Comunicação perigosa

Lei precisa punir quem facilita entrada de celular em presídio

Autor

  • Philippe Alves do Nascimento

    é estudante de Direito estagiário do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado do Ministério Público do Estado de São Paulo e membro da Comissão de Direito Criminal da OAB de São Paulo.

18 de julho de 2008, 0h00

Nunca o sistema penitenciário brasileiro esteve em tamanha evidência. A perda e a frouxidão das autoridades no trato com os criminosos das facções criminosas, que tomaram conta do sistema prisional brasileiro, resultaram em um sistema penitenciário falido, com déficit de, ao menos, 130 presídios não construídos em território nacional. Já é hora do fim da crise de autoridade.

Desde que se deu conta do crescimento das facções criminosas dentro dos muros dos presídios — e do fato de que elas estão matando organizadamente fora deles — não se via tamanho empenho no debate acerca das idéias e sugestões para a solução do impasse que, no Brasil, transformou a precária realidade do sistema, antes ocultada, em discussão nacional.

Viabilizou-se, por inércia do Estado, o surgimento e fortalecimento dessas facções criminosas organizadas. Instalou-se o caos. Agora, para administrar as corrompidas penitenciárias brasileiras, há a necessidade de urgência e eficiência, características que, há muito, haviam sido abandonadas na administração pública do sistema.

Na era do crime globalizado, os aparelhos de comunicação, quando em mãos de criminosos que se encontram no interior dos presídios, tornam-se verdadeiras armas capazes de desestabilizarem o bem estar social através da prática de crimes que atormentam e já atormentaram a população.

Diante de tais circunstâncias, o Congresso Nacional decidiu finalmente tomar uma medida capaz de estancar o uso de aparelhos de comunicação de dentro dos presídios.

Tal medida efervesceu o debate sobre o novo projeto de Lei 7.024/06, aprovado recentemente pela casa legislativa, e que tem como escopo finalmente tipificar como crime a conduta de quem ingressa, possui, utiliza, permite que se utilize, ingresse ou possua sem autorização da autoridade competente, aparelho de comunicação dentro do sistema prisional. Antes, tais condutas apenas se apresentavam como infrações disciplinares aos detentos e como crime com pena — detenção de três meses a um ano — para o diretor de penitenciária e/ou agente público (Artigo 319-A do Código Penal) que deixe de cumprir dever de vedar ao preso o acesso a aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo.

Num primeiro instante, é evidente notar que a pena – reclusão de quatro a oito anos — aplicada ao novo artigo 354-A (Código Penal), que possui no tipo penal: ingressar, possuir, utilizar, permitir que se utilize, ingresse ou possua sem autorização da autoridade competente, aparelho de comunicação no interior de estabelecimento penitenciário ou similar seja de uma escaldadura excessiva para uma prática tão inofensiva.

Porém há de se aprofundar melhor a questão. Alguns defensores tomam a posição de que não se deve tipificar tal conduta como crime, pois utilizar aparelho de comunicação dentro do sistema prisional não significa que tal ação venha a causar prejuízo a sociedade ou ao próprio sistema, sendo que muitas vezes os detentos utilizam-se destes meios de comunicação para manter contato com suas famílias, companheiras e etc., devendo se assim manter-se apenas a sanção de caráter administrativa/disciplinar ao transgressor de tal regulamento.

Após tal posição, encontra-se uma argumentação nem tanto amena, mas também que ainda não alcança o objetivo do novo tipo penal. Tal posição caracteriza-se pela interpretação do tipo penal como sendo um crime de perigo abstrato, no qual supõe-se que o detento venha a utilizar o aparelho de comunicação como meio direto para a prática de outros crimes dentro e fora das muralhas dos presídios. Defende-se que não se deve pressupor que todo o detento que possua e utilize aparelho celular venha a cometer outros crimes, e, caso os cometa, responderão às sanções impostas a tais condutas delituosas. Para tanto, almeja-se a diminuição da pena imposta no referido novo artigo, já que uma conduta como a tipificada, supostamente, feriria o principio da proporcionalidade.

Porém, é notório que atualmente, no interior do sistema prisional, encontram-se facções criminosas, como é o exemplo do Primeiro Comando da Capital – PCC que, mesmo em cumprimento de regime de pena fechado, continuam a praticar crimes (extorsões, tráfico de entorpecentes) e a comandar outros (seqüestros, roubos, homicídios, atentados à população civil e órgãos públicos e etc.) no interior destes estabelecimentos. Tal prática é possível porque os membros desta ou de outras facções criminosas possuem em seu poder aparelhos de comunicação (telefones celulares, rádio-transmissores e etc.), os quais permitem que, mesmo aprisionados com o objetivo de se ressocializarem e cumprirem as penas impostas aos seus delitos, continuem a praticar a mais infinita gama de crimes, além do que, com tal prática, acabam por arrecadar vantagens financeiras, que se transformam em investimentos ao aparelho criminoso, permitindo assim cada vez mais o crescimento destas organizações que desestabilizam a harmonia social.


