Posse para consumo

Cabe princípio da insignificância para militar preso com droga

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2 de junho de 2008, 21h43

O princípio da insignificância pode ser aplicado nos casos de militares processados pelo crime de posse de entorpecente. Para o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, é admitida “a aplicabilidade, aos crimes militares, do princípio da insignificância, mesmo que se trate do crime de posse de substância entorpecente, em quantidade ínfima, para uso próprio, ainda que cometido no interior de Organização Militar”.

O militar foi pego com droga para consumo próprio. Celso de Mello suspendeu a condenação imposta para o militar, assim como as medidas de execução da pena. A decisão foi tomada no julgamento do pedido de liminar em Habeas Corpus protocolado pela defesa de Alex Silva de Campos. O Superior Tribunal Militar negou o pedido de Habeas Corpus do acusado por entender que não caberia ao caso o princípio da insignificância.

No caso de entorpecentes, o entendimento do STM é o de que a droga gera indisciplina e por isso não pode ser considerada insignificante. A interpretação partiu do julgamento de uma Apelação que discutia a aplicação da nova Lei de Drogas (Lei 11.433/06), que impede a prisão de usuários e dependentes, para dois militares condenados por fumar maconha em local sujeito à administração militar. A decisão foi a de que o Tribunal não endossaria a nova Lei de Drogas porque seus dispositivos são incompatíveis com o Código Penal Militar. Na prática, a posse de droga não isenta o militar de crime.

Por outro lado, o Superior Tribunal Militar já aplicou o princípio da insignificância para um condenado por estelionato por tentar furtar cartão de crédito de um colega, causando prejuízo de R$ 100. O entendimento foi de que o valor furtado descaracterizaria o dolo.

No recurso julgado no Supremo, o ministro Celso de Mello afirmou que para esses casos é preciso considerar o princípio da intervenção mínima do Estado. “O Direito Penal não deve se ocupar de condutas que produzam resultado cujo desvalor — por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes — não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social”. De acordo com o ministro, o porte de pequena quantidade de droga não apresenta real ofensa, por isso não pode ser considerado crime.

Leia a decisão

MED. CAUT. EM HABEAS CORPUS 94.809-0 RIO GRANDE DO SUL

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

PACIENTE(S): ALEX SILVA DE CAMPOS

IMPETRANTE(S): MINISTÉRIO PÚBLICO MILITAR

COATOR(A/S)(ES): SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR

EMENTA: “HABEAS CORPUSIMPETRADO, ORIGINARIAMENTE, PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, POR MEMBRO DO MINISTÉRIO PÚBLICO MILITAR DE PRIMEIRA INSTÂNCIA. LEGITIMIDADE ATIVA RECONHECIDA. DOUTRINA. JURISPRUDÊNCIA. PORTE DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE. CRIME MILITAR (CPM, ART. 290). QUANTIDADE ÍNFIMA. INVOCAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA, COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL. POSSIBILIDADE DE SUA APLICAÇÃO AOS CRIMES MILITARES. PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.


O representante do Ministério Público Militar de primeira instância dispõe de legitimidade ativa para impetrarhabeas corpus”, originariamente, perante o Supremo Tribunal Federal, especialmente para impugnar decisões emanadas do Superior Tribunal Militar. Precedentes.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem admitido a aplicabilidade, aos crimes militares, do princípio da insignificância, mesmo que se trate do crime de posse de substância entorpecente, em quantidade ínfima, para uso próprio, ainda que cometido no interior de Organização Militar. Precedentes.

DECISÃO: Reconheço, preliminarmente, a legitimidade ativa do membro do Ministério Público Militar de primeira instância, para, mesmo em sede originária, impetrar ordem de “habeas corpusperante o Supremo Tribunal Federal, tal como sucede na espécie em exame (fls. 02).

Impõe-se registrar, neste ponto, considerado o magistério doutrinário (JULIO FABBRINI MIRABETE, “Código de Processo Penal Interpretado”, p. 1.461, item n. 654.2, 7ª ed., 2000, Atlas, v.g.), que a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem admitido a possibilidade de o representante do Ministério Público, embora com atuação nos graus inferiores de jurisdição, ajuizar, em nome do “Parquet”, ação originária de “habeas corpus” perante esta Suprema Corte (HC 84.307/RO, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 85.725/RO, Rel. Min. CELSO DE MELLO) ou junto a qualquer outro Tribunal judiciário:

Habeas corpus’. Impetração, pelo Ministério Público, em favor do réu. Legitimidade ativa ‘ad causam’ em qualquer grau de jurisdição. Inteligência do art. 654 do CPP. (…) O Ministério Público, em qualquer grau de jurisdição, tem legitimidade ativa ‘ad causam’ para impetrar ‘habeas corpus’ em favor do réu, por força do disposto no art. 654 do CPP.

