Meu esforço está em perquirir se existe diferença de graus de proteção constitucional a que façam jus, de um lado, as pessoas dotadas de vida atual e em plenitude, e, de outro, os embriões. E começo por identificar em ambos esses conjuntos de organismos o predicado da humanidade, mas somente no primeiro consigo discernir, à luz de todos os critérios discretivos disponíveis, a presença de vida. Por isso, o único ponto de semelhança que as características e as distinções biológicas me autorizam a encontrar, no plano da ordem jurídica, entre um embrião congelado e um adulto, é que esse participa, em grau primitivo, dos requisitos da proteção à dignidade humana deste, e apenas isso. É o que me proponho a demonstrar.

4. Antes de declinar o extenso rol de direitos fundamentais do art. 5º, cujo caput assegura o direito à vida, a Constituição da República enuncia seus princípios fundantes no art. 1º, fazendo constar do inc. III a dignidade da pessoa humana. Harmonizam-se todas estas disposições, pois o vocábulo vida, constante do art. 5º, não pode dissociar-se do pressuposto de sua condição humana. Quando se refere a todos, brasileiros e estrangeiros aqui residentes, que são iguais perante a lei, a Constituição cuida, a toda a evidência, de seres humanos viventes.

Desta indiscutível premissa, segundo a qual a vida objeto da larga e genérica tutela constitucional é apenas a vida da pessoa humana, derivam duas teóricas linhas de raciocínio, conducentes ambas ao reconhecimento de permissão constitucional para pesquisas com células-tronco embrionárias: a primeira baseia-se em que o embrião não é, ou não é ainda, pessoa; a outra concebe que no embrião, congelado ou inservível, não há vida atual. E tais posições não são contraditórias, pois basta seja admitida a consistência lógico-jurídica de uma delas para ter-se por legítima a conclusão de constitucionalidade da norma ora impugnada. Como, para efeito da ampla e integral tutela outorgada da Constituição da República, deve haver vida, e vida de pessoa humana, a falta de qualquer um dos componentes desta conjunção invalida o fundamento básico da demanda.

Há argumentos respeitáveis na posição dos que sustentam que embriões isolados não se caracterizam nem definem como pessoas. É, por exemplo, a formulação da AGU, segundo a qual “a ofensa à dignidade da pessoa humana exige a existência da pessoa humana, hipótese que não se configura em relação ao embrião in vitro”,[10] e, ainda, a do amicus curiae MOVITAE, que, ao afirmar não ser “o embrião uma pessoa”,[11] invoca esta lição do Prof. ANTONIO JUNQUEIRA AZEVEDO::


“[D]o embrião pré-implantatório, resultante de processos de fecundação assistida, ou até mesmo de clonagem, constituído artificialmente e que ainda está fora do ventre materno, por não estar integrado no fluxo vital contínuo da natureza humana, é difícil dizer que se trata de ‘pessoa humana’. É verdade que, por se tratar da vida em geral e especialmente da vida humana potencial, nenhuma atividade gratuitamente destruidora é moralmente admissível, mas, no nosso entendimento, aí já não se trata do princípio da intangibilidade da vida humana; trata-se da proteção, menos forte, à vida em geral..”[12]

Na mesma direção, CLAUS ROXIN inclina-se a reconhecer certa forma de vida ao embrião, ao tempo em que lhe nega, porém, condição análoga à do homem nascido, por considerá-lo apenas uma forma prévia de pessoa:

“É inquestionável que, com a união do óvulo e do espermatozóide, surge uma forma de vida que já carrega em si todas as disposições para tornar-se um homem futuro. Daí deduzo que um tal embrião tem de participar, em até certo grau, na proteção e na dignidade do homem já nascido. (…)

Por outro lado, parece-me igualmente inquestionável que o embrião seja somente uma forma prévia, ainda muito pouco desenvolvida, do homem, que não pode gozar da mesma proteção que o homem nascido – ainda mais enquanto o embrião se encontrar fora do corpo da mãe.”[13]

De minha parte, estou convencido de que o atributo de humanidade já está presente tanto no embrião, quanto nas demais fases do desenvolvimento da criatura. Mais do que o caráter e o sentido elementar da identidade da matéria-prima de que um e outro se compõem, o embrião em si constitui, como depositário dos ainda misteriosos princípios da vida, mais que procriação, a re-produção ou a multiplicação enquanto prolongamento mesmo das pessoas que lhe dão origem e, como tal, não pode deixar de ter a mesma natureza biológica e de compartilhar da mesma suprema dignidade moral e jurídica do ser humano. Essa é, aliás, a razão por que não é lícito reservar-lhe tratamento menos respeitoso sequer no campo jurídico.

As divergências toleráveis ao propósito, essas concernem e restringem-se ao problema de sua caracterização, em termos absolutos ou relativos, como pessoa, pois, a despeito de o código genético completo, enquanto conjunto das disposições suficientes para, sob certa condição externa, se desenvolver e transformar em ser humano autônomo, já estar inscrito no embrião, não se pode reduzir a complexidade da pessoa humana como organismo vivo e, sobretudo, como sujeito de direito, ao aspecto puramente biológico de sua mera completude ou perfeição genética, encravada na célebre “escada torcida em forma helicoidal.”[14] Nesta sede, onde pretensas concepções científicas e posturas racionais se confundem, menos no enunciado das teses contrastantes do que na profundeza das motivações inconscientes, com a adesão apaixonada das crenças religiosas, é preciso renunciar a toda busca de consenso e de pontos de vista comuns, até porque, como verdadeiros atos de fé, não se acomodam a testes de refutabilidade, nem prometem conclusões seguras para a solução da causa.

Menos discutível, ou, quem sabe, menos incerto parece-me a via da indagação dos critérios perante os quais se pode reconhecer, com o nível de certeza postulado pela resposta jurídica, que embriões congelados não têm vida suscetível de tutela, na acepção do ordenamento constitucional.[15]

5. E, para tanto, tampouco é mister disputar, aqui, a respeito do momento exato em que começa a vida, pela mesmíssima razão de que, por mais convergentes e sedutoras que sejam as proposições revestidas de aparente autoridade científica, esta é também seara de opiniões e teorias controversas, que, incapazes de ser refutadas, guardam o estatuto lógico das profissões de fé. A decisão seria, muito provavelmente, arbitrária.

Para efeito do meu raciocínio, é suficiente partir de uma epítrope, figurada na concessão retórica de que o início da vida ocorra deveras no preciso instante da fecundação, entendida esta no estrito significado biológico do mero fato objetivo da junção dos gametas, abstraída a circunstância de se perfazer, ou não, no ventre de alguma mulher ou alhures. Noutras palavras, assumamos esta premissa como verdadeira, consoante o fez o eminente Ministro Relator,[16] e concordemos integralmente com a assertiva da CNBB, segundo a qual “está cientificamente comprovado que a vida começa com o zigoto. (…) Cientificamente, a vida começa com a concepção[17]


Nessa moldura lógica pressuposta, a pergunta decisiva está em saber se a idéia de que a vida tem início na fecundação, qualquer que seja o locus onde aconteça, é capaz de legitimar juízo de inconstitucionalidade da norma contestada, sob o fundamento e a inferência imediata de que a correspondente autorização de pesquisas com embriões ofenderia o primado constitucional da tutela da vida humana. Ou, vista doutro ângulo, saber se a tese proposta de reconhecimento da licitude constitucional de experimentos científico-terapêuticos com células-tronco embrionárias, subordinados a rigorosos expedientes de controle e garantias legais, não estaria comprometida pela admissão daquele postulado.

É de todo em todo negativa a resposta.

A primeira objeção, mas talvez a menos grave, é que, desconsiderando o fator concorrente da presença e do papel decisivos do útero materno na cadeia causal, essa difusa concepção sobre o ponto histórico absoluto do início da vida deveria, na prática, sob pena de grosseira e perceptível contradição, levar necessariamente à mesma conclusão de franca ilegitimidade constitucional da corriqueira produção de múltiplos embriões para fins reprodutivos, não obstante dirigida ao elevado fim dessa particular modalidade de procriação assistida, que é a fertilização extracorpórea, cujo processo médico-científico gera incontáveis embriões excedentes, condenados todos a congelamento prolongado ou a destruição imediata que quase ninguém recrimina!

Pouco se dá que esse resultado invariável, a sobra de embriões, represente conseqüência da particular necessidade de produção múltipla, ditada pela observação científica e empírica de todos os riscos de fracasso envolvidos nas práticas e experimentos dos processos de fecundação para tratamento de infertilidade. O fato incontornável é que se têm por lícitos, quando menos naturais ou, até, moralmente legítimos, a formação e o estoque de u’a multidão sempre crescente de embriões excedentários. Mais que isso, tal práxis é, sob pretexto de servir de boa garantia à eficácia das técnicas de fertilização em laboratório, tolerada, senão até justificada, pela assombrosa indiferença de quase todos os que, sustentando ser o embrião como entidade a se, portador de vida nos mesmíssimos termos em que a têm o feto e o homem nascido e, como tal, merecedor de igual valoração ética e tutela constitucional, não lhe costumam opor nenhum reparo de ordem moral nem jurídica. Mas não podem negar que se trata de produção descontrolada de embriões sem préstimo, que não têm, ao perecimento certo, destino alternativo compatível com a grandeza e a dignidade reservadas ao ser humano, ao qual os equiparam na raiz da sua concepção ideológica.

