Exagero legislativo

Lei Seca pode reduzir acidentes, mas provoca injustiças graves

Autor

  • Yordan Moreira Delgado

    é mestre em Direito pela FDC/RJ (área de concentração: políticas públicas e processo) professor de Direito Penal do UNIPÊ/PB palestrante ex-Promotor de Justiça Procurador da República e autor em co-autoria da obra - Comentários sobre a Reforma do CPP e Lei de Trânsito.

16 de julho de 2008, 21h24

A Lei 11.705/08, conhecida como Lei Seca, em vigor desde 20 de junho deste ano, alterou alguns dispositivos do Código de Trânsito, tendo, dentre outras medidas, previsto como infração administrativa o motorista que dirigir sob a influência de álcool, considerando como tal, qualquer concentração de álcool por litro de sangue (artigos 165, c/c o 276), sujeitando-o a uma multa de R$ 955 e suspensão da habilitação para dirigir por um ano; e crime, com pena de seis meses a três anos, se essa quantidade encontrada for igual ou superior a 0,6 (6 decigramas por litro de sangue) ou 0,3 mg/l de ar expelido. Destaque-se que essas medidas se equivalem, sendo que a primeira é medida no exame de sangue, e a segunda, no bafômetro.

A lei ainda trouxe outras medidas, objetivando reduzir os acidentes de trânsito, como a proibição de venda de bebidas alcoólicas nas rodovias federais, exceto na área urbana das cidades e um tratamento mais rigoroso a lesão culposa no trânsito. De fato, resta nítido que o objetivo da lei é reduzir o número de acidentes de trânsito no país, já que segundo dados do Denatran, o Brasil é o país com mais acidentes de trânsito no mundo, cerca de 1 milhão por ano, sendo 50 mil as vítimas fatais. E na maioria desses acidentes fatais há um motorista alcoolizado envolvido.

Diante deste quadro pode-se supor como louvável a medida legislativa, certo? Bem, a idéia foi boa, mas o exagero das medidas tomadas, com afronta a princípios constitucionais como o da razoabilidade ou proporcionalidade, e o da dignidade da pessoa humana maculou a lei.

Do ponto de vista da eficiência, também não é o melhor caminho a publicação de uma lei draconiana, pois a falta do bom senso do legislador em punir administrativamente o motorista que esteja dirigindo e for encontrado com qualquer quantidade de álcool em seu organismo, bem como, de ser crime dirigir com mais de 6 dg de álcool por litro de sangue (o que equivale a dois chopes, dependendo do peso, velocidade da ingestão, etc.) independentemente de causar um efetivo perigo a segurança do trânsito, afetará a aplicação da lei por parte do Judiciário, além de desestimular a população ao seu cumprimento.

A interpretação de que o novo crime de embriaguez ao volante, trata-se de crime de perigo abstrato, é inconstitucional por ser desarrazoável, assim como, a infração administrativa (multa e suspensão) aplicada para quem dirigir e tiver consumido qualquer quantidade de álcool. Caso o STF entenda que a infração administrativa de dirigir sob o efeito do álcool, bem como, o crime de embriaguez ao volante, prescinde da prova de que o condutor do veículo estava dirigindo de forma anormal, outra solução não se impõe, senão declarar-se a lei inconstitucional, por violação a princípios garantidos no texto constitucional contra o arbítrio estatal. Porém, pode o STF dar uma interpretação da lei conforme a Constituição, bastando para tanto, adotar o entendimento de Damásio de Jesus, no sentido de que a lei também impõe, tanto para a infração administrativa como para o crime, a prova de anormalidade na direção.

Perceba que antes do advento do Código de Trânsito Brasileiro, a embriaguez ao volante sequer era crime, sendo apenas tal conduta enquadrada como direção perigosa, o que era uma mera contravenção (artigo 34 da LCP). O Código de Trânsito passou a considerar crime de perigo concreto a embriaguez ao volante, e infração administrativa dirigir sob efeito de álcool, permitindo uma tolerância de até 6 decigramas por litro de sangue.

