Paraíso das arbitrariedades

País caminho a largos passos para um Estado policial

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  • Marcelo Semer

    é desembargador do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo); autor de "Sentenciando Tráfico — O Papel dos Juízes no Grande Encarceramento" (Tirant lo Blanch) e "Os Paradoxos da Justiça: Judiciário e Política no Brasil" (ed. Contracorrente).

22 de julho de 2008, 21h01

Os juízes estão certos em se sentirem atingidos em sua independência quando um ministro de tribunal superior representa um magistrado em razão de decisão judicial que prolata, por mais errada que lhe possa parecer. A tutela sobre a jurisdição é uma afronta à independência e, por conseqüência, à democracia. Mas o mesmo raciocínio também vale para o ministro, pois de sua decisão, também jurisdicional, pululam ataques desproporcionais e ameaças ainda maiores — há quem alardeie, embora sem qualquer embasamento, um possível impeachment.

Mas é preciso perceber que há outras questões que estão em jogo que são tão importantes quanto a independência do juiz, por essenciais à construção da democracia. Trata-se do respeito aos fundamentos do Estado de Direito e aos princípios universais de proteção aos direitos humanos que herdamos desde a época do Iluminismo.

Desatento a estes, o país caminha a largos passos para um Estado policial, no qual garantias individuais vêm sendo gradativamente suprimidas ou flexibilizadas. A banalização da escuta telefônica demonstra a constante vulnerabilidade da privacidade, típica de um Estado de total controle. A vulgarização da prisão temporária, que de extrema exceção está se tornando regra, resume o paradigma de Guantánamo e nos aproxima de uma situação kafkiana em que teremos entre nós mais presos sem processos do que processados sem prisão. O espetáculo dos cumprimentos de mandados de prisão celebra o retorno às decapitações em praça pública, em que o processo penal se transforma apenas em um símbolo de poder e intimidação.

Muito desse novo patamar de repressão judicialmente autorizada se baseia em aparentes bons propósitos, como o de estabelecer, por vias transversas, uma isonomia do castigo: se antes só pretos, pobres e prostitutas freqüentavam as varas criminais e os cárceres, agora também banqueiros, empresários e políticos podem ser mandados às celas. A desproporção entre a revolta por uma prisão ou outra só comprova mesmo a desigualdade que nos cerca há séculos. Mas não nos enganemos. Os pobres nada ganharão com este aparente, e só aparente, equilíbrio punitivo. O aumento gradativo dos níveis de punição e o esgarçamento das garantias mais tradicionais seguramente irão recair, como sempre aconteceu, com mais intensidade entre os mais vulneráveis, menos expostos às câmeras e às manchetes.

Com fundo messiânico, essa imaginária luta do bem contra o mal tangencia um novo macarthismo, que já vem ganhando corpo com o hábito difundido de divulgação de listas negras para todos os gostos, desafetos, investigados, suspeitos, processados, etc..

Nesse percurso, entre prisões antecipadas e escutas de conversas privadas que todos ouvimos nos noticiários da hora do jantar, vários princípios vão ficando pelo caminho. Direito de defesa e presunção de inocência já não parecem palavras dignas de serem ditas por gente de bem.

Em entrevista recente (Folha de S. Paulo, 15/7), o magistrado Fausto De Sanctis, vítima da ameaça que comprime a independência e credor da solidariedade de classe, justifica-se, afirmando ser papel do juiz decidir com “um olho na lei, outro na realidade”.

Não se duvida da legitimidade do que hoje se denomina ativismo judiciário, especialmente para obrigar os demais poderes ao cumprimento dos direitos fundamentais. Muitos juízes estão dando vida a princípios constitucionais, que não são meros enunciados vazios, e isto é uma notícia salutar.

Mas no âmbito do direito e do processo penal, o pilar da democracia, o divisor de águas entre arbítrio e realização da Justiça, a razão última da tutela judicial sobre os atos do Poder é justamente o princípio da legalidade.

Para poder cumprir a missão constitucional de todo o magistrado, que é o de ser o garantidor dos direitos fundamentais, no âmbito criminal, não se pode tirar nem um só olho da lei. Nem mesmo piscar para ela. A lei é o espaço de defesa do cidadão em face do arbítrio, o limite do poder constituído.

É para resguardar o princípio da legalidade e todos os demais direitos fundamentais que dele são decorrentes e que com ele se articulam que a missão dos juízes não pode ser tutelada pelos demais poderes. É para servir de anteparo às arbitrariedades que os juízes são independentes, não para reproduzi-las.

Artigo originalmente publicado no Terra Magazine

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