Medida de controle

Não há razão para tanta gritaria contra a Lei Seca

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28 de julho de 2008, 11h43

Nos idos de 1982, mais precisamente em 25 de janeiro, eu viajava pela rodovia Rio-Santos rumo a Paraty (RJ), com meu marido na direção do veículo, quando repentinamente, na altura de Ubatuba (SP), um Ford Corcel desgovernado atravessou a pista e colheu nosso carro de frente, pela contramão, em alta velocidade. Com o choque, sofri várias fraturas e perdi a consciência. Fiquei alguns dias desacordada.

Estava grávida de sete meses e quase perdi o bebê. Meu marido teve o joelho esmigalhado, ficou meses hospitalizado. Meu filho sentiu o impacto, ameaçou nascer antes do tempo, mas sobreviveu. Ainda hoje me arrepia pensar no risco imenso que corremos e no sofrimento prolongado pelo qual tivemos que passar.

No veículo que nos abalroou, havia seis jovens espremidos, dentre os quais um motorista completamente embriagado. Eles elegeram o carro como o local da “balada” e fizeram a festa em plena Rio-Santos. Uma garrafa de cachaça quase totalmente consumida foi encontrada sob o banco traseiro. Por incrível que pareça, o motorista causador de tantos danos físicos e morais foi processado e absolvido pelo então juiz de Ubatuba. Não houve recurso e o causador de tanta desgraça jamais foi punido.

As estatísticas mostram números astronômicos de mortes causadas por motoristas que dirigem sob efeito do álcool, mas os dados referentes aos feridos dificilmente são computados. O estrago provocado pela combinação entre a ingestão de álcool e a condução de veículo automotor é bem maior do que se imagina.

Todos nós conhecemos histórias tristes a esse respeito, mas a bebida alcoólica continua sendo cultuada quase como divindade. Beber é verdadeira obrigação nas atividades de lazer. As pessoas se reúnem para ingerir álcool, a amizade é secundária, tudo o mais é secundário. As letras de música ajudam a reforçar esse mito: “minha casa tem goteira, pinga ni mim, pinga ni mim”, ou “eu bebo, sim, e estou vivendo, tem gente que não bebe e está morrendo, eu bebo, sim!”, ou “em vez de tomar chá com torrada ele bebeu paraty”, ou ainda “as águas vão rolar, garrafa cheia eu não quero ver sobrar”…

De acordo com nossas leis, beber é um direito dos maiores de 18 anos, porém é muito perigoso. O álcool é uma droga passível de abuso freqüente, gera dependência e causa mais mortes e ferimentos do que sonha nossa vã filosofia. Há acidentes e crimes que não são atribuídos à bebida nas estatísticas, quando, na verdade, deveriam ser.

Não são poucos os que morrem por atropelamento ao sair, cambaleando, do bar; nem poucas as mulheres que apanham costumeiramente de maridos embriagados. São infinitas as possibilidades de estragar a própria vida e a de terceiros por causa do álcool.

Fechar os bares mais cedo já reduziu muito a criminalidade. Agora, surge a Lei 11.705/08, que modificou o artigo 206 do Código de Trânsito Brasileiro e recrudesceu a punição para quem bebe e dirige veículo automotor. As estatísticas, logo após a promulgação da lei, mostraram a diminuição dos acidentes de trânsito.

Todos deveriam se sentir aliviados, mas, estranhamente, há muitos inconformados, bradando a inconstitucionalidade, a arbitrariedade, o retrocesso, o cerceamento injustificável trazido pela lei, mas ingerir álcool e dirigir é uma rematada irresponsabilidade. Merece punição severa.

A Lei 11.705/08 foi apelidada de “lei seca”, mas, na verdade, não é. Ela não proíbe o consumo de bebida alcoólica, apenas limita as possibilidades de quem ingere álcool, proibindo-o de dirigir. A lei seca “pegou” justamente porque estávamos precisando dela. Por sua baixa tolerância, tem importante papel educativo. O álcool não pode ser difundido a todo momento e em todos os lugares como a maior maravilha de todos os tempos, a cura para todos os males, a verdadeira diversão, pura alegria engarrafada. Está com gripe? Tome um conhaque. Está combalido? Tome um vinho. Está nervoso? Tome um uísque. Está contente? Celebre com um champanhe. Está na praia? Tome uma caipirinha. Acabou de jantar? Tome um licor…

A pressão é enorme em favor do álcool, assumido por alguns como verdadeira religião. Quem gosta de beber não vai sofrer cerceamento, só é proibido dirigir veículo depois. Não há razão para tanta gritaria.

[Artigo publicado na Folha de S.Paulo, desta segunda-feira, 28 de julho]

Autores

  • é procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, autora de vários livros, dentre os quais “A paixão no banco dos réus” e “Matar ou morrer — o caso Euclides da Cunha”, ambos da editora Saraiva. Foi Secretária Nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça no governo FHC.

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