Acontece que, a vigência do novo CTB, não fez reduzir o número de acidentes do trânsito como se esperava. Pergunta-se, o motivo que levou os motoristas a descumprirem a lei foi o fato de ela ser branda demais? Óbvio que não, pois, como já dito, o CTB conferiu um tratamento mais rigoroso à situação de dirigir sob o efeito do álcool. O resultado pífio obtido refere-se a falta de fiscalização. Tornar o Código de Trânsito agora, ainda mais rigoroso, é possível até certo limite, que não foi observado pela nova lei. A tolerância da infração administrativa de 6 dg passou a ser de zero. E o crime de perigo concreto passou a ser de perigo abstrato. Estes dois absurdos serão abordados neste artigo, dando-se mais enfoque ao crime.

Da infração Administrativa da Embriaguez ao volante

A infração administrativa de embriaguez ao volante está prevista nos artigos 165 e 276 do Código de Trânsito Brasileiro, com redações alteradas pela lei 11.705, que assim dispõem:

Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:

Infração — gravíssima;

Penalidade — multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses;

Medida Administrativa – retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação.

……………………………………………………………………… (NR)

Art. 276. Qualquer concentração de álcool por litro de sangue sujeita o condutor às penalidades previstas no art. 165 deste Código.

Parágrafo único. Órgão do Poder Executivo federal disciplinará as margens de tolerância para casos específicos.” (NR)


2.1 — Violação ao princípio da proporcionalidade

Pela dicção dos artigos supra, percebe-se a desproporcionalidade criada pela nova lei, pois bastam dois bombons de licor para que o motorista tenha de pagar a multa, e ter sua carteira suspensa, conforme notícia da Folha de S.Paulo, que informa ter uma repórter se submetido a um teste realizado pela PM, em um bafômetro descartável, após consumir dois bombons de licor, e o aparelho acusou 0,21 mg de álcool por litro de ar expelido, o que seria o suficiente para caracterizar a infração administrativa; e um pouco mais (0,30 mg/l) teria cometido o crime de embriaguez ao volante. Certamente o mesmo ocorreria com o motorista que fosse jantar e não consumisse nenhuma bebida alcoólica, mas resolvesse comer de sobremesa papaia com creme de cassis, ou o padre que tomasse um gole do vinho durante a celebração da missa e fosse dirigir.

É bem verdade que o artigo 276, parágrafo único, da Lei 9.503/97, com a redação atual da lei 11.705/08, possibilita que órgão do Poder Executivo federal discipline as margens de tolerância para casos específicos. Todavia, esse dispositivo objetiva disciplinar situações de pessoas que estejam tomando medicamentos e outras específicas, e não, permitir liberar o consumo de pequena quantidade de álcool, pois, se assim fosse, não seriam situações específicas e sim genéricas, o que iria contrariar a proibição prevista no caput do mesmo artigo.

De fato, o artigo 1º, §1º, do Decreto 6.488, estabelece que as margens de tolerância de álcool serão definidas em resolução do Contran (Conselho Nacional de Trânsito). Por sua vez, o §2º desse mesmo artigo estabelece que enquanto não for editada a resolução, a tolerância será de duas decigramas por litro de sangue, ou, se a aferição for através de aparelho de ar alveolar – etilômetro (vulgo bafômetro), a tolerância é de 0,1 mg por litro de ar expelido pelos pulmões (artigo 1º, §3º). Acontece que, como afirmado no parágrafo supra, a válvula de escape do artigo 276, parágrafo único, da Lei 9.503/97, não é apropriada para permitir a tolerância de pequenas quantidades de álcool, de forma genérica.

Vê-se assim que, não houve bom senso do legislador, ao não prever um grau mínimo de tolerância, contrariando inclusive estudos do Denatran que indicam que até 0,16 g/l de sangue é um grau de tolerância fisiológica, não causando nenhum risco de acidente. Ora, se até 0,16 g/l qualquer organismo tolera sem implicar qualquer risco adicional na direção, por esse fato, como então impor uma severa pena de multa e de suspensão por um ano da licença para quem estiver dirigindo e for flagrada dentro dessa quantidade de álcool. É um absurdo.

Outra situação também interessante pode ocorrer, considerando que o álcool demora a ser eliminado pelo organismo. O motorista que saísse à noite para beber, de táxi, e no dia seguinte, pela manhã, seis horas depois do último gole de álcool, dirigisse seu veículo para o trabalho e fosse parado numa blitz, ainda poderia estar com álcool no organismo, quem sabe, talvez ainda em quantidade suficiente para caracterizar o crime de embriaguez ao volante (6 decigramas).