Se, de regra, aos defensores dessa concepção não parece eticamente censurável, nem insultuosa à Constituição da República – antes, a muitos se lhes afigura prática legítima -, a produção de tantos embriões predestinados a longa crioconservação ou a pronta destruição consentida, embora escusada pelas exigências técnicas e finalidade médico-reprodutiva do processo em que se dá, não lhes poderia aparecer inconstitucional, nem censurável que a lei tenha previsto a esses embriões sorte diversa, evidentemente útil e nobre, que é a de se prestarem a objeto de promissoras investigações científicas em proveito da raça humana, cuja subsistência, integridade e aperfeiçoamento na história é o alvo último das preocupações da Constituição e de todo o ordenamento jurídico.

Sobre trair-lhes de modo inconsciente as convicções declaradas, deixando entrever que admitem, no fundo, a licitude do sacrifício dos embriões excedentários como procedimento natural em relação a matéria humana dotada de certa dignidade ética, mas carente de vida plena, tamanha incoerência dos defensores da teoria da vida embrionária já lhes desacredita a tese ou deprecia a crença.

Manter congelado ou logo destruir organismo que já tenha vida em plenitude seria tão ou mais indigno e repulsivo do que destiná-lo a frutuosas pesquisas científicas a bem da humanidade. Daí porque, vergando-se talvez à recôndita certeza de que células-tronco embrionárias isoladas não contém vida no rigoroso sentido biológico e jurídico-constitucional da palavra, não condena a requerente, em nenhum passo de sua atuação na causa, a produção necessariamente ilimitada, nem o anunciado e rotineiro sacrifício de embriões excedentes. Nem pleiteia tampouco o que seria o mais conspícuo disparate de obrigar a conservá-los congelados ad aeternum ou de submetê-los despoticamente a implantação sistemática em úteros de mulheres, mediante aplicação simultânea de vis corporalis e de vis compulsiva, em prática inconcebível e degradante que aviltaria a dignidade humana. Nisso guarda coerência.


Mas não posso deixar de insistir na inexplicável contradição em que se enreda essa atitude, a qual, como signo do antagonismo irracional às pesquisas, condena a destruição das células embrionárias excedentes para fim de desenvolvimento de experiências científicas com propósitos terapêuticos, mas aquiesce ao seu inútil sacrifício no descarte final inexorável, como se, em ambos os casos, não houvera aniquilação ilícita da mesma vida pressuposta!

Convém referir e discutir, neste ponto, com RUSSEL KOROBKIN,[18] duas posturas que, pretendendo validar a cerrada oposição às pesquisas com as células embrionárias, sintetizam de algum modo as concepções comuns de que o blastócito constitui equivalente moral de pessoa e, como tal, predica, nos planos ético e jurídico, o mesmo indiscutível valor que impede sejam ambos submetidos a experimentos científicos, sobretudo capazes de destruição. A primeira sustenta que blastócitos e pessoas são idênticos nas qualidades que lhes atribuiriam e justificariam a mesma dignidade moral e o conseqüente tratamento jurídico. A segunda afirma que, conquanto se diferenciem das pessoas sob importantes aspectos, os blastócitos guardam o potencial de se transformarem em pessoas, donde gozarem do mesmo estatuto moral e jurídico destas.

É certo que, salvo o caso de gêmeos idênticos, cada blastócito contém, ativo, um genoma humano único. Mas o reconhecimento da posse desse material genético de pessoa não é suficiente para lhe fundar e estender idêntico valor moral e jurídico. É que há hoje, ao propósito, relativo consenso científico de que a presença de alguma estrutura de neurônios, que exige transcurso de certo tempo no processo, é requisito mínimo indispensável para induzir o status moral de uma pessoa. Ora, cinco dias depois da fertilização, o blastócito não tem nenhuma capacidade de interagir com o mundo exterior, nem de experimentar afetos, de modo que não pode, sob esse ponto de vista, equiparar-se em valor ao ser humano, do qual só apresenta uma característica, que é o DNA.

Por outro lado, o termo potencialidade assume, no segundo argumento, conotação muito mais larga do que pode semanticamente suportar, pois, como expressão de propriedade conceitual, implica a idéia de aptidão de tornar-se algo mais por si mesmo, sem intervenção ou assistência externa (self-actualizability), ou já de elevado grau de probabilidade de tornar-se algo mais (likelihood). Mas, fertilizado em laboratório, o blastócito não tem nem uma coisa nem outra, assim porque precisa ser transplantado para útero de mulher para adquirir tal potência ou capacidade, como porque, não passando, segundo as estatísticas, de vinte a quarenta por cento suas chances de bom sucesso na implantação uterina, é muito baixo o nível de probabilidade de transformação.

De mais a mais, e esta é incisiva objeção de KOROBKIN, igual potencialidade poderia ser reconhecida, com todas as conseqüências éticas e jurídicas, ao esperma e ao óvulo humanos:

“If a five-day-old in vitro blastocyst is inviolate because of its potential (understood without any bounds) to develop into a human life, it is hards to say why each individual egg or sperm cell does not have the same potential and therefore deserve the same consideration. Under appropriate conditions, with help from humans, and with a fair bit of luck, these cells (which also possess human DNA) also have the potential to develop into a person. If SCNT one day makes the cloning of humans possible, then it might also become literally true that every human cell of any type will have the potential to develop into a person, but it seems quite a stretch to think that this potential would render the destruction of any individual cell a moral transgression or that the value of a single skin cell should be considered comparable to the value of a person.”[19]

(Se um blastócito in vitro de cinco dias é inviolável em virtude do seu potencial (compreendido sem qualquer limite) de desenvolvimento em uma vida humana, é dificultoso dizer por que cada ovo ou célula de esperma, individualmente, não tenha o mesmo potencial e, portanto, merece a mesma consideração. Sob condições apropriadas, com ajuda de humanos, e com um pouco de sorte, essas células (que também possuem DNA humano) da mesma forma têm o potencial para desenvolver-se em uma pessoa. Se uma SCNT[20] (transferência do núcleo de célula somática) um dia tornar a clonagem de humanos possível, então também seria literalmente verdadeiro que toda célula humana de qualquer tipo terá o potencial de se desenvolver em uma pessoa, mas parece quase exagerado pensar que este potencial faria com que a destruição de qualquer célula individual fosse uma transgressão moral ou que o valor de uma única célula epitelial deveria ser considerado comparável ao valor de uma pessoa.)


Como se vê, o argumento prova demais.

Em suma, a potência ou potencialidade que, deveras, existe no zigoto, enquanto capacidade para se modificar de tal forma que possa perfazer todas as determinações do programa de um ciclo vital que ainda se mantêm apenas virtuais, deve entendida em sentido mais restrito, que não basta para a identificar ou definir como vida pré-natal, nem para reivindicar-lhe à substância, por equivalência ou analogia, o estatuto ético-jurídico de pessoa.

6. Não é tudo, porém. A condição de embrião congelado não se deixa envolver nem abraçar pelo próprio conceito de vida que, compondo o substrato de opiniões dominantes em diversos setores das ciências físicas e da própria filosofia, deve ser recolhida pela reflexão dogmática e pela inteligência do ordenamento jurídico, ainda que a título de verdade provisória, mas como única disponível, no estágio atual do conhecimento, para julgar e decidir, à luz de critérios não arbitrários, a questão posta de constitucionalidade.

Não convém, aqui, deixar de acentuar a relativa submissão da ordem jurídica às visões e juízos científicos da realidade sobre a qual deve operar:

“Qualsiasi scelta di ordine giuridico dovrebbe presupporre una considerazione obiettiva della realtà sulla quale vorrebbe incidere. In particolare, risulterebbe contraddittoria per il diritto, in quanto strumento do organizzazione sociale, la pretesa di descrivere secondo esigenze precostituite le situazioni di fatto nei confronti delle quali sia di volta in volta chiamato ad operare.

Se ciò è vero, non può in alcun modo configurarsi, rispetto al nostro tema, un concetto giuridico autonomo di vita prenatale. Il diritto, piuttosto, deve giustificare razionalmente le modalità del suo attegiarsi rispetto alla tutela della vita humana intendendo ques’ultima quale dato preesistente alla elaborazione normativa.