Há de se ressaltar que os detentos que irão vir a se utilizar destes aparelhos de comunicação já se encontram dentro do sistema penitenciário, só é possível à obtenção destes por meio de terceiros. Tais aparelhos ingressam dentro dos presídios por meio das mais diversas práticas. Muitas vezes, os aparelhos telefônicos ingressam através das visitas que os presidiários recebem. Foi evidenciado , por exemplo, que as esposas e companheiras de membros da facção criminosa P.C.C. estariam se comunicando através de celulares clonados denominados “direitinho ” e, assim, comandando um esquema de arrecadação e lavagem de capitais em proveito da organização criminosa.

Porém, pior do que os criminosos que se utilizam dos aparelhos de comunicação para comandar suas ações delituosas, é a conduta de quem favorece tal ação, ingressando e entregando tal dispositivo. Por isso torna-se mais que necessário à incriminação da conduta ingressar, definida no novo tipo penal.

A esposa ou companheira, ou qualquer outro terceiro que ingresse com o aparelho de comunicação no sistema penitenciário, tornando-se assim o sujeito ativo do fato típico descrito no artigo 354-A (Código Penal), merece a devida pena inclusa no tipo.

Mas, mesmo com essa evidente conclusão, o esperado novo tipo penal deixou por escapar uma conduta que merece especial atenção.

É a conduta mais reprovável do que o criminoso que “utiliza” ou o terceiro que “ingressa” com o aparelho de comunicação, trata-se da ação do agente público que ingressa, “permitir que se utilize, ingresse ou possua” tal dispositivo.

O agente público que age sob o manto do brasão do Estado, permitindo assim que a criminalidade se expanda e continue a ocorrer bem abaixo de seus olhos. Tal ação merece uma melhor análise com o advento deste novo tipo penal, posto que, como já citado, existe em vigor o artigo 319-A do Código Penal, incluído pela Lei 11.466 de 2007.

Tal artigo dispõe: “Deixar o Diretor de Penitenciária e/ou agente público, de cumprir seu dever de vedar ao preso o acesso a aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo — pena de detenção de três meses a um ano.”

É evidente que, em inúmeros casos, há a colaboração desses agentes públicos que, pelos mais variados motivos, não só permitem como disponibilizam essa conduta. Tal atitude é reprovável para um agente que deveria zelar pela segurança do Estado e de seus semelhantes.

Neste momento sim, pode-se concluir o ferimento do princípio da proporcionalidade, além de um aparente conflito entre normas. Percebe-se uma pena muito baixa para uma conduta que, observada sob a luz do novo artigo proposto, encontra-se em total desequilibro.

Como um cidadão comum, que venha a praticar a conduta tipificada no novo artigo, poderia incorrer numa mesma pena que um agente penitenciário que tivesse a mesma conduta? É evidente a incoerência numa mesma escaldadura para casos tão distintos. Deve o novo artigo moldar-se ao já exposto no Código Penal, exemplificando melhor a situação do funcionário prisional que venha a praticar a referida conduta, pois, nota-se que o disposto no artigo 319-A, esbarra na conduta do novo artigo 354-A. Deixar o Diretor de Penitenciária e/ou agente público de cumprir o dever de vedar ao preso o acesso a aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo; não é conduta igual a de “permitir que se utilize, ingresse ou possua sem autorização da autoridade competente, aparelho de comunicação no interior de estabelecimento penitenciário ou similar?”

O legislador deve, portanto, melhor atender à necessidade de especificar a conduta do agente público que venha a praticar o crime já previsto no artigo 319-A do Código Penal, com o novo disposto no futuro artigo 354-A do mesmo diploma legal. Poderia se revogar o disposto do artigo 319-A do Código Penal, e para completar tal lacuna, criar-se uma agravante para o crime previsto no artigo 354-A para o agente público que venha a praticar os crimes dispostos no caput do artigo.