(RT 764/485, Rel. Min. MOREIRA ALVES – grifei)

Recurso dehabeas corpus’. Impetração pelo Ministério Público. Impetração dehabeas corpus’ como qualquer pessoa e como promotor público. Garantia constitucional da liberdade, tem o Ministério Público o direito de impetrá-lo e, conforme as circunstâncias, o dever de fazê-lo, se tem conhecimento de coação ilegal. Recurso dehabeas corpus’ conhecido e provido para que o Tribunal de Justiça aprecie o mérito do pedido.


(RT 603/432, Rel. Min. OSCAR CORRÊA – grifei)

A presente impetração insurge-se contra decisão, que, emanada do E. Superior Tribunal Militar, encontra-se consubstanciada em acórdão assim ementado (fls. 15):

SUBSTÂNCIA ENTORPECENTEAPFLOCAL SOB ADMINISTRAÇÃO MILITAR.

Militar preso em flagrante, trazendo consigo substância entorpecente, quando pretendia consumi-la no interior da Unidade.

Materialidade delitiva configurada pelo Laudo de Constatação e Laudo de Exame de Substância Vegetal, este realizado pelo DPF, constatando resultado positivo para ‘cannabis sativa L’, devido à presença de canabinóides, inclusive o Tetraidrocanabinol (THC).

Autoria comprovada pela prova oral e confissão.

Jurisprudência pretoriana no sentido de que: ‘A pequena quantidade de entorpecente apreendida não descaracteriza o crime de posse de substância entorpecente.’

Pleito recursal, visando a reforma da Sentença por motivos humanitários e pequena quantidade da droga apreendida, não pode ser acatado por estar em desacordo com a legislação penal militar e jurisprudência castrense.

Sentença prolatada em plena consonância com o apurado, estando a reprimenda coerente com as condições subjetivas do Apelante.

Negado provimento ao recurso.

Decisão majoritária.” (grifei)

A parte ora impetrante postula(…) a concessão da LIMINAR, e, no mérito, sua confirmação, reconhecendo faltar justa causa à condenação imposta na Apelação nº 2006.01.050445-1/RS (Doc. 1), tendo em vista inexistir a tipicidade material nas condutas imputadas ao Paciente, com a concessão do presente ‘writ’ (art. 648, I, do CPP)” (fls. 12 – grifei).


Passo a examinar o pedido de medida cautelar formulado por ilustre Promotor da Justiça Militar (fls. 02/12). E, ao fazê-lo, tenho para mim, na linha de decisões por mim proferidas, que se reveste de plausibilidade jurídica a tese sustentada na presente impetração.

Com efeito, esta Suprema Corte tem admitido a aplicabilidade, aos delitos militares, inclusive ao crime de posse de quantidade ínfima de substância entorpecente, para uso próprio, mesmo no interior de Organização Militar, do postulado da insignificância:

O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFICA-SE COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL.

O princípio da insignificância – que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina.

Tal postuladoque considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada – apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público.

O POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA E A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL: ‘DE MINIMIS, NON CURAT PRAETOR’.

– O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade.

O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado cujo desvalor – por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes – não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social.


(HC 84.687/MS, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Não custa assinalar, neste ponto, que esse entendimento encontra suporte em expressivo magistério doutrinário expendido na análise do tema em referência (LUIZ FLÁVIO GOMES, “Delito de Bagatela: Princípios da Insignificância e da Irrelevância Penal do Fato”, “in” Revista dos Tribunais, vol. 789/439-456; FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, “Princípios Básicos de Direito Penal”, p. 133/134, item n. 131, 5ª ed., 2002, Saraiva; CEZAR ROBERTO BITENCOURT, “Código Penal Comentado”, p. 6, item n. 9, 2002, Saraiva; DAMÁSIO E. DE JESUS, “Direito Penal – Parte Geral”, vol. 1/10, item n. 11, “h”, 26ª ed., 2003, Saraiva; MAURÍCIO ANTONIO RIBEIRO LOPES, “Princípio da Insignificância no Direito Penal”, p. 113/118, item n. 8.2, 2ª ed., 2000, RT, v.g.).

Revela-se significativa a lição de EDILSON MOUGENOT BONFIM e de FERNANDO CAPEZ (“Direito Penal – Parte Geral”, p. 121/122, item n. 2.1, 2004, Saraiva) a propósito da matéria em questão:

Na verdade, o princípio da bagatela ou da insignificância (…) não tem previsão legal no direito brasileiro (…), sendo considerado, contudo, princípio auxiliar de determinação da tipicidade, sob a ótica da objetividade jurídica. Funda-se no brocardo civil ‘minimis non curat praetor’ e na conveniência da política criminal. Se a finalidade do tipo penal é tutelar um bem jurídico quando a lesão, de tão insignificante, torna-se imperceptível, não será possível proceder a seu enquadramento típico, por absoluta falta de correspondência entre o fato narrado na lei e o comportamento iníquo realizado. É que, no tipo, somente estão descritos os comportamentos capazes de ofender o interesse tutelado pela norma. Por essa razão, os danos de nenhuma monta devem ser considerados atípicos. A tipicidade penal está a reclamar ofensa de certa gravidade exercida sobre os bens jurídicos, pois nem sempre ofensa mínima a um bem ou interesse juridicamente protegido é capaz de se incluir no requerimento reclamado pela tipicidade penal, o qual exige ofensa de alguma magnitude a esse mesmo bem jurídico.” (grifei)