In questa propettiva, sarà necessario muovere dalla definizione della vita offerta dalla biologia, per poi considerare se possano riternersi fondate altre nozioni di esistenza umana e se eventualmente ad esse, invece che al paradigma biologico, debba rifersi l’ordinamento giuridico.”[21]

Nenhum dos muitos e ilustres cientistas ouvidos de um modo ou noutro nesta causa, favoráveis ou contrários à promoção de pesquisas com células-tronco de embriões, negou que o fenômeno vida se apresenta e define, em substância, tipicamente como processo. Dos debates relevo, sobretudo dentre os ferrenhos opositores das investigações, que LENISE MARTINS GARCIA, para descrever a idéia básica de vida, aludiu à existência de “diferentes fases” do “ciclo da vida”, reconhecendo-lhe caráter cinético e concordando em que, “para o embrião humano ir à frente, ele precisa estar no útero, precisa ser implantado”.[22] CLÁUDIA DE CASTRO BATISTA asseverou, textualmente, que “a vida humana é um processo contínuo, coordenado e progressivo. A partir da fecundação, do óvulo com o espermatozóide, acontece, logo em seguida, a primeira divisão e assim consecutivamente (…). Portanto, é a fecundação que permite que o desenvolvimento seja disparado e prossiga por si mesmo.”[23] ANTÔNIO JOSÉ EÇA, também adversário das pesquisas, acentuou que “a vida igualmente se dá através de um processo que se inicia no momento da concepção.”[24] Foi ainda mais incisiva ELIZABETH KIPMAN CERQUEIRA, ao advertir que ser vivo é “aquele que tem um início, segue processos (…) até a sua morte. (…) É aquele ser que tem um início, a partir de seu próprio potencial, da sua ipseidade, da sua imanência, daquilo que lhe é próprio, desenvolve-se num programa recebido através de um material genético.”[25]. E, logo mais adiante, referiu-se à vida como “processo de autoconstrução e de autodesenvolvimento, (…), ontogênese.”[26] E, por não alongar escólios em vão, ANTONIO CAMPOS DE CARVALHO condensa as opiniões de igual conteúdo, notando: “não pretendo discutir a questão sobre a origem da vida. Conforme dito por vários colegas que me precederam, tanto a favor quanto contra as pesquisas com células-tronco embrionárias humanas, entendo que a vida é um contínuo”.[27]


A convergência dos cientistas, sobretudo da área biológica, quanto à identificação da vida como processo ou fenômeno dinâmico, é reflexo do que já tinham percebido os filósofos, dentre cujas opiniões transcrevo, por todos, a de intelectual que é dos mais isentos no quadro da causa:

“Il y a maintenat une classe de corps particulièrement intéressants, et qui semble supérieurs à tous les autres: ce sont les corps vivants, depuis le plus humble microganisme jusqu’à l’organisme humain. Une propriété les distingue de tous les autres corps, c’est qu’ils se meuvent eux-mêmes; le sens comum, à cause de cela, admet en eux une âme ou principe de vie, irréductible à n’importe quels facteurs ou éléments physico-chimiques”[28]

(“Temos agora uma classe de corpos particularmente interessantes, e que parecem superiores a todos os outros: são os corpos vivos, desde o mais humilde microrganismo até o organismo humano. Uma propriedade os distingue de todos os outros corpos, é que se movem por si mesmos; por causa disso o senso comum admite neles uma alma ou princípio de vida, irredutivel a qualquer fator ou elemento físico-químico”).[29]

A natureza ou essência da vida como sucessão de eventos foi também percebida pelo nobre Min. Relator, CARLOS BRITTO, que nos regalou com expressiva descrição dos diferentes momentos e etapas da vida que se aninham “no âmbito de um processo”.[30]

E é, ao propósito, insuspeita a manifestação da CNBB, que, talvez o mais ardoroso dos amici curiae antagonistas dos experimentos, não destoa dessa percepção científica comum, ao sustentar que o embrião “é um ser humano, que, por força da lei natural, continuará a crescer, amadurecer, envelhecer e morrer, segundo o ritmo de tempo concedido a cada um.[31]

Como substantivo inerente aos humanos e a outras espécies, a vida, em qualquer de suas manifestações típicas, se propõe desde logo ao espírito como sucessão unitária e permanente de mudanças ou continuo processar-se, que distingue dos entes inanimados os chamados seres vivos. Do ponto de vista biológico, que é o que mais de perto interessa e serve à construção do correlato conceito jurídico-constitucional, não só “a formação e o desenvolvimento do embrião humano” podem ser considerados “um processo gradual, contínuo e coordenado desde o momento da fertilização”,[32] mas a própria vida, enquanto fenômeno inteligível, se reduz a essa idéia e postula igual conceito. Como acentua outra opinião não menos isenta, provinda aqui de notável jurista,

“è oggi ampiamente riconsciuto che, sotto il profilo biologico, l’unico ‘salto qualitativo’ riferibile alla trasmissione della vita avviene all’atto della fecondazione. Infatti, nel momento in cui il gamete machile penetra nell’ovulo femminile, dando luogo al c.d. sistema genomico, si producono modificazioni molecolari tipiche della formazione di una nuova vita, con le quali si instaura un processo destinato a svolgersi senza soluzione di continuità e senza necessità di ulteriori stimoli esterni”.[33]

Como se vê logo, todas as referências científicas e filosóficas à noção genérica de processo, compreendido como sucessão contínua de mudanças de acordo com diretriz unitária de desenvolvimento autônomo, para caracterizar em teoria e identificar em concreto a vida, radicam-se, em última instância, na idéia de movimento cujo princípio causal está no próprio movente, que por conseqüência se define como vivo. Noutras palavras, não há vida no ser que não tenha ou ainda não tenha capacidade de mover-se por si mesmo, isto é, sem necessidade de intervenção, a qualquer título, de força, condição ou estímulo externo. É o que me permito denominar aqui capacidade de movimento autógeno.


E isso não o têm os embriões congelados, cuja situação é só equiparável à de etapa inicial de processo que se suspendeu ou interrompeu, antes de adquirir certa condição objetiva necessária, capaz de lhe ativar a potência de promover, com autonomia, uma seqüência de eventos, que, biológicos, significam, no caso, a unidade permanente do ciclo vital que individualiza cada subjetividade humana.

Mas não é esse algo simples mas esclarecedor critério discretivo da qualidade do movimento autógeno, adotado pela biologia e pela filosofia para caracterizar os seres vivos, ou para, na sua falta, excluir de modo absoluto a existência de vida, que leva a negá-la aos embriões congelados. Em situações empíricas de emergência, nas quais a necessidade de resposta não deixa tempo a racionalizações – compreendido o vocábulo aqui no significado próprio de mecanismo psicológico de defesa que cria um conjunto de explicações alternativas e logicamente satisfatórias, mas todas falsas, para justificar atitude angustiante cujas verdadeiras motivações não conhece ou inconscientemente não aceita -, as pessoas surpreendem-se com reações prontas que revelam extraordinário discernimento dessa diferença que parece custosa. É o que demonstra ainda KOROBKIN:

“The intuition that a blastocyst lacks the moral value of a person is vividly demonstrated with the following hypothetica: Imagine that a fire starts in a fertility clinic and you must choose between saving a Petri dish containing two blastocysts and a five-year-old child.Is there any question that you should (and would) save the chid? The appropriate answer to the question is just as obvious if the blastocysts would be destroyed by the fire and the chid only injured. The reason is that the child possesses not only human DNA but also such qualities as sentience, consciousness, emotions, the ability to interact with the environment, and the capacity to experience pain.

Contrast this with a different hypothetical: Imagine that you must choose between saving a five-year-old child and a twenty-five- year-old adult in a fire. Here it is far from obvious that you either should or would choose the twenty-five-year-old. If you did choose to save the adult, it almost certainly would not be because she is at a more advanced stage in human development. Beyond some point, a human’s developmental stage is irrelevant to her moral worth. But prior to some point, the developmental stage does matter. The precise location of that point is difficult to determine, but it is less difficult to recognize that blastocysts have not reached it.”[34]

(A intuição de que um blastócito é desprovido do valor moral de uma pessoa é vividamente demonstrado pela seguinte hipótese: Imagine que incêndio tenha início em uma clínica de fertilização, e você deva escolher entre salvar uma placa de Petri que contém dois blastócitos e uma criança de cinco anos. Há alguma dúvida de que você deveria salvar a criança (e a salvaria)? A resposta apropriada a esta questão é igualmente óbvia, se os blastócitos fossem destruídos pelo fogo e, a criança somente ferida. A razão é que a criança possui não somente DNA humano, mas também características tais como sensitividade, consciência, emoções, a habilidade de interagir com o ambiente, e a capacidade de sentir dor.

Compare isso com hipótese diferente: Imagine que você deva escolher entre salvar, de incêndio, uma criança de cinco anos e um adulto de vinte e cinco anos. Neste caso, está longe de ser óbvio que você deveria escolher ou escolheria o adulto de vinte e cinco anos. Se você escolhesse salvar o adulto, quase certamente não seria porque este se encontra em um estágio mais avançado do desenvolvimento humano. Além de certo ponto, o estágio de desenvolvimento humano é irrelevante para seu valor moral. Mas, antes deste, o estágio de desenvolvimento é significativo. A precisa localização deste ponto é difícil de se determinar, mas é menos difícil reconhecer que um blastócito não o alcançou).