O mais lógico teria sido se prever uma tolerância de forma genérica (sugere-se pelo menos 4 decigramas por litro de sangue), o que evitaria muitos dos problemas aqui relatados com essa legislação, como a punição do consumo de pequenas quantidades de álcool, sejam elas oriundas da sobremesa, de meia taça de vinho, de um pequeno chope ou da pequena quantidade de vinho tomada pelo padre, etc, sem que nessas situações se possa vislumbrar qualquer risco adicional ao trânsito.

Portanto, seria muito mais sensato, se a lei permitisse uma tolerância de 4 decigramas, acima deste patamar, infração administrativa, punido com multa, e ultrapassado o dobro deste nível, isto é, acima de 8 decigramas ou reincidência, suspensão da habilitação por um ano. Tais alterações tornariam a lei proporcional e adequada ao fim proposto, qual seja, reduzir os acidentes de trânsito, já que estes, na sua grande maioria não são provocados por quem consome meia taça de vinho e vai dirigir. Estes casos mínimos, certamente se equivalem aos provocados por motoristas que nada consumiram de álcool, ou seja, não há qualquer relação entre o consumo reduzidíssimo de álcool e acidentes.

Damásio de Jesus, no entanto, em notas a Lei 11.705 dar uma solução para que não haja necessidade de mudança legislativa, e, mesmo assim, a lei seja proporcional. Para ele, a expressão, “sob a influência do álcool” utilizada na nova redação do artigo 165 do CTB, significa que não basta o consumo do álcool, mas que o motorista também esteja dirigindo de forma anormal (zigue-zague, etc), portanto, influenciado pelo álcool.

Dessa forma, ficaria respeitado o princípio constitucional da proporcionalidade (este princípio será desenvolvido no tópico seguinte), e nem por isso, traria incentivos ao descumprimento da lei, ao contrário, a sensatez desta, poderia servir de estímulo a mudança de mentalidade, objetivando a segurança no trânsito, mas sem os exageros já comentados.


Do crime de embriaguez ao volante

Na redação anterior, o Código de Trânsito assim dispunha:

Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem.

Tratava-se, portanto, de um crime de perigo concreto, pois se exigia o efetivo perigo causado ao bem jurídico tutelado, isto é, a segurança viária (do trânsito). De modo que, não bastava que o condutor tivesse sido flagrado dirigindo sob o efeito do álcool, mas que também causasse algum perigo efetivo, por exemplo, dirigindo na contramão, em zigue-zague, dando cavalo de pau, etc. Discutia-se apenas se seria necessário o consumo de 6 decigramas ou se qualquer quantidade de álcool associada à causação do efetivo perigo à segurança viária, caracterizava o delito.

Pois bem, com a nova redação é irrelevante que o motorista esteja dirigindo devagar,com toda a prudência possível, enfim de forma irrepreensível, já que a simples constatação de seis decigramas de álcool por litro de sangue ou 0,3 mg/l de ar expelido, já caracteriza o delito, presumindo a lei de forma absoluta (juris et de jure) o perigo com base nessa quantidade de álcool por litro de sangue, sendo por isso, um crime de perigo abstrato.

Eis a nova redação:

Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência

Muitos autores (Damásio de Jesus, Luiz Flávio Gomes, Zaffaroni e Nilo Batista, etc.) criticam veementemente o crime de perigo abstrato. Damásio chega a concluir que não são admissíveis delitos de perigo abstrato em nossa legislação, por violar o princípio constitucional do estado de inocência (artigo 5, LVII).

Com menos radicalismo, me situo numa linha intermediária, no sentido de admitir a consitucionalidade de crimes de perigo abstrato, apenas quando não se possa de outra forma proteger o bem jurídico, de modo que se justifique punir riscos hipóteticos. Ora, se todo crime de perigo abstrato fosse inconstitucional, o crime de tráfico de entorpecente seria inconstitucional, pois trata-se também de um crime de perigo abstrato, uma vez que o perigo de dano à saúde das pessoas é presumido de forma absoluta. No entanto, como bem ressalta, o Procurador da República Angelo Roberto Ilha da Silva, na sua obra “Dos Crimes de perigo abstrato em Face da Constituição” (fruto do seu trabalho de doutorado), para que o crime de perigo abstrato seja válido é necessário que obedeça ao princípio da proporcionalidade dentre outros, que têm assento constitucional, aliás como já reconheceu o Supremo Tribunal Federal (o princípio está implícito no do devido processo legal).

