Inversão de papéis

Jornalistas torturados revelam atuação de milícias no Rio

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1 de junho de 2008, 15h18

Não é só em pontos perdidos da selva amazônica que o Estado não chega e o poder público pode menos que os grupos dominantes locais. No Rio de Janeiro, décadas depois dessa constatação, criminosos organizados montam seus governos paralelos e ridicularizam as autoridades responsáveis pelas chamadas “forças de segurança” estatais.

Essa verdade, contudo, só vem à tona quando a delinqüência atinge pessoas conhecidas. Foi o que aconteceu recentemente com um grupo de jornalistas do jornal O Dia. Conforme reportagem publicada, neste domingo (1/6), pelo jornal, uma repórter, um fotógrafo e um motorista, infiltrados na favela do Batan, na cidade do Rio de Janeiro, foram torturados pelas milícias que comandam o local.

A equipe do jornal alugou uma casa na favela com o objetivo de produzir uma reportagem sobre a milícia que atua na área. Durante duas semanas, os jornalistas viram como funcionam as regras impostas aos moradores pelas milícias, tanto na vida pessoal, quanto social, política e em assuntos comerciais.

Descobertos, a equipe sentiu na pele o que é feito com os “indesejáveis”. Foram capturados e agredidos. Segundo a reportagem, em um dos intervalos das sessões de tortura, os jornalistas identificaram o barulho de sirenes iguais às da polícia. Entretanto, os homens não estavam ali para resgatar a equipe.

A reportagem mostra que o Estado paralelo criado pelas milícias, além de criar leis próprias, é responsável por fazer com que as regras sejam cumpridas e pelas punições àqueles que as desobedecem. Tudo com um código de procedimentos próprios.

Conclusão muito semelhante foi apresentada em uma reportagem recente publicada pelo jornal O Globo, pelo repórter Mauro Ventura. O jornalista assistiu a uma sessão de “julgamento” em uma favela no Rio. Não foi preso, nem torturado, mas viu o modo como os que não cumprem as regras são punidos. Entretanto, as revelações da reportagem mostravam o Estado paralelo do tráfico, em que os “algozes” eram traficantes.

A reportagem do jornal O Dia coincide, ainda, com outra data que marcou o jornalismo investigativo referente ao Estado paralelo. No dia 2 de junho, completa seis anos que o repórter Tim Lopes, da TV Globo foi assassinado. Tim Lopes fazia uma reportagem sobre bailes funks, promovidos por traficantes, na favela de Vila Cruzeiro. Os bailes eram caracterizados pelo consumo de drogas e sexo explícito e, através deles, aliciavam-se meninas menores de idade.

Emboscada na favela

Depois de duas semanas morando na comunidade, os jornalistas de O Dia foram descobertos. Chamados para tomar cerveja na noite do dia 14 de maio, o motorista e o fotógrafo foram algemados pelos milicianos.

Os milicianos tentaram fazer com que os próprios moradores linchassem os dois. Como não conseguiram, resolveram levá-los para a casa alugada pelos jornalistas na favela, onde estava a repórter. Um morador que estava com o grupo também foi algemado.

Segundo a reportagem, o grupo deu voz de prisão à jornalista. “Você é do jornal O Dia e está presa por falsidade ideológica”, afirmou um deles, conhecido como Zero Um.

Os quatro sofreram tortura durante sete horas: espancamento, afogamento, sufocamento com saco plástico, roleta russa e tortura psicológica. Foram obrigados a entregar senhas e e-mails para que os milicianos pudessem saber o que tinha sido enviado para a redação do jornal. Com isso, os milicianos descobriram textos e fotos que mostravam viaturas oficiais do Batalhão de Policiamento de Vias Especiais (BPVE) circulando livremente na favela, além de homens fardados que conversavam com policiais à paisana.

Entre socos e pontapés, os jornalistas escutavam a “posição ideológica” dos milicianos. “Existem muitos policiais corruptos, mas nós não somos corruptos. A gente se mata de trabalhar aqui, leva tiro de vagabundo para vocês chegarem e estragarem o projeto social que estamos fazendo. Nós não somos bandidos”, teria afirmado um deles. Depois foram separados em um local conhecido como uma casa de torturas dos milicianos. Novamente, foram ameaçados de morte.

De acordo com a reportagem, a liberação só ocorreu depois de sete horas com a autorização de um homem conhecido como “coronel”, não sem antes repetir as ameaças de morte. Sem saber a quem recorrer, já que ficou difícil distinguir polícia de “bandido”, a equipe não procurou uma delegacia nem fez exame de corpo delito.

O caso foi informado ao governador, ao secretário de Segurança ao comandante da Polícia Militar e ao chefe de Polícia Civil. Após receber as informações, teria sido aberto um inquérito, sob sigilo, para apurar as denúncias. É possível que os jornalistas estejam fora do Rio, já que não estariam indo trabalhar. A reportagem revela que os milicianos tinham conhecimento da vida pessoal da equipe.