7. A demandante professa que a vida se dá “na, e a partir da fecundação (…) porque a vida humana é um contínuo desenvolver-se”.[35] E, invocando a ciência, chama o embrião de “agente do seu próprio desenvolvimento”, entendido este sob a expressão de “fluxo irreversível de eventos biológicos ao longo do tempo que só para com a morte”.[36] E assevera que a célula-ovo apresenta desenvolvimento contínuo, “porque o zigoto, constituído por uma única célula, imediatamente produz proteínas e enzimas humanas, é totipotente, vale dizer, capacita-se, ele próprio, ser humano embrionário, a formar todos os tecidos (…), constituindo-se um ser humano único e irrepetível”.


Ora, de um lado, tais afirmações não dizem absolutamente nada a respeito do autodesenvolver-se como ato ou processo em curso, pois tão-só reconhecem aos embriões a potência que, nos estritos termos e limites semânticos tolerados no confronto com a hipótese, pode atualizar-se, ou não, na cadeia autônoma de transformações biológicas em que se traduz o fenômeno da vida.

De outro lado, deixam transparecer o que me parece grave desconsideração ou depreciação da função biológica e da correspondente condição jurídico-normativa que, no quadro das indagações sobre o fato da nidificação, desempenha o útero da mulher, reduzido, na inicial, às expressões literais de mero “ambiente adequado” e de simples fonte de “nutrientes necessários” ao desenvolvimento do embrião.[37]

Se, por pressuposição, vida é processo, tem-se de concluir sem erro, como já antecipei, que, no caso das células-tronco embrionárias congeladas, o ciclo subjetivo de mudanças iniciado no momento da concepção foi suspenso ou interrompido, antes de lhes sobrevir a condição objetiva de inserção no útero, sem a qual não adquirem a capacidade de desenvolvimento singular autônomo que tipifica a existência de vida em cada uma. Ninguém tem dúvida de que, sem esse fato objetivo, futuro e incerto, da introdução do embrião em útero de mulher, o processo não retoma o curso geneticamente programado e, pois, não chega ao estágio em que pode atualizar-se a potência vital naquele contida. Logo, a fixação do óvulo fecundado na parede uterina é condição sine qua non de seu desenvolvimento ulterior e, como tal, constitui critério de definição do início da vida, concebida como processo ou projeto. Nele, está longe de ser coadjuvante ou secundário o papel causal representado pela participação do útero ou, antes, de todo o corpo feminino, que, como agente de complexas e ainda mal conhecidas interações físicas, biológicas e psicológicas com o feto, algumas das quais decisivas à conformação da sua irrepetível estrutura unitária de pessoa dada à luz, aparece como elemento intrinsecamente constitutivo da vida humana. A mulher não é, como a proveta, apenas um locus de procriação. Esta é, aliás, uma das muitas razões por que já sustentei alhures que “a vida intra-uterina é também valor constitucional proeminente”.[38]

O prognóstico ou a profecia de contínuo desenvolvimento do ciclo vital não convém, destarte, à realidade biológica dos embriões congelados, que, desde o instante do congelamento, deixam de reger-se pela lei natural que lhes seria imanente.

8. Todas essas razões, segundo as quais os embriões isolados não são, já do ponto de vista biológico, portadores de vida atual, nem podem equiparar-se ou equivaler a pessoas in fieri ou perfeitas, sequer no plano moral, não vejo como nem por onde a regra impugnada, que lhes dá análogo valor e qualificação ao incorporá-los na experiência jurídica e autorizar-lhes a destruição em experiências científicas de finalidades terapêuticas, mutile ou ofenda o chamado direito à vida, objeto da tutela constitucional. Os embriões humanos ditos excedentários, não são, enquanto tais, sujeitos de direito à vida, nem guardam sequer expectativa desse direito.

Até que seja implantado, carece o embrião extracorpóreo do impulso que, brotando apenas da conjugação das forças acolhedoras do ventre feminino, lhe reinfunde o sopro que perfaz a vida. Antes da superveniência dessa condição objetiva, a qual, independendo das aptidões virtuais inscritas no programa genético do embrião, pode ou não implementar-se, não há lugar para excogitação de paternidade em senso jurídico próprio mas genérico, senão apenas de poder jurídico de disposição dos doadores sobre o material fertilizado. O casal que forneceu os gametas para a formação do zigoto possui relativa mas indiscutível disponibilidade jurídica sobre ele.[39]

E é este, a meu aviso, o ponto nodal da causa, cuja pretensão tende, no fundo, a subtrair ou a mutilar esse poder jurídico de disposição dos casais sobre os embriões, que não é negado nem contestado por ninguém, quando exercido com o propósito de determinar-lhes o destino de reprodução, de congelamento ou de descarte. E, deveras, tal poder, inerente à liberdade e ao domínio plenos que o ordenamento jurídico sempre reconheceu às pessoas sobre a produção e o uso das suas células reprodutivas presentes no esperma e no óvulo, ninguém o pode contestar ou negar, sem claro e gravíssimo insulto à dignidade humana.


Ora, assente que a natureza do estatuto moral e jurídico do embrião isolado não muda segundo o destino prescrito pelo casal que o gerou, porque guarda, em qualquer hipótese decisória, a mesma elevada dignidade ética e jurídica de sua origem e do seu papel primordial na instauração de todo processo que se converte em vida humana, então não se encontra fundamento algum, nem puramente lógico, biológico, nem jurídico, para, sob pretexto de violação dessa dignidade, espoliar o casal do mesmo poder jurídico de dispor de suas células-tronco embrionárias para pesquisas científicas de cunho terapêutico, tal como pode licitamente fazê-lo para fins não tão nobres ou para sorte de todo inútil, como de as congelar sem limite ou destruir sem proveito. A restrição preconizada é arbitrária, ou supersticiosa.

Tal irracionalidade, que está em distinguir posições substancialmente jurídicas idênticas sem razão palpável, é que, a meu aviso, compromete, sem remédio, a tese da demanda. Respeitadas as condições legais, prevalece no tema, sem óbice nem limitação constitucional, a plena autonomia jurídica da vontade dos genitores para, na destinação das células-tronco embrionárias, adotar qualquer das alternativas que a lei contempla ou o ordenamento não veda, quais sejam, implantação, doação para adoção, congelamento, destruição por descarte, ou doação para pesquisas científicas de finalidade exclusivamente terapêutica.

9. Não me impressiona nem perturba a objeção de que, à luz dessa liberdade jurídica, poderia conceber-se a vida em úteros artificiais criados pelo inventivo engenho humano. Este tenebroso e hipotético cenário merece da consciência universal e de todas as ordens jurídicas a mais veemente repulsa, porque supõe admitir a reificação dos embriões e do processo mesmo de reprodução, em lucubração de todo em todo incompatível com a intangibilidade ética e constitucional da dignidade humana. Se houvera viabilidade técnica e possibilidade prática de vida humana exógena, independente da intervenção do útero, sua produção seria ética e juridicamente reprovável, não apenas por sua perversidade intrínseca, mas também porque aviltaria, senão que aniquilaria a mulher, não só como pessoa, mas sobretudo como figura e função maternas, essenciais à sobrevivência da espécie, e, como tal, corromperia nosso senso de civilização e aprestaria o colapso da humanidade. Em suma, seria prática manifestamente alheia ao limites conceituais e ao alcance do poder jurídico de disposição garantido aos genitores.

A mesma conclusão aplica-se ao receio de risco, que não é próximo nem real, de se “classificar as pessoas entre aquelas que são normais, aquelas que são adequadas e inadequadas à nossa sociedade.”[40] A resposta à indagação teórica de LENISE GARCIA – “se detecto uma doença genética em um embrião, eliminarei esse embrião?” – não pode deixar de ser, ainda nos quadrantes do ordenamento jurídico, insofismavelmente negativa. Trata-se de mera conjectura que, remetendo-se a práticas históricas hoje de todo em todo condenáveis, inauguradas em Esparta e retomadas pelo regime nazista, esbarra desde logo em proibição expressa da lei e na reprovação última da Constituição, a ambas as quais repugna qualquer projeto eugênico.

10. Convém, aliás, não perder de vista o objeto específico da questão de constitucionalidade da norma impugnada, cuja autorização de uso adscreve-se a embriões já congelados à data de publicação da Lei,[41] com três anos completos ou por completar de congelamento, após esse termo, ou, ainda, já inservíveis, que como tais não foram nem serão nunca implantados e, por conseguinte, não gerarão seres humanos. E seu uso lícito, devo adiantar e frisar, é, à luz da Constituição, restrito a pesquisas e experimentos científicos preordenados exclusivamente a desenvolvimento de terapias. Nenhum tipo de experiência eugênica é aí admitido, donde a nítida diferença entre material congelado, de que se cogita na causa, e células-tronco embrionárias já implantadas ou que devam sê-lo em algum corpo feminino.