3.1 Da violação ao princípio da proporcionalidade

De acordo com Suzana Toledo de Barros, o princípio da proporcionalidade se subdivide em três sub-princípios: a) princípio da adequação ou idoneidade; b) princípio da necessidade ou da exigibilidade e c) princípio da proporcionalidade em sentido estrito.

A adequação significa que a norma deve ter aptidão a satisfazer ao reclamo que a ensejou. Pelo sub-princípio da necessidade há que se perquirir se não há outro meio menos gravoso de que possa o Estado valer-se para alcançar o fim proposto, coaduna-se dito sub-princípio com o da intervenção mínima do direito penal. Finalmente, a proporcionalidade em sentido estrito, significa que mesmo que o meio seja o menos gravoso, tem-se que verificar se não se impôs ônus demasiados aos atingidos.

Feitas as considerações acima, fica fácil perceber que o novo tipo penal de embriaguez ao volante não é proporcional. A pesada multa imposta e a possibilidade de suspensão por um ano da carteira de habilitação, sanções de caráter administrativo, já deveriam ser suficientes para inibir o motorista de dirigir após o consumo de álcool, sobretudo se houvesse uma fiscalização mais efetiva. A intervenção do Estado através do direito penal, portanto, só seria necessária para impor um crime, se o condutor, além de ter ingerido álcool, estivesse causando um perigo concreto à segurança viária através de uma direção perigosa, como já exemplificado anteriormente, dirigindo em zigue-zague, em alta velocidade, fazendo manobras perigosas, etc.

Nesse sentido, comungo com a opinião do autor Ângelo já citado, quando conclui que o crime de perigo abstrato só é cabível quando não for possível proteger o bem jurídico de outra forma, como no caso de tráfico de entorpecente ou de guarda de moeda falsa. Não é o caso da embriaguez ao volante, como aliás já mencionava o citado autor na sua obra que antecedeu a edição da Lei 11705, ora tratada, como se observa da seguinte passagem: “A tipificação do crime de embriaguez ao volante, de acordo com a técnica utilizada pelo Código de 1969, seria um bom exemplo de crime de perigo abstrato carente de ajuste, pelo intérprete, aos reclamos constitucionais, com conseqüente e imperiosa necessidade de comprovação de in(existência) de perigo no caso concreto, visto que não será esforço demasiado imaginar alguém que conduza veículo embriagado sem causar o mais remoto perigo a segurança viária e mesmo a incolumidade física.”


Zaffaroni e Nilo Batista também advertem “Não seria desarrazoado discutir a punição de quem vende bebidas alcóolicas a menores ou alcoólatras, mas seria irracional pretender solucionar o problema do alcoolismo mediante uma lei seca”.

De fato, uma pessoa de 65 quilos, que é habituada a beber, tomando pouco mais de uma taça de vinho, e dirigindo dentro da cidade com toda a prudência, devagar, respeitando os sinais etc, poderá responder pelo delito de embriaguez ao volante (já que tal quantidade já ultrapassa os 6 decigramas), embora não esteja causando um perigo à segurança do trânsito, enquanto outra pessoa que nada bebeu, mas, esteja dirigindo em alta velocidade, fazendo zigue-zague, ou seja, pondo em risco a incolumidade pública, só responderá pela contravenção de direção perigosa (se não estiver fazendo racha, pois em tal caso responde pelo crime do artigo 308, da Lei 9.503/97). Portanto, a causação de um perigo concreto, por meio de direção perigosa, é punida com contravenção, enquanto a direção prudente, após o consumo de álcool correspondente a 6 decigramas por litro de sangue, é crime.

Na prática, contudo, na situação em que o motorista consumiu o equivalente a 6 decigramas de álcool por litro de sangue, ou pouco mais que isso, difícil ou praticamente impossível será a prova do delito, se o motorista invocar o seu direito constitucional de não se submeter ao exame do bafômetro ou de sangue. Tome-se como exemplo, o motorista de 70 kg que bebeu 3 chopes devagar, possivelmente o mesmo não apresentará sinais de embriaguez que permita ao policial afirmar com convicção que ele bebeu na quantidade que caracteriza o delito, pois isto dependeria de exame, e o motorista não está obrigado a produzir prova contra si. A presunção de culpa prevista no artigo 277, §3º, do CTB, com a redação dada pela Lei 11705, só se aplica a infração administrativa.