Disputa de poder

O discurso das milícias é de que “protegeriam” as comunidades carentes em que o Estado não chega do poder do tráfico. Segundo a reportagem, as milícias começaram a se formar no começo dos anos 80. Hoje, as milícias já atuam em 78 comunidades, subjugando cerca de 2 milhões de pessoas no Rio. A maioria está na Zona Oeste da cidade.

Os números da Secretaria de Segurança Pública mostram que, a cada mês, pelo menos uma favela é invadida e ocupada pelos grupos. A intenção das milícias é ocupar a Cidade de Deus, que permanece nas mãos do Comando Vermelho. Lá moram mais de 50 mil pessoas, potenciais consumidores para os serviços vendidos: TV por assinatura (gatonet) e transporte alternativo, em vans piratas, entre outros.

Para conquistar as comunidades, as milícias entram em confronto com o tráfico que domina o local. Conta com a estrutura do próprio Estado. Em 2007, os milicianos tiveram a ajuda de um Caveirão da PM, conforme foi investigado pela Corregedoria-Geral Unificada da Secretaria de Segurança Pública.

Leia as notas do jornal, da ABI, da Abraji e do Sindicato de Jornalistas do Rio

Nota de O Dia

Rio – Uma repórter, um fotógrafo e um motorista do Jornal O DIA foram seqüestrados e torturados pela milícia da Favela do Batan, em Realengo, na Zona Oeste do Rio, na noite de 14 de maio. A equipe fazia uma reportagem sobre a vida de moradores em regiões controladas por milicianos, conforme relata em detalhes matéria na edição deste domingo, 1º de junho, de O DIA.

Os três profissionais estão a salvo, em bom estado de saúde, em local seguro, e vêm recebendo irrestrito apoio da empresa, incluindo acompanhamento psicológico.

O fato, ocorrido há duas semanas, só foi divulgado agora para garantir a integridade física dos envolvidos.

O governador Sérgio Cabral e as autoridades policiais do Estado do Rio foram informados e estão acompanhando atentamente o caso. A investigação está a cargo do delegado Cláudio Ferraz, titular da Draco, que tem tido uma conduta exemplar.

O DIA reitera sua confiança no trabalho da polícia e tem a convicção de que os bandidos, que usam a farda para cometer crimes, serão presos e punidos na forma da lei.

Alexandre Freeland

Diretor de Redação

Leia a nota da ABI

“A Associação Brasileira de Imprensa recebeu com forte sentimento de indignação a notícia do seqüestro e das torturas e ameaças infligidas a uma equipe de reportagem do jornal “O Dia” do Rio de Janeiro e ao motorista que a transportava por integrantes de milícias enraizadas em uma comunidade da Zona Oeste da capital fluminense, os quais tiveram um comportamento marcado pela impiedade, pelo desrespeito à lei a que são obrigados e pela sensação de impunidade que os estimula a se manter na senda do crime.

Considera a ABI que o fato se reveste de extraordinária gravidade, sobretudo porque sua divulgação se faz na edição de “O Dia” com data de lº de junho, que é celebrado por força de lei federal como o Dia da Imprensa. É contristador verificar, mais uma vez, que o exercício de sua relevante atividade profissional e missão social pelos jornalistas se faça ainda com pesados riscos e padecimentos, como os enfrentados e vividos por esses dois jornalistas e pelo motorista que os acompanhava. É igualmente triste que esse episódio se torne público na véspera do dia do sexto ano da morte do jornalista Tim Lopes, repórter da Rede Glob torturado e morto por traficantes no dia 2 de junho de 2002, num sinal de que não se modificaram as condições que conduziram à imolação desse inesquecível companheiro.

Entende ABI que essa inominável violência deve ensejar resposta imediata e vigorosa do Governo do Estado do Rio de Janeiro, cuja Secretaria de Segurança Pública precisa realizar com abrangência e profundidade investigações que conduzam à identificação dos autores dessa intolerável agressão à liberdade de imprensa e de informação, para destituí-los do poder que acintosa e desdenhosamente exibem e submetê-los a processo penal, para expiação dos vários crimes que praticaram.

A ABI postula nesse particular uma manifestação expressa do Senhor Governador Sérgio Cabral de condenação do episódio e de garantia de que as investigações não se perderão no desinteresse das autoridades policiais incumbidas de realizá-las e principalmente da cúpula da Secretaria de Estado de Segurança Pública, que precisa desde logo informar à sociedade as providências que já venha adotando com esse fim.

A ABI dirige uma exortação aos sindicatos de jornalistas e às demais entidades representativas da comunidade jornalística e das empresas de comunicação, assim como a outras instituições da sociedade civil, como a Ordem dos Advogados do Brasil-Seção do Estado do Rio de Janeiro, para que manifestem ao Senhor Governador do Estado sua preocupação em relação ao risco de que as investigações ora reclamadas sejam marcadas pela ineficácia, deficiência comum quando os agentes do crime são integrantes do aparelho policial..