No caso, o blastócito pode ser utilizado para gerar linhagens celulares, jamais para propiciar manipulação ou sondagem genética e posterior inserção em útero. Por isso, cogita a lei apenas de embriões produzidos mediante técnica de fertilização in vitro e – note-se a conjunção – “não utilizados no respectivo procedimento”. E isso significa, com toda a clareza possível, que os embriões destinados à pesquisa, porque satisfeitas todas as condições previstas no caput, incisos e parágrafos do art. 5º da Lei, não foram nem nunca poderão ser usados para implantação. A par dos embriões inservíveis, que jamais seriam implantados em razão de suas anomalias genéticas ou deformidades morfológicas,[42] têm-se os antigos, com mais de três anos de congelamento.


Também embriões congelados há menos tempo, a rigor, já se ressentiriam de presunção de aproveitabilidade reprodutiva. Mas aquele prazo foi estabelecido por legítimo alvitre político-legislativo, que considerou não só aspectos científicos ligados a exigências de um termo de provável serventia genético-reprodutiva, mas também fatores de ordem sociológica e psicológica, relacionados à necessidade de tempo para amadurecimento da decisão dos provedores de gametas, que detêm o poder de disposição jurídica sobre o material genético que constitui prolongamento das suas próprias pessoas.

Como o que está em jogo, pois, não é somente a probabilidade de bom sucesso da fertilização, são irrelevantes as referências, feitas algures,[43] a casos, aliás conhecidos nos meios científicos, de pessoas sadias geradas a partir de embriões congelados havia mais de três anos, precisamente sete[44] e, até, doze anos.[45] Eventual certeza científica de que embriões com mais de três anos de preservação criogênica não sejam sempre inviáveis, embora apresentem sobremaneira aumentadas as possibilidades de anomalias e malformações, não é razão definitiva nem suficiente contra a realização de pesquisas com CTE.

Não obstante embriões antigos ou ainda inviáveis possam, tecnicamente, gerar pessoas, seu uso em pesquisas está sempre condicionado à autorização dos provedores dos gametas, que, como se viu, têm relativa disponibilidade jurídica sobre o produto da concepção antes de sua introdução no útero. Assim, na hipótese concreta, não há dúvida de que o consentimento informado dos genitores, emitido na esfera desse poder jurídico, implica autêntica, automática e irrevogável renúncia à faculdade de produzirem vida a partir do material genético de que dispuseram. A doação para fins de pesquisa é, numa metáfora processual, verdadeira preclusão lógica do poder de gerar filhos com os embriões doados. Em suma, com o ato de doação perdem aquele poder jurídico.

11. A manterem alguma coerência, os opositores das pesquisas com células-tronco embrionárias deveriam, ademais, conceder que as próprias técnicas de fertilização artificial são, do ângulo das suas premissas, em tudo e por tudo inaceitáveis.[46]

Já que seu argumento é baseado num principio, não poderiam justificar a criação artificial de embriões e dos conseqüentes seres humanos por via de raciocínio instrumental, mediante cálculo entre meios e fins, tendo em vista o objetivo da procriação. Afirmar, subentender ou supor que, para gerar vida humana, a manipulação é, moral e juridicamente, admissível, mas, quando se trate de empregar embriões em pesquisas que podem salvar vidas, seja a prática condenável, contradiz o princípio mesmo que alegam defender. O desvio da ordem natural das coisas é exatamente o mesmo em ambos as hipóteses. De modo que, sob sua ótica, não faria sentido permitir que o ser humano pudesse ousar criar a vida.[47] E esta é mais uma das contradições em que se enleiam e perdem, até porque é agora marginal e sem nenhuma ressonância a crítica indiscriminada da produção extracorpórea de embriões, a cujo respeito sintetiza CLAUS ROXIN:

Não se questiona a legitimidade de um tal procedimento. Afinal, o embrião não é lesionado, mas conduzido a seu destino natural, uma vez que, após a sua implantação no corpo da mãe, o embrião se desenvolve naturalmente até tornar-se um homem”.[48]

Não custa insistir em que o só início do processo, como etapa estancada e destacada, não é ainda o processo em ato que revela e define a vida. Esta não pode reconduzir-se ao estágio inaugural do processo que foi suspenso ou interrompido por uma causa artificial, nem se pode dizer que o uso de embriões em pesquisas equivalha a destruir a vida, enquanto indébita interferência externa no curso natural de seu desenvolvimento programado. O processo é aí interrompido ou suspenso, pelo congelamento, de modo tão artificial quanto aquele mediante o qual começou, pela fertilização in vitro.[49] Somente uma condição objetiva, futura e incerta, consistente na introdução do embrião no útero materno, pode dar impulso à concretização da vida como movimento autógeno. Só essa intervenção de fator externo, de certo modo antinatural no contexto e aviada pelas mesmas mãos que fundiram os gametas no laboratório e os armazenaram em receptáculo criogênico, é capaz de promover a coexistência do embrião com a entidade que o transformará, aí sim, em vida: o útero materno[50]. Em síntese, ou a vida decorre da concepção natural, em que há um continuum definidor da existência de processo vital em ato, ou seu impulso fica subordinado a certa condição por realizar[51].


12. Estou consciente de que tal postura introduz ou desperta, e não apenas perante nosso ordenamento, alguns sérios problemas jurídicos paralelos, relacionados com métodos contraceptivo-abortivos, designadamente a chamada “pílula do dia seguinte” e o dispositivo intra-uterino (DIU).[52] Tais questões não concernem à causa, mas não há como não reconhecer aqui que essas técnicas provocam interrupção do fluxo contínuo do ciclo vital, que deixa de seguir o curso autônomo geneticamente predeterminado da evolução de uma subjetividade singular.

Mais importante, no caso, do que fixar um ponto arbitrário na linha do tempo para situar o preciso momento do início da vida, é discernir, à luz das premissas postas, três fatos incontestáveis e decisivos: que se não verifica a fluência necessária para caracterização da vida como movimento autógeno (i); que a origem da matéria-prima genética considerada é sua concepção in vitro (ii); que tampouco se dá interrupção do curso da vida, porque, antes de este começar no ventre materno, lhe adveio a suspensão do processo pelo congelamento.

Aliás, não custa repetir que, nas pesquisas em questão, todos – absolutamente todos – os embriões foram criados como resultado de manipulação genética pelo homem. Essa manipulação, não contestada pela requerente, teve como objetivo imediato a procriação, mas, dadas as características da fertilização in vitro, que recomenda a produção de mais embriões[53] do que os efetivamente implantados – dos quais, aliás, nem todos serão bem-sucedidos – houve a formação de um contingente excedente de embriões, os supranumerários. É deles, e apenas deles, de que se trata.

III. Os embriões humanos ostentam dignidade constitucional, embora em grau diverso daquele conferido à vida das pessoas humanas.

13. Pesa-me, no passo seguinte de meu raciocínio, divergir do eminente Min. Relator, no ponto em que S. Exª proclama que a proteção normativa dos embriões residiria no nível infraconstitucional,[54] parecendo nisso admitir, de maneira implícita, possibilidade de cenário diverso, no qual pudera faltar-lhes essa mesma tutela.

Prefiro confrontar a lei impugnada com a Constituição, porque, como já antecipei, entendo provenha diretamente dela, ainda que em grau ou predicamento mais reduzido em comparação com os das pessoas, o substrato jurídico para o reconhecimento e garantia de específica tutela dos embriões, dada sua dignidade própria de matriz da vida humana. Noutras palavras, estou em que os embriões devem ser tratados com certa dignidade por força de retilínea imposição constitucional. E o fundamento intuitivo desta convicção é a dimensão constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), enquanto supremo valor ético e jurídico, de que, posto não cheguem a constituir equivalente moral de pessoa, compartilham os embriões na medida e na condição privilegiada de única matéria-prima capaz de, como prolongamento, re-produzir e multiplicar os seres humanos, perpetuando-lhes a espécie.

14. Porque embriões congelados não têm vida atual, suscetível de proteção jurídica plena (art. 5º, caput), eliminá-los não constitui, em princípio, crime, nem ato ilícito menos grave. Mas este juízo abstrato não dispensa o intérprete de apurar se, em qualquer hipótese, independente do fim a que se predestine, está sempre a salvo a compatibilidade entre o tipo de destruição de embriões excedentes ou inaproveitáveis e a dignidade e o estatuto jurídico-constitucionais de que se revestem. Nesta, como em outras tantas questões jurídicas, é preciso discernir.

