Fora das grades

Qualquer prisão chamada de cautelar é ilegítima e irracional

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22 de julho de 2008, 0h00

Este texto é escrito para demonstrar que qualquer prisão chamada de cautelar é ilegítima e irracional, principalmente em casos de mera suspeita e de pedidos realizados por órgão não especializado para atuar como parte no processo, como a polícia civil, por exemplo, que, pela legislação atual, pode pedir a prisão temporária de suspeito.

É irracional e atentatória ao princípio da proporcionalidade a prisão cautelar em qualquer fase do processo, diante da desproporcionalidade entre a necessidade e a utilidade da medida, vez que os aparatos de Estado, responsáveis pela investigação e propositura da ação têm os mecanismos de verificação do fato ocorrido, suas circunstâncias e autoria para a constituição de provas técnicas, sem necessidade de constrição da liberdade da pessoa humana.

Ademais, os juízes possuem o poder de determinar a quebra de sigilos bancário e telefônico, de checagem da declaração de imposto de renda, de acompanhamento das contas bancárias, do monopólio legal da realização de perícias técnicas, para a aferição de situações fáticas pormenorizadas da vida e conduta de qualquer suspeito ou acusado.

Mais execrável ainda é a denominada prisão cautelar quando a liberdade do suspeito, indiciado ou acusado, não colocar em xeque ou em risco a vida ou a liberdade de ir e vir de outras pessoas da sociedade, como vem acontecendo nos casos de crimes patrimoniais e financeiros, ou ecológicos, dentre outros, vez que, para esses crimes, a melhor medida, racional e afeta ao princípio da proporcionalidade, seria o bloqueio, confisco, arrolamento ou seqüestro dos bens objetos do litígio jurídico, ainda que de forma cautelar.

Enquanto puro exercício epistemológico esclarece-se que medida cautelar é aquela que visa assegurar a execução futura, não satisfazendo — sequer de forma provisória — a pretensão do autor, pois o bem litigado não fica com uma das partes e sim sob a tutela do Estado — como terceiro imparcial — e se diferencia daquela adotada para execução da segurança, que antecipa os efeitos da tutela pretendida no processo — vez que satisfaz, ainda que provisoriamente a pretensão do autor.

Portanto, qualquer prisão denominada pelos doutrinados de cautelar — em flagrante delito, temporária ou preventiva — não é cautelar ou processual, vez que antecipa não só os efeitos da futura sentença condenatória, mas também a própria sentença, sendo, portanto, prisão pena e violadora do princípio da presunção de inocência.

As mal chamadas prisões cautelares tampouco podem ser assimiladas ao instituto da antecipação dos efeitos da tutela, vez que o Ministério Público busca com a ação penal apenas a sentença condenatória, a aplicação da lei ao caso concreto, e não a entrega para si do corpo do condenado, não é esse o objeto litigado. A prisão é conseqüência da sentença condenatório-executiva e é externa à ação penal processual, não faz parte da pretensão legitimadora desta.

Somente poderíamos considerar a prisão em flagrante e as prisões cautelares como antecipação dos efeitos da sentença de procedência, se concebêssemos o corpo do acusado como bem litigado pelo promotor da acusação e a defesa do acusado, uma vez instaurado o processo. Seria esta uma aberração, lógica, antes de jurídica.

Nos casos de prisão temporária e de prisão preventiva, estamos diante de aberrações jurídicas que contrariam toda a teoria processual civil, haja vista estar-se antecipando os efeitos da sentença condenatório-executiva sem que tenha sido sequer instaurado o processo, numa, e a sentença condenatória e seu efeito, noutra.

Teórica, jurídica e racionalmente, o autor da ação penal não tem legitimidade para litigar objetivando lançar mão sobre o corpo do indiciado ou acusado — corpo que é a expressão material do conceito político-jurídico liberdade —; busca a ação penal apenas a demonstração da culpabilidade deste diante do fato delituoso ocorrido.