Pela norma legal supra-citada, se o motorista se recusar a fazer o teste, sofrerá a pena prevista no artigo 165 (multa e suspensão da carteira), submetendo-se ainda a medida administrativa de retenção do veículo (até que pessoa habilitada compareça) e da carteira. Porém, não será possível a comprovação do crime, salvo por prova testemunhal em caso de sinais evidentes de embriaguez, o que decerto não ocorrerá se o motorista consumiu pequena quantidade de álcool, igual ou pouco acima do limite de seis decigramas.

De sorte que, até mesmo pelo aspecto da credibilidade da legislação, é muito mais apropriado que se continue a considerar o crime de embriaguez ao volante como de perigo concreto. É evidente que a análise da constitucionalidade se dará estritamente no plano jurídico, e sob esta ótica já se demonstrou a violação do princípio da proporcionalidade (ainda se mencionará a violação ao princípio da dignidade da pessoa humana), porém não se pode deixar de mencionar esses outros aspectos que também recomendam que se mantenha a embriaguez ao volante como crime de perigo concreto, e que o objetivo da redução de acidentes com vítimas seja alcançado com base, não apenas nas outras medidas previstas nesta lei (como a proibição de venda de bebidas nas rodovias federais além das gravíssimas sanções administrativas previstas para quem dirige sob o efeito do álcool), como também através de uma política de conscientização da população e fiscalização mais rotineira por parte do Estado.

3.2 — Violação ao princípio da dignidade da pessoa humana

Diante de todo o exposto, vê-se que, na ânsia de se reduzir os acidentes de trânsito, criou-se um tipo penal desarrazoável que também fere o princípio da intervenção mínima do direito penal, que está implícito no princípio da dignidade da pessoa humana, pois ninguém deve ser penalmente constrangido quando a mais grave forma de intervenção estatal for desnecessária, conforme também entende o colega Ângelo Ilha. Repita-se aqui, para não ser mal interpretado, que a desnecessidade de um tipo penal incriminador de embriaguez ao volante é eminentemente sob a forma de crime de perigo abstrato, em que se presume de forma absoluta o perigo a segurança do trânsito pelo simples consumo de uma pequena quantidade de álcool, quando se deveria manter como crime e impor sanção penal apenas no caso da efetiva causação do perigo (perigo concreto).

Caso se admitisse algum nível de consumo de álcool em que o perigo fosse presumido pelo legislador, certamente este limite não deveria ser o de 6 decigramas, quiçá 1,5g/l de sangue, pois neste caso, há estudos que demonstram que a direção fica perigosíssima, mas mesmo assim, não se entende como mais adequada a criação de um tipo penal abstrato, pois, certamente o crime de perigo concreto melhor se amolda à realidade, pois em termos de álcool, diversos fatores, além da quantidade por litro de sangue, interferem no risco de se dirigir, como o grau de resistência da pessoa ao álcool, a velocidade com que se bebeu, se a pessoa estava bem alimentada, e principalmente, se a pessoa costuma ser cautelosa na direção quando bebe ou não.


Assim como na infração administrativa, em relação ao crime de embriaguez, Damásio também interpreta como necessário a direção anormal como elementar do tipo. Segundo o autor, a parte final, do artigo 306, embora só mencione a expressão “sob a influência”, no caso de consumo de substância psioativa, mas, numa interpretação sistemática com outros dispositivos da lei que ao se referir ao crime de embriaguez, menciona sob a influência do álcool, ele também entende necessário a direção anormal para caracterizar o delito.

Conclusão

Ressalte-se que seria mais fácil convencer a população a mudar seus hábitos, se a lei fosse razoável. Contudo, o que se viu foi a falta de bom senso do legislador, que de forma desproporcional criou um tipo penal de perigo abstrato totalmente desnecessário e previu como infração administrativa o consumo de qualquer quantidade de álcool, ainda que dentro da faixa que cientificamente nenhuma alteração causa ao organismo, e, por outro lado, deixou de se prever uma pena mais severa para o homicídio culposo no trânsito, tendo apenas endurecido o tratamento conferido ao motorista que tenha causado lesões culposas no trânsito quando estiver sob o efeito do álcool, participando de competição automobilística não autorizada em via pública ou exceder em 50 km/h a velocidade máxima permitida (a ação penal não depende de representação, não é possível a composição civil nem a transação, e se instaurará inquérito policial nestes casos).