Para reinfundir-lhes a embriões isolados o impulso vital que transforme em ato sua totipotência, é preciso implantá-los em útero feminino. Ora, assim no caso de desembaraço puro e simples de células-tronco embrionárias, como no de seu sacrifício em experimento científico de finalidade terapêutica, a implantação jamais se dará, porque já tecnicamente impossível ou inviável, ou porque não desejada ou não consentida pelos genitores.[55]

É certo, a meu aviso, que nem todo tratamento ou destinação última de células embrionárias se harmonizam com o grau de valor ético e de tutela constitucional que se lhes devem reconhecer, assumindo, em algumas hipóteses, como as de clonagem, projetos eugênicos e engenharia genética, a natureza criminosa de severos atentados à dignidade humana, mas nelas não se pode incluir o descarte de embriões congelados. Por mais paradoxal que à primeira vista se revele, o raciocínio não sofre, porque em si o embrião, que não pode vindicar sequer expectativa de direito à vida, é deveras protegido pelo ordenamento jurídico, mas tal proteção lhe não assegura direito subjetivo de evoluir e de nascer. Doutro modo, fora mister descobrir ou inventar absurda obrigação jurídica de gerar filhos, com inconcebível recurso a métodos de forçada fertilização em massa!


Ora, bem, se o despretensioso e rotineiro descarte de embriões congelados, como ato que não traz benefício algum à sociedade, é autorizado pela ordem constitucional, a fortiori é-o seu emprego em pesquisas científicas dirigidas exclusivamente ao desenvolvimento de terapias. Cabe, aqui, estoutra opinião de KLAUS ROXIN, invocada com toda a pertinência por um dos amici curiae:

“(…) enquanto um embrião destruído não cria qualquer valor positivo, um embrião que não possa mais ser salvo, e que seja sacrificado para fins de pesquisas pode contribuir consideravelmente para a futura cura de doenças graves (…) Quem renuncia a esta possibilidade não serve à vida, mas a lesiona”.[56]

15. A legislação infraconstitucional posta sobre o tema, à qual os críticos lhe não regateiam os atributos de “prudência e moderação”,[57] cerca de eficientes e compreensíveis cuidados o manejo desse nobre material genético, aliás em reverente e linear submissão às exigências constitucionais. Veda-lhe a comercialização. Proíbe a produção intencional de embriões para pesquisas. Obriga as instituições e serviços de saúde a obter autorização dos respectivos comitês de ética e pesquisa. Tipifica como crime, punível com detenção de um a três anos e multa, o uso de embriões em desacordo com o disposto no art. 5º. Pune, com penas de reclusão ainda mais acerbas, a engenharia genética em material genético ou embrião humanos (art. 25), bem como a clonagem humana (art. 26).

A racionalidade da lei inspira-se também em outros valores de estatura constitucional, em particular o amplo direito à vida com dignidade daqueles cuja saúde, sobretudo física, depende de tratamentos que possam, eventualmente[58], resultar das pesquisas com células-tronco embrionárias.[59] É o caso, também, da admissibilidade da doação de embriões para adoção reprodutiva e do rigoroso controle biossanitário de seu descarte. Daí, aliás, se infere, logo, que sob nenhum aspecto esta causa envolve conflito de normas ou de princípios constitucionais, nem, por conseguinte, necessidade de recurso ao critério mediador da proporcionalidade, cuja invocação, de todo modo, em caso de algum contraste hipotético ou aparente, não excluiria à lei as qualificações de adequada,[60] necessária[61] e proporcional em sentido estrito.[62]

16. Mas o direito posto, e aqui se confirma uma das minhas divergências mais relevantes com o brilhante voto do ilustre Min. Relator, não poderia, a meu ver, ser diferente. Se a lei subalterna não previsse, nos significados emergentes dos textos normativos interpretados à luz da Constituição, estratégias eficazes para resguardo da dignidade imanente aos embriões, seria inconstitucional.

18. E, nesse contexto, é mister extrair-lhe, ainda com apoio na técnica da chamada interpretação conforme, todas as garantias inerentes à intangibilidade constitucional do genoma humano, na sua expressão e valor de programa hereditário que identifica, caracteriza e distingue, na sua irredutível singularidade, toda pessoa humana, sobretudo no plano prático das limitações necessárias das pesquisas científicas e da regulamentação de um sistema de atribuição e controle de responsabilidades, sem as quais não se passa dos apelos dos princípios gerais à instauração de uma práxis consentânea.

E a primeira e mais importante dedução respeita à inteligência das expressões “para fins de pesquisa e terapia” e “pesquisa ou terapia”, constantes do caput e do § 2º da lei, cujo único significado normativo afeiçoado ao disposto no art. 6º, III, que proíbe engenharia genética em célula germinal, zigoto e embrião humanos (art. 6º, III), e à própria Constituição, que não toleraria degradação destes organismos, é de autorização exclusiva de uso de células-tronco embrionárias em pesquisas para fins exclusivamente terapêuticos. Para ser mais claro e preciso, nem a Constituição nem a lei permitem produção de embriões humanos por fertilização in vitro senão para fins reprodutivos no âmbito de tratamento de infertilidade, nem tampouco o uso de excedentes em pesquisas ou intervenções genéticas que não sejam de caráter exclusivamente terapêutico (a).


A segunda observação está em que, não obstante haja a lei instituído, para fiscalização e controle das múltiplas atividades regulamentadas incidentes sobre os chamados organismos geneticamente modificados (OGM), o Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) e as Comissões Internas de Biossegurança (CIBios), além de prever a atuação de “órgãos e entidades de registro e fiscalização”, como os Ministérios da Saúde, da Agricultura e do Meio Ambiente, relegou os deveres substantivos dessa tremenda responsabilidade, quando tratou das pesquisas com CTE, apenas aos comitês de ética e pesquisa (CEP) das respectivas instituições e serviços de saúde (art. 5º, § 2º).

Esses comitês, cuja pontual disciplina em vigor consta da Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996, do Conselho Nacional de Saúde, são formados por, pelo menos, sete profissionais das mais variadas áreas (saúde, ciências exatas e humanas: juristas, teólogos, sociólogos, filósofos, bioeticistas) e, no mínimo por um representante dos usuários da instituição ou do serviço. Embora lhe ressalte a heterogeneidade disciplinar e a respectiva autonomia, prevendo, em tese, sua independência (itens VII.5 e VII.12), estatui a Resolução, no item VII.9, que “a composição de cada CEP deverá ser definida a critério da instituição”.

Tal regra envolve, quando menos, sério risco de ocorrência daquilo que a teoria econômica denomina problema de agência[63], ou seja, grave conflito de interesses que compromete a independência da entidade, enquanto instância imediata responsável pela garantia de rigorosa observância das gravíssimas restrições de ordem constitucional e legal das pesquisas autorizadas. Na reconstituição desse quadro deficiente, a possibilidade real de dominação ou subjugação dos comitês pelas instituições e serviços não pode ser ignorada, nem subestimada. A incerteza ou omissão da lei, ao propósito, apesar de não afrontar, no sentido etimológico da palavra, a Constituição da República, deixa de atender-lhe a uma exigência essencial à eficácia prática da tutela outorgada às células-tronco embrionárias, porque por si só é inoperante a qualificação teórica de antijuridicidade de certos comportamentos. Como já se acentuou na Itália, à falta de normas penais expressas sobre o assunto,

“l’importanza della riflessione sull’antigiuridicità attuale di determinate condotte, pur in assenza di corrispondenti norme sanzionatorie, non va transcurata. La ‘nuda’ antigiuridicità, infatti, non è priva di riflessi pratici”.[64]

17. Ora, as células-tronco embrionárias não são OGM (art. 3º, §1º), donde as pesquisas e experimentos que as tomem por objeto não se sujeitam a controle direto do CNBS, da CTNBio, nem da CIBio. Qual, então, a solução viável, reclamada por injunção constitucional? Não pode ser a de os submeter a essas instituições, porque sua composição e tarefas são outras, nem a de esta Corte criar por si órgão congênere, porque carece da competência de legislador positivo para condicionar a validade da lei.

A legislação vigente precisa ajustar-se, no ponto, aos ditames constitucionais, para que compreenda, no alcance de normas mais severas e peremptórias, todos os responsáveis pelo efetivo controle que pretende seja exercido, sobretudo pelo Estado, de modo bastante próximo“.[65] Isto exige edição de lei específica para cominação de responsabilidade criminal, ou interpretação que não excluísse das hipóteses legais da lei vigente, à primeira vista só imputável aos pesquisadores, os integrantes dos comitês de ética e pesquisa. Não sendo possível, no âmbito da função jurisdicional, nem a criação de normas, nem tal extensão hermenêutica em matéria criminal, será preciso acentuar, perante a ordem constituída, a responsabilidade penal dos membros dos comitês de ética (CEPs) e da própria Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP/MS), nos termos do art. 319 do Código Penal, sob pena de ficar dúvida sobre a existência de instrumentos de intimidação ou inibição legal com força suficiente para, acomodando as normas à Constituição, refrear a tendência à lassidão ou à estudada passividade no controle das pesquisas. É que os membros do comitês estão obrigados a: a) revisar os protocolos de pesquisa, para os aprovar, até sob condições, ou não; b) acompanhar os desenvolvimento dos projetos; c) receber denúncia de abusos e irregularidades, fazendo instaurar sindicância a respeito e decidindo sobre a continuidade, modificação ou suspensão da pesquisa (item VII.13, letras a, b, d, f e g). E os da Comissão Nacional de Ética têm dever de aprovar e acompanhar os protocolos nas áreas temáticas de genética e de reprodução humanas, provendo normas específicas no campo da ética em pesquisa, bem como de rever responsabilidades, proibir ou interromper pesquisas, definitiva ou temporariamente (item VIII.4, letras c, d e f). E, considerando que todos são, para esses efeitos, reputados servidores públicos lato sensu, submetem-se àquele tipo penal (art. 319 do Código Penal), mas sem prejuízo de incorrerem nas penas dos delitos previstos nos arts. 24, 25 e 26 da Lei nº 11.105/2005, por omissão imprópria, quando, dolosamente, deixarem de agir de acordo com tais deveres (b).