A ação penal é apenas condenatória, tem como limite o pedido de condenação, o que torna irracional qualquer pedido de prisão temporária ou preventiva feito pelo Ministério Público: não pode o promotor de acusação pedir aquilo que não tem direito, aquilo que não é objeto do litígio processual – o corpo do suspeito ou acusado -, aquilo que não está legitimado a pedir: é a violação da lógica e da racionalidade teórico-jurídica processual. A prisão do condenado é efeito da sentença penal condenatório-executiva.

Explica-se:

Em caso de mandado de prisão temporária expedido pelo Juízo a pedido do delegado de polícia — previsto no CPP — a decisão antecipa os efeitos de futura sentença penal condenatória executiva, sem que ainda tenha sequer sido instaurado o processo.

Em caso de prisão temporária ou preventiva decretada já em fase processual, tratar-se-ia de antecipação da sentença e dos seus efeitos, vez que somente é lógico e juridicamente correto falar em antecipação dos efeitos da tutela, ou da sentença de procedência — é do que se trata —, em caso de a decisão judicial satisfazer, ainda que de forma provisória, a pretensão de direito material da parte autora. O Ministério Público não litiga o direito de lançar mão sobre o corpo do acusado, confiscá-lo para si; apenas busca a sentença penal condenatória, sendo a prisão efeitos da sentença penal condenatório-executiva, haja vista ser apenas mero ato administrativo, quiçá matemático, de aplicação da pena já estabelecida na lei, como cominação à conduta delitiva praticada pelo condenado. Da mesma forma é essa uma aberração teórica e jurídica, vez que não se permite a antecipação da sentença com base em juízos de pura verossimilhança, auferida de inquérito e investigação ainda inquisitivos. Também porque a sentença é ato final que somente pode ser proferida no processo penal após o contraditório e a ampla defesa, principalmente se condenatória.

Conseqüentemente, não há racionalidade teórica ou jurídica nos pedidos de prisão temporária ou preventiva feitos pelo Ministério Público: a prisão não é a pretensão do promotor de acusação, não é este o objeto do litígio; a parte só pode realizar pedido de decisão cautelar ou de antecipação dos efeitos da sentença de procedência concernente ao bem litigado: ou para assegurar a execução ou para realizar a execução para segurança, ainda que de forma provisória.

O ordenamento processual não prevê ou aceita em matéria penal a antecipação da sentença, a prolação de sentença provisória de mérito, ou seja: somente se explicaria teoricamente a prisão temporária e a prisão preventiva se concebêssemos a possibilidade de prolação de sentença temporária de mérito, que, por sua vez, teria como efeitos a prisão temporária e a preventiva, ambas provisórias, efetuada com base em pura verossimilhança.

Da mesma forma, não é possível tratar as decisões que decretam as prisões temporária e preventiva como decisões interlocutórias, vez que estas se legitimam no processo civil por aterem-se ao mérito da lide, ao objeto litigado: como segurança para a execução ou execução para a segurança.

Logo, se a prisão é efeito da sentença penal condenatória, não integra a pretensão da ação penal, somente é possível conceber a prisão provisória — temporária ou preventiva — como efeito de uma sentença, ainda que provisória, ao ser impossível antecipar os efeitos da sentença sem antecipar a sentença, no processo penal.

Tampouco é compreensível ou explicável antecipar a sentença e seus efeitos, seria o restabelecimento do processo inquisitivo e sigiloso, sem contraditório, um retorno à idade média: a isso se assemelham as chamadas prisões cautelares. O código de Processo Civil, referência teórica dos doutrinados, admite o julgamento antecipado da lide apenas em caso de desnecessidade de produção de provas em audiência e quando tratar-se de matéria unicamente de direito (artigo 330 do CPC).

Em última instância, diante da impossibilidade de outra medida impeditiva de continuidade delitiva, somente se legitimaria a prisão antes de sentença penal transitada em julgado em casos de flagrante delito, apenas até que perdurasse a situação que a legitimou. A radicalização do princípio deve-se à necessidade de o Estado-judiciário cumprir suas funções constitucionais e constitutivas, razões de sua existência, qual seja realizar os julgamentos em tempo razoável, conforme preceitua o artigo 5º, inciso LXXVIII.

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