Conclui-se, pois, que o crime de perigo abstrato de dirigir sob a influência do álcool criado não respeitou o princípio da razoabilidade, sendo, por isso, inconstitucional. A infração administrativa por consumo de álcool, dentro da faixa tolerada pelo organismo (0,16 g/l de sangue), também é flagrantemente inconstitucional, por se punir fato que não causa qualquer possibilidade de perigo de lesão ao bem jurídico tutelado, mas ainda que na faixa compreendida entre 0,16 e 4 dg de álcool, o que equivale a um chope ou meia taça de vinho, eventual alteração fisiológica é tão mínima que não é razoável que incida qualquer punição, mesmo multa, sendo acima deste patamar aceitável punições administrativas gradativas (multa, e a suspensão para o dobro deste patamar ou reincidência). O crime, apenas em caso de causação de um perigo concreto. Tais sugestões não objetivam que a lei fique leve, a mesma continuará pesada (a tolerância da infração administrativa seria reduzida de 6 dg para 4 dg), mas se tornaria justa e proporcional.

Outra solução possível seria dar a lei uma interpretação conforme, de modo que se interpretasse que a expressão sob o efeito do álcool está a exigir do motorista não apenas o consumo do álcool, mas que por causa deste consumo ele esteja dirigindo perigosamente.

A lei foi tão draconiana que sequer concebeu uma vacatio legis, para que as pessoas passassem a ter conhecimento das novas regras, pois no dia da publicação da lei, a mesma já entrou em vigor.

Registre-se ainda que, seria viável se a lei conferisse um tratamento mais rigoroso para o motorista que dirige sob o efeito do álcool em rodovias, que aquele que dirige no perímetro urbano, pois, inegavelmente, face ao longo tempo em que normalmente o motorista dirige nas estradas, isto é, várias horas ou em alguns casos até dias (motoristas de caminhões de carga chegam a dirigir mais de 24 horas sem dormir sob o efeito de estimulante), bem como, por ser permitido uma velocidade maior nas rodovias, péssimas condições de nossas estradas, necessidade de ultrapassem, etc, se exige uma rapidez de reflexos maior do motorista que aquele que dirige dentro da cidade, de modo que, sobretudo neste último caso, a lei foi insofismavelmente desproporcional.

Destaque-se que com a vigência da lei seca, não obstante as estatísticas estejam a demonstrar uma aparente redução no número de acidentes, não resta dúvida que também tem servido para cometer muitas injustiças, suspendendo o direito de dirigir por um ano e prendendo pessoas que tinham consumido pequena quantidade de álcool e que nenhum risco estavam causando a segurança no trânsito.

Com as mudanças legislativas aqui propostas, ou através de uma interpretação a conformar a lei ao texto constitucional (posição de Damásio de Jesus), se continuará a obter redução nos acidentes, sem contudo, provocar injustiças da mais alta gravidade aos direitos fundamentais, dentre os quais, a liberdade. Registre-se porém, que a lei por si só não garante a redução dos acidentes, mas é imprescindível uma adequada fiscalização.

Finalmente, lembre-se que alguns aspectos da constitucionalidade desta lei já estão sub judice no Supremo Tribunal Federal (ADI 4.103-7). A ação foi intentada pela Associação Brasileira de Restaurantes e Empresas de Entretenimento, protocolada no dia 4 de setembro de 2008. Espera-se assim, que o Supremo analise os pontos suscitados pela requerente da ADI, atento não apenas aos aspectos jurídicos realçados na petição inicial, como analise os diversos artigos jurídicos que abordam o tema, a exemplo deste.

Bibliografia

BARROS. Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000.

JESUS. Damásio E. de. Crimes de trânsito. São Paulo: Saraiva, 1999.

SILVA. Ângelo Roberto Ilha da. Dos Crimes de Perigo Abstrato em Face da Constituição. RT, 2003.

ZAFFARONI. E. Raúl. BATISTA. Nilo. Direito Penal Brasileiro – I. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

Autores

  • é procurador-chefe da Paraíba, ex-promotor de Justiça do estado, é mestre em Políticas Públicas e Processo pela Faculdade de Direito de Campos (RJ) e professor da UNIPÊ/PB.

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