Dada a superlativa magnitude do bens jurídicos envolvidos na causa, todos conexos com primado da dignidade da pessoa humana e das suas expressões genéticas, cujo imperativo de integridade radica na Constituição, mais do que conveniente, seria mister que o Parlamento logo transformasse todas as formas de inadimplemento de tão graves deveres em tipos penais autônomos, com cominação de penas severas (c).

Também tenho por indispensável submeter as atividades de pesquisas ao crivo reforçado de outros órgãos de controle e fiscalização estatal, declarando-lhes, expressa e inequivocamente, a submissão dos trabalhos, como da tribuna sugeriu a advocacia do Senado Federal, ao “Ministério da Saúde, (o) Conselho Nacional de Saúde e (a) Agência Nacional de Vigilância Sanitária”, na forma que venha a ser regulamentada, em prazo que delibere a Corte (d).

18. Diante do exposto, julgo improcedente a ação direta de inconstitucionalidade, ressaltando, porém, que dou interpretação conforme à Constituição aos artigos relativos aos embriões na legislação impugnada, para os fins já declarados (a, b e d).


[1] Argumento da AGU, fls. 87.

[2] “Art. 3º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina.”

[3] LUÍS P. VILLARREAL, Professor de Biologia Molecular e Bioquímica da Universidade da Califórnia em Irvine (EUA), explica de modo singelo o status da morte cerebral: “La vida también puede entenderse como una propiedad emergente a partir de un conjunto de elementos inertes. La vida y la conciencia constituyen ejemplos de sistemas complejos emergentes. Ambos requieren un nivel crítico de complejidad o interacción para alcanzar sus respectivos estados. Una neurona por sí sola (…) no posee consciencia; para ello se necesita la complejidad del cerebro entero. Incluso un cerebro humano intacto puede estar vivo y carecer de consciencia, es decir, en estado de ‘muerte cerebral’.” (¿Tienen vida los virus?, In: Investigación y Ciencia: Edición Española de Scientific American, n. 341, feb. 2005. g.n.).

[4] Cite-se, por exemplo, a agravante de o agente ter cometido o crime “contra criança, maior de 60 (sessenta) anos, enfermo ou mulher grávida” (art. 61, inc. II, “h”). Aliás, como no aborto a capacidade de reação do feto é nula, a legislação penal poderia até ter previsto pena maior que a aplicável ao homicídio, sem que isso significasse demérito da vida das pessoas.

[5] Esse é, no entanto, o argumento – incorreto no ponto – da CONECTAS, que, comparando a pena do homicídio com a do aborto, sugere haja, em relação à vida “da pessoa destinada a nascer, (…) uma valoração ‘pela metade’ de seu valor” (fls. 158). A ilação, tirada de forma automática entre o valor da pena e o valor do bem jurídico tutelado, não colhe.

[6] A AGU chega a conclusão correta, empregando, contudo, raciocínio que se não remete à Constituição. É verdade que há diferença entre vida intra-uterina e embriões não-implantados ou congelados, mas isso não decorre da incerteza do nascimento (relacionada à idéia de nascituro, “ser humano já concebido, cujo nascimento se espera como fato futuro e certo”, fls. 111). Deriva, sim, do não enquadramento dos últimos em nenhum conceito aceitável de vida.


[7] É inócua a afirmação da CGU às fls. 116 (“só tem direitos quem tem personalidade”), porque o material embrionário pode não ser sujeito de direitos, mas é objeto de proteção jurídica.

[8] p. 13. grifos nossos.

[9] A expressão, com o neologismo, consta do art. 1.597, inc. IV, do vigente Código Civil.

[10] fls. 114.

[11] p. 18 da manifestação data de 30.09.2005.

[12] Caracterização da dignidade da pessoa humana, Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 91, n. 797, p. 21, mar/2002.

[13] A proteção da vida humana através do direito penal. Trad. Luís Greco. Disponível em <www. mundojuridico.adv.br/cgi-bin/upload/texto808.doc>, acesso em 31.03.2008, g.n.

[14] TELLES JR., Goffredo da Silva. A Folha Dobrada – lembranças de um estudante. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 850.

[15] É evidente que, existindo vida de pessoa humana, sob qualquer forma e manifestação, deve ser protegida pelo ordenamento. É o caso, p. ex., dos fetos, sadios ou anencéfalos, das pessoas que, por infortúnio, sejam vítimas de deformidades, das mais leves às mais teratológicas, e ainda daquelas em estado terminal, todas dignas do maior respeito e proteção constitucionais. Assim também é o caso dos embriões implantados. Não, porém, dos simples embriões isolados, que, posto corporifiquem patrimônio genético humano, não têm vida no sentido e como objeto da tutela constitucional.

[16] Está no voto do Min. CARLOS BRITTO, p. 22: “não se nega que o início da vida humana só pode coincidir com o preciso instante da fecundação de um óvulo feminino por um espermatozóide masculino (…). Não pode ser diferente. Não há outra matéria-prima da vida humana…”

[17] p. 16 do memorial datado de 14.04.2007. Grifos nossos.

[18] Stem cell century. New Haven and London:Yale University Press, 2007. p. 29-34


[19] Op. cit., p. 34.

[20] Somatic cell nuclear transfer. Tecnologia utilizada para clonagem.

[21] EUSEBI, Luciano. La tutela penale della vita prenatale. Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale. Milão. fasc. 3, p. 1063-1064, luglio-settembre 1988.

[22] Transcrição dos debates, p. 59. Todas as referências e citações dos cientistas que intervieram na audiência pública de 20.04.2007 têm por fonte essa transcrição.

[23] Ibid., p. 64-66.

[24] Ibid., p. 103.

[25] Ibid., p. 108.

[26] Ibid., p. 112.

[27] Ibid., p. 194.

[28] MARITAIN, Jacques. Éléments de philosophie. Tomo I. Paris: Pierre Tequi, 1994, p. 118-119, nº 40. Grifos do original. No mesmo sentido, entre nós, GOFFREDO TELLES JUNIOR diz: A vida, a vida em si mesma, que é? (…) É evidente que a palavra ‘vida’, enquanto palavra, é um símbolo, como todas as palavras. Portanto, essa palavra pode ser usada para simbolizar as manifestações a que o pensador, levado por suas próprias tendências espirituais, quiser atribuir o nome vida. No campo rigoroso da ciência, porém, a palavra vida – como logo aprendi – tem sentido restrito. Ela designa, não o movimento, mas uma forma particular do movimento.” (Op. cit. P. 844. Grifos nossos)

[29] Introdução geral à filosofia. trad. Ilza das Neves e Heloísa de Oliveira Penteado. 7ª ed. Rio: Agir, 1966, p. 111, nº 40.

[30] Seu voto, p. 23.

[31] fls. 868.

[32] CLÁUDIA BATISTA. Transcrição, p. 70


[33] EUSEBI, Luciano. op. cit., p. 1064. Grifos nossos.

[34] Op. cit., p. 31.

[35] Afirmação, aliás, prontamente repelida pelo Min. Rel. CARLOS BRITTO, que considerou, com acerto, a meu juízo, o embrião confinado in vitroinsuscetível de progressão reprodutiva” (p. 27 do voto), isto é, incapaz por si só de desencadear o desenvolvimento contínuo do ciclo vital.

[36] fls. 3 e 5.

[37] fls. 5.

[38] In ADPF nº 54 – QO, j. 27.04.2005.

[39] Como afirmei, no julgamento da ADPF nº 54-MC, “no instante em que o transformássemos [o feto anencéfalo] em objeto do poder de disposição alheia, essa vida se tornaria coisa (res) porque só coisa, em Direito, é objeto de disponibilidade jurídica das pessoas. Ser humano é sujeito de direito.” Naquela hipótese, tratava-se de vida plena, posto que pré-natal; nesta, cuida-se de algo sobre o qual o ordenamento jurídico franqueia disponibilidade, de um lado, e, de outro, determina proteção. Pode, até, não sem abuso ou perigo, ser chamada de res, mas res especialíssima, matéria-prima da vida, enquanto metaforicamente assimilável ao barro, pó da terra ou solo (adamah, em hebraico) de que fala a tradição judaico-cristã, no Antigo Testamento (Gen. 2,7).