Talvez, antes de se concordar com a diminuição da pena proposta pelo novo artigo 354-A (Código Penal), já que uma pena máxima de oito anos, para um delito que nem se quer esbarra na esfera da violência, ameaça ou qualquer outra conduta de grande impacto do bem jurídico tutelado, dever-se-ia notar que tal conduta é subsidiadora de outras condutas que extrapolam o limite do bem estar social e jamais são descobertas, pois seus agentes já se encontram recolhidos o que torna difícil a identificação dos mandantes logo que esses misturam-se a incontáveis encarcerados de nosso sistema prisional.

Já se constatou em investigações policiais, com autorização judicial de quebra de sigilo telefônico, visando apurar crime de tráfico de entorpecentes que, após um longo trabalho de análise das escutas, a comprovação da prática deste crime por parte do encarcerado. Mas não se conseguiu identificar o autor dos fatos, já que este se utilizava de apelidos e códigos impossibilitando, assim, a identificação do mesmo em meio a um presídio com celas super-lotadas que escondem às sombras seus internos.


Algo que também deve ser visto é o fato de que a conduta indicada no novo artigo do Código Penal, já encontra sanção de caráter disciplinar para os detentos que venham a praticá-la. Logo, se observa que não é possível em nosso ordenamento jurídico que uma pessoa possa ter dupla sanção, caracterizando o bis in idem. Portanto seria de bom grado que junto à sanção prevista no artigo 354-A do Código Penal, se especificasse que, além da pena de reclusão, o preso também incorreria em sanção de caráter disciplinar.

Nota-se por fim, e em seio de conclusão, que o novo tipo penal vem com o objetivo de suprir a falta de uma legislação capaz de coibir a prática de um fato que ocorre dentro do sistema prisional brasileiro há muitos anos, sem jamais ter sido compreendida como crime, pois, mesmo quando se elucidava a prática de um crime por um criminoso através de um aparelho de comunicação no interior de um presídio, era quase impossível a identificação deste agente, pelas dificuldades que enfrentam nosso sistema prisional.

Por se tratar de um tipo penal que visa coibir a prática deste delito, talvez se deva concordar que uma pena mínima de reclusão de quatro anos, encontra-se acima do necessário, podendo-se estabelecer talvez, uma pena mínima de reclusão de dois anos; e em relação a pena máxima, também se percebe um excesso, posto que oito anos de reclusão é a pena encontrada em muitos crimes praticados com violência ou grave ameaça. Logo, poderia se imputar uma pena máxima de seis anos, o que não deixaria de ser um crime de pena alta.permitindo, assim, que o juiz, na aplicação da lei penal e na dosagem da pena, possa analisar o caso concreto e enquadrar melhor a conduta do agente no tipo penal.

Como já foi dito, deve se atender também a necessidade de melhor exemplificar a conduta do agente público que venha a praticar o novo tipo penal, considerando a possibilidade de se inserir uma agravante no novo artigo 354-A do Código Penal, para tal fato e que, assim, excluí-se o disposto no artigo 319-A, do mesmo diploma, pela semelhança das condutas.

E, tão importante quanto todas essas conclusões, é a necessidade de melhor exemplificar a conduta e a sanção do aprisionado que venha a cometer o delito previsto no novo artigo, para que este não venha a sofrer uma dupla sanção, incorrendo num eventual bis in idem.

Segundo Foucalt, a utilidade da pena reside na prevenção, não devendo visar retribuir a ofensa passada, mas evitar a desordem futura. Beccaria afirma que é preciso punir exatamente o suficiente para impedir.

A proporcionalidade está tanto na regra da quantidade mínima, como também naquilo que poderíamos chamar de limite da penalidade estrita. O direito de punir encontra-se justamente no segredo de tornar desvantajosa a idéia da prática do delito. A timidez na aplicação do castigo é tão maléfica quanto o desmando.

O Brasil é marco de impunidade nos delitos de corrupção. À venda descarada de serviços que não poderiam ser objetos do comércio, somam-se seguidos escândalos com pouca correspondência no Direito Penal à punição efetiva dos culpados.

Cabe ao Congresso Nacional a responsabilidade de bem definir a nova lei penal, prevendo com força e coerção nas reprimendas, hoje bastante singelas.

“O enfrentamento da corrupção e do tráfico, o restabelecimento da dignidade no cumprimento da pena, caminhando lado a lado com a punição severa das condutas abusivas, inclusive com utilização do regime disciplinar diferenciado até o limite da legalidade estrita, são fatores que, bem avaliados e adequadamente aplicados, determinarão a virada no caos reinante no sistema penitenciário, para bem ressocializar e punir as pessoas que, condenadas, são submetidas à realidade dos presídios brasileiros.”

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    é estudante de Direito, estagiário do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado do Ministério Público do Estado de São Paulo e membro da Comissão de Direito Criminal da OAB de São Paulo.

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