Na realidade, e considerados, de um lado, o princípio da intervenção penal mínima do Estado (que tem por destinatário o próprio legislador) e, de outro, o postulado da insignificância (que se dirige ao magistrado, enquanto aplicador da lei penal ao caso concreto), na precisa lição do eminente Professor RENÉ ARIEL DOTTI (“Curso de Direito Penal – Parte Geral”, p. 68, item n. 51, 2ª ed., 2004, Forense), cumpre reconhecer que o direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado cujo desvalorpor não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes – não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social.


Cumpre também acentuar, por relevante, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem admitido, na matéria em questão, a inteira aplicabilidade do princípio da insignificância aos crimes militares (HC 87.478/PA, Rel. Min. EROS GRAU – HC 92.634/PE, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA – RHC 89.624/RS, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA), mesmo que se cuide de delito de posse de quantidade ínfima de substância entorpecente, para uso próprio, e ainda que se trate de ilícito penal perpetrado no interior de Organização Militar (HC 93.822/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 94.085/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).

Entendo importante destacar, neste ponto, fragmento do voto (vencido) do eminente Ministro FLÁVIO BIERRENBACH (que tem o beneplácito da jurisprudência desta Suprema Corte), proferido quando do julgamento, que, emanado do E. Superior Tribunal Militar, motivou a presente impetração (fls. 44/53, 44/47):

Este é mais um caso de porte de entorpecente no interior de uma organização militar. Tenho sustentado sistematicamente, nesta Corte, a atipicidade da conduta de trazer consigo pequena quantidade de maconha. Sou convencido de que o porte de quantidade insignificante daquela substância específica é conduta incapaz de causar lesão significativa à saúde pública, enquanto bem jurídico tutelado pela norma penal incriminadora.

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Reputa-se insignificante um fato, ainda que formalmente típico, quando o seu resultado é desvalorizado, quando a lesão ao bem jurídico tutelado é considerada ínfima. Nessa hipótese, entende a jurisprudência que tal fato ou conduta é materialmente atípico e, portanto, não suscetível de gerar punição estatal.

Disso depreende-se que o chamado ‘delito de bagatela’ está intrinsecamente associado ao nível de lesão ao bem jurídico tutelado. A avaliação da tipicidade da conduta, portanto, exige a individualização do bem jurídico protegido pela norma incriminadora e a avaliação do grau de lesão por ele sofrido.

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É sob essas premissas que a conduta de portar ou usar substância entorpecente, em área sob administração militar, deve ser analisada. Tal conduta encontra-se tipificada e definida no art. 290 do Código Penal Militar, com o ‘nomen juris’ de tráfico, posse ou uso de entorpecentes ou substância de efeito similar.

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À toda evidência, o fato dito criminoso no caso em apreço não apresenta real ofensa ao bem jurídico tutelado pela norma incriminadora. O soldado do Exército, Alex Silva de Campos, foi surpreendido com 3,0g (três gramas). Trata-se de quantidade ínfima, risível, incapaz de gerar a menor ameaça que seja à saúde e incolumidade públicas, bem jurídicos tutelados pela norma penal incriminadora.

É nesse sentido a jurisprudência dominante dos tribunais, aplicando a casos semelhantes o princípio da insignificância, por ausência de lesão ou ameaça de lesão ao bem jurídico penalmente protegido, quando a quantidade encontrada é incapaz de gerar dependência química ou psicológica.” (grifei)

Sendo assim, em juízo de estrita delibação, e sem prejuízo de ulterior reexame da questão suscitada nesta sede processual, defiro o pedido de medida liminar, em ordem a suspender, cautelarmente, até final julgamento da presente ação de “habeas corpus”, a eficácia da condenação penal imposta, ao ora paciente, nos autos do Processo nº 04/06-7 (3ª Auditoria da 3ª Circunscrição Judiciária Militar), sustando, em conseqüência, qualquer medida de execução das penas em referência, mantido íntegro, desse modo, o “status libertatis” de Alex Silva de Campos.

Caso o paciente, por algum motivo, tenha sido preso em decorrência de mencionada condenação penal (Processo nº 04/06-7 – 3ª Auditoria da 3ª CJM), deverá ele ser imediatamente posto em liberdade, se por al não estiver preso.

Comunique-se, com urgência, transmitindo-se cópia da presente decisão ao E. Superior Tribunal Militar (Apelação nº 2006.01.050445-1), à 3ª Auditoria da 3ª Circunscrição Judiciária Militar (Processo nº 04/06-7) e ao ilustre membro do Ministério Público Militar que subscreveu a presente impetração (fls. 02/12).

Publique-se.

Brasília, 30 de maio de 2008.

Ministro CELSO DE MELLO

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