[40] p. 61.

[41] Até os cientistas contrários às pesquisas com CTE, como LENISE GARCIA, admitem que “a Lei tentou evitar justamente que se façam embriões especificamente para serem usados em pesquisas, porque isso abre todo um campo para comércio de embriões” (p. 223).

[42] Cf. as considerações de PATRÍCIA PRANKE, especialmente p. 17 e ss. O Decreto regulamentar nº 5.591, de 22 de novembro de 2005, define como inviáveis os embriões com alterações genéticas que tenham o desenvolvimento interrompido por falta espontânea de clivagem após vinte e quatro horas da fertilização in vitro, e os que apresentem modificações morfológicas que lhes comprometam o pleno desenvolvimento (art. 3º, inc. XIII).

[43] E.g., no pronunciamento de ALICE TEIXEIRA FERREIRA, p. 76.


[44] Id., ibid.

[45] RODOLFO ACATAUASSU NUNES, p. 133.

[46] Diz LYGIA PEREIRA: “Aceitamos as gerações desses embriões no dia em que aceitamos as técnicas de fertilização in vitro. É inerente dessas técnicas (…) a produção de um número excedente ou pelo menos descontrolado desses embriões, esses embriões sobram” (pp. 174-175). Já LENISE GARCIA assevera que “o marco ético era que eles nunca deveriam ter sido congelados, e o foram sem que a legislação brasileira tenha qualquer definição a respeito (…). A verdade é que a reprodução assistida no Brasil está num vácuo legal” (p. 224). Daí, a subordinação legal do uso do embrião em pesquisas à forma pela qual foi esse concebido e ao estado em que se encontra em dado momento (no caso, congelado).

[47] Essa posição é coerentemente defendida pela Igreja Católica no documento “Il rispetto della vita umana nascente e la dignità della procreazione, istruzione della congregazione per la dottrina della fede, 1987, donum vitae”, que condena a IVF, de acordo com o MOVITAE (p. 22 de sua manifestação).

[48] Op. cit., p. . Grifos nossos.

[49] A Resolução nº 1.358/1992, do CFM, cuida da matéria. No que toca à criopreservação de embriões, dispõe: “V – CRIOPRESERVAÇÃO DE GAMETAS OU PRÉ-EMBRIÕES. 1 – As clínicas, centros ou serviços podem criopreservar espermatozóides, óvulos e pré-embriões. 2 – O número total de pré-embriões produzidos em laboratório será comunicado aos pacientes, para que se decida quantos pré-embriões serão transferidos a fresco, devendo o excedente ser criopreservado, não podendo ser descartado ou destruído. 3 – No momento da criopreservação, os cônjuges ou companheiros devem expressar sua vontade, por escrito, quanto ao destino que será dado aos pré-embriões criopreservados, em caso de divórcio, doenças graves ou de falecimento de um deles ou de ambos, e quando desejam doá-los.”

[50] Não se está a defender, aqui, a teoria do início da vida na nidação. O 14º dia é apenas o momento que marca o princípio da formação de órgãos diferenciados. Não é o prazo em si que confere a dignidade constitucional de pessoa humana, mas um contexto claro de existência de vida, no qual é imprescindível a associação com o útero. Os embriões congelados, ainda que já datem de cinco dias, não gozam da mesma proteção franqueada às pessoas, suposto tenham certa dose de dignidade constitucional.

[51] Como bem notou, na audiência pública, MAYANA ZATZ, “a fecundação é uma condição necessária, mas não suficiente para o embrião se desenvolver.” (p. 08)


[52] Sobre a questão na Itália, p. ex., cf. EUSEBI, Luciano. op. cit., p. 1071-1072.

[53] Além da redução dos custos dos ciclos de recolocação de embriões no futuro, procura-se contornar o fator estatístico, que indica, entre nós, taxas de bom sucesso de 28% (a fresco) ou menos (na hipótese de congelamento) na obtenção de gestação (cf. PATRÍCIA PRANKE, p. 17 e ss.).

[54] Mesma opinião tem a CONECTAS: “neste caso, são as leis ordinárias, em ponderação legislativa, que dispõem sobre a suposta vida de embrião congelado (…) e dimensionam a sua proteção. (…) a Lei de Biossegurança reconhece que, mesmo que tais embriões não estejam sujeitos a mesma proteção constitucional do direito à vida conferia ao feto ou a pessoa já nascida, trata-se de material sujeito a alguma proteção. (…) Não bastaria ao legislador apenas relativizar a proteção jurídica da vida e da dignidade da célula-tronco embrionária para autorizar fazer-se qualquer coisa com tais células.” (fls. 157-160).

[55] Pode, é verdade, ocorrer implantação em caso da adoção de embriões, mas esse caminho está igualmente subordinado à deliberação dos genitores, porque tal possibilidade teórica lhes não subtrai nem reduz o poder decisório. Ademais, embora se sugira, utopicamente, que seria preferível a alternativa da adoção de embriões, como sustentaram, da tribuna, a CNBB e a PGR, estas entidades não têm dados para se contrapor ao fato estatisticamente comprovado da baixíssima aceitação social dessa prática.

[56] CONECTAS, fls. 163.

[57] MOVITAE, p. 06 de sua manifestação.

[58] Não se vê propósito em indagar acerca da suficiência, ou não, das pesquisas com células-tronco adultas (CTA), pois, tratando-se de argumento prático (practical reasoning), basta que a rotina contida na premissa conjectural – no caso, as pesquisas com CTE – “possa contribuir para a conclusão prática proposta, ou seja, fomentá-la, promovê-la (no sentido do verbo alemão fördern, cf. Virgílio Afonso da Silva, 2002, p. 36)… Utilizamos a expressão “contribui para” ou “fomenta” a fim de dar conta das mais variadas concepções sobre como uma ação pode colaborar para a consecução da meta. Seja necessária, indispensável, ou apenas aumente o grau de probabilidade de o agente conseguir atingir o fim, será uma justificativa para a ação.” (SILVA NETO, PAULO PENTEADO DE FARIA E. Estratégias argumentativas em torno da política de cotas (…): elementos de lógica informal e teoria da argumentação. Dissertação (Mestrado em Filosofia). Brasília: UnB, 2007, pp. 42-50). Por isso, não releva saber quais células-tronco, adultas ou embrionárias, estejam em etapas mais avançadas de pesquisas ou abram mais vastos horizontes terapêuticos. Como ambas contribuem para a persecução de um fim prestigiado pela Constituição, sem ferir-lhe outras normas ou princípios, reputam-se ambas adequadas, perdendo todo o sentido a discussão sobre a superioridade técnica de uma sobre outra.


[59] Aliás, do ponto de vista constitucional, o direito de uma família a ter filho não é maior nem mais nobre do que o de um doente a ter esperanças de salvar a vida ou aplacar o sofrimento, por meio do desenvolvimento de terapia para seus males.

[60] Cf. nota nº 54, supra.

[61] Porque, conquanto sejam também adequadas as pesquisas com CTA, não parecem elas representar expediente capaz de promover com igual amplitudee, traduzida aqui pela velocidade, plasticidade e versatilidade das CTE, a realização dos mesmos bens jurídicos.

[62] Insisto em que não há colisão alguma de princípios ou regras. Mas, se a houvera, a limitação do direito à suposta “vida” dos embriões (que estes não têm, como penso estar demonstrado) ou ao grau de sua dignidade ética e constitucional, seria suficientemente justificada pelo resguardo do direito à vida e à dignidade de todas as pessoas suscetíveis de serem beneficiadas pelos resultados das pesquisas, aliada à promoção da saúde e à livre expressão científica.

[63] JOSEPH STIGLITZ resume assim a teoria: “the principal-agent problem is simply the familiar problem of how one person gets another to do what he wants (…), ensuring that [the latter’s] behavior conforms with [the former’s] whishes” (Economics of the public sector, 3rd ed. New York: W.W. Norton, 1999, p. 202-203). Na hipótese, o problema é precisamente o oposto, já que não há relação de mandato: o grande risco é o de ocorrer subordinação dos CEP, que se tornariam agentes das instituições, em lugar de manter a altivez e a independência reclamadas. O alinhamento de interesses, neste caso, é ostensivamente deletério para todo o distema.

[64] EUSEBI, Luciano. op. cit., p. 1060.

[65] Acertado, a respeito, o diagnóstico do SENADO FEDERAL: “o único caminho eficaz do Estado, nesse campo, é a regulamentação, com o objetivo de prevenir abusos e arroubos desnecessários, bem como assegurar a observância de normas éticas” (fls. 240). E não menos sensata a sugestão de que a fiscalização deva ser exercida também pelo Ministério da Saúde, pelo Conselho Nacional de Saúde e pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

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