Por fim, mas não menos importante, a ABI expressa sua palavra de conforto e solidariedade aos dois jornalistas e ao motorista da equipe seqüestrados e à corporação de “O Dia”, que não tem esmorecido no esforço para exercer bem o direito de informar e, assim, honrar a confiança de seus leitores.

Rio de Janeiro, 31 de maio de 2008.

Maurício Azêdo, Presidente da ABI.”

Leia a nota da Abraji

A Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) protesta de forma veemente diante dos fatos gravíssimos relatados na edição de domingo (1/06) de O Dia, quando uma equipe de reportagem foi mantida durante sete horas e meia seqüestrada, em cárcere privado e torturada numa favela do Rio de Janeiro, na Zona Oeste. A equipe realizava uma reportagem especial em uma favela dominada pela milícia (espécie de grupo privado que atua por conta própria e é composto por policiais, ex-policiais, agentes penitenciários, bombeiros e ex-servidores da Segurança Pública). A equipe de “O Dia” trabalhava em uma casa alugada na comunidade durante duas semanas, quando foi identificada no último dia 14 de maio.

A exemplo dos traficantes, esses bandos criminosos chamados “milícias” criam áreas de exclusão, nas quais impõem as suas próprias leis, valendo-se da intimidação e do assassinato. Além da barbárie a que submetem os moradores, o que já seria inaceitável, esse tipo de banditismo organizado põe em risco o Estado Democrático de Direito, em desafio aberto ao Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário, os poderes da República, que deveriam regular a vida da sociedade.

Em vista disso, a Abraji:

– Solidariza-se com a equipe agredida e com o jornal “O Dia”, lamentando que ainda sejamos obrigados a conviver com atos dessa natureza.

– Pede que as autoridades apurem com rigor o crime cometido.

– Considera inaceitável existirem no país “áreas de exclusão”, dominadas por criminosos, onde a imprensa não pode trabalhar sem sofrer agressões, e onde reina um poder paralelo do tráfico ou da milícia formada por policiais da ativa e ex-policiais.

– Cobra das autoridades para que o Estado aja com mais efetividade nessas áreas, não só reprimindo esses bandos criminosos, mas também levando os benefícios legais e sociais a que as populações que nelas vivem têm direito.

– Alerta as empresas de comunicação sobre a responsabilidade que elas têm na segurança de seus funcionários. A elas cabe avaliar os riscos que eles possam correr.

A Abraji lembra que, neste 2/6, completam-se seis anos do assassinato de Tim Lopes, torturado e morto por traficantes, quando fazia investigação da exploração sexual de crianças e adolescentes em bailes funk. A Abraji surgiu na comoção que se seguiu a morte de Tim Lopes, por isso tem, entre as suas principais preocupações, a luta pela preservação da integridade física dos jornalistas, um assunto que profissionais e empresas têm de se empenhar em debater com mais profundidade.

Diretoria da Abraji

1 de junho de 2008

Leia a nota do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro

NOTA DE REPÚDIO AO ESTADO PARALELO

É inaceitável que o governo do Estado do Rio de Janeiro não consiga impedir a ação criminosa de seus próprios agentes, integrantes de máfias milicianas que disputam com o tráfico de drogas o domínio das comunidades carentes. O seqüestro e a tortura de profissionais do Jornalismo por milícias na comunidade do Batan, em Realengo, se configuram em um dos mais graves atentados à liberdade da informação no País desde o fim da ditadura militar.

A livre circulação da informação é o alicerce do Estado de Direito. A tortura dos jornalistas traumatiza a cidadania, já constrangida com a denúncia, pelo Ministério Público Federal, da quadrilha de policiais que loteava as delegacias para o crime organizado. E impõe ao poder público a priorização da garantia do direito de ir, vir e informar. Assim como a bomba do Riocentro, em 1981, desmontou a ditadura dos carrascos militares, a tortura dos jornalistas em Realengo destrói a ilusão de que as milícias possam representar alternativa ao narcotráfico nas áreas sem assistência do Estado.

Se o governo Sérgio Cabral não punir de forma exemplar os torturadores de Realengo, passará à História como cúmplice da tortura no Rio de Janeiro em plena vigência do Estado de Direito. O Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro e a Federação Nacional dos Jornalistas, com apoio de toda a sociedade organizada, exigem que o governo investigue o crime de forma criteriosa e exemplar e crie condições para a prisão de todos os culpados, antes que pratiquem mais atentados à civilidade. O Rio de Janeiro, alarmado com a infiltração do crime em suas instituições públicas, não suporta mais a impunidade dos falsos agentes da lei que protagonizam a violência.

O sindicato e a federação dos jornalistas convocam a população do Rio de Janeiro para o Ato de Repúdio ao Estado Paralelo na próxima segunda-feira, dia 2 de junho de 2008, sexto ano do seqüestro e morte do jornalista Tim Lopes. A manifestação será na escadaria da Câmara dos Vereadores (Cinelândia), instituição estratégica nos planos políticos da milícia.

Rio de Janeiro, 31 de maio de 2008

Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro

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