O circo da acusação

Policiais usam a mídia para narcotizar a opinião pública

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9 de julho de 2008, 12h24

Vamos ser sinceros. Cinco horas da manhã. Operação da Polícia Federal. Endereços exatos. Jornalistas a postos. Câmeras ligadas. Filmagem de delegados arrombando portas ou delicadamente interfonando. Quem, afinal de contas, avisou a imprensa de que seria deflagrada no dia, na hora, no local exato, aquela determinada operação para que fosse objeto de ampla cobertura televisiva? Evidente que não poderia ser o advogado que, certamente, avisaria o próprio cliente de que este seria preso. Sobram três suspeitos — o juiz, o promotor ou a própria polícia.

É um circo. A imprensa faz seu papel. Recebe uma ligação. Alô. Alô. Aí é da televisão? Sim, é. Quero falar com o chefe de redação. Quem fala? Diz que é da Polícia Federal. Ah sim… Alô. Alô, pois não. Olha, estou avisando que amanhã vamos prender um figurão. Quem? O fulano de tal, grande empresário e tem outro político. Mesmo? Sério. Que horas? Às cinco da manhã. Onde? Em vários locais. Tem como me passar a relação de endereços? Não, faço melhor — vai com a gente, atrás. Que horas? Chega aqui por volta das quatro e meia da manhã. Onde? Na sede da polícia. Ah sim. Daí, você coloca umas três equipes de cinegrafista e fotógrafos. Ok. Você me deve essa, hein! Ah claro, deixa que vamos cobrir tudo e os créditos são seus. Ok, então — pode fazer uma entrevista? Ah claro, depois fazemos uma exclusiva. Pegou meu nome? Peguei. Me procura amanhã, então. Ótimo então, até amanhã. Até mais.

Imagino que seja assim. Daí que os membros de tribunais superiores já manjaram essa estratégia circense. É que os policiais e promotores fazem da mídia um aliado para narcotizar a opinião pública e promover a imagem institucional. Não por outra razão que o presidente do Supremo Tribunal Federal chamou de gângster esse tipo de servidor público. E sem tirar nem pôr nenhuma letra, pensamos que as prisões temporárias são uma espécie de aliciamento de alguns para “colaborarem” pacificamente, dedurando os demais que se vêem impossibilitados da defesa, além de humilhados em praça pública. Não que sejam todos inocentes, mas que deveriam ser tratados como tal, deveriam. Para completar a ridícula operação, seguimos com os diálogos.

Bom dia, Polícia Federal, abra a porta. Quem? Polícia Federal, abra a porta. Quem? Polícia! Abra a porta, senão arrombamos! Ah sim, um minuto. Sou delegado e estou com uma ordem de prisão e de busca e apreensão. Por que? Porque sim. E agora? Agora, vamos entrar, pegar documentos e levar o senhor para a sede da polícia; pode ligar pro seu advogado. Mas eu não tenho advogado. Pede pra alguém da família arrumar um, o senhor vai precisar. Ok. Onde o senhor guarda documentos? Ali. Com licença. Sim, claro. O senhor tem arma em casa? Não. Ah tá. Mas porque vocês estão me prendendo? Porque o senhor iria atrapalhar nas investigações. Mas estou na minha casa, não fui pra lugar nenhum! Mesmo assim, o senhor poderia atrapalhar: olha só estou cumprindo o mandado, o senhor pede a liberdade pro juiz que decretou a prisão.

Ou seja, o culpado desse circo, no entender do palhaço, é sempre o dono do picadeiro. O que é, de fato, uma injustiça. É claro que quem manda prender e quem manda soltar é mesmo o Poder Judiciário. Contudo, o juiz não manda humilhar, algemando uma mulher de cinqüenta quilos e nem um idoso de setenta anos. E também não manda conduzir essas pessoas na parte fechada de um camburão e, nem muito menos, chamar a imprensa para iluminar, ainda na madrugada, a fachada das residências com as luzes dos holofotes. Evidente que a responsabilidade de expedir mandados de cambulhada é mesmo do Judiciário, de um juiz que não soube discernir o motorista, a empregada, o chacareiro, o taxista, o advogado, a babá, do empresário, do gerente de banco, do grande produtor: alvos verdadeiros. O resto é apenas pressão contra o mais fraco.

A democracia brasileira está sentindo que não há mais homens inatingíveis. Grandes e pequenos estão sujeitos à lei ou não passam impunes. Isso é bom. Mas não é por isso que é necessário armar o pelourinho no meio da rua. Aliás, essa lógica perverte o sistema processual e sufoca garantias constitucionais, invalidando todo o trabalho investigativo. É justamente aí que surge a sensação de insegurança e impunidade: da desinteligência policial e ministerial, da obtusidade do servidor, perde-se tudo.

Então, ficamos por aqui. Como os circos reais não são tão freqüentados como no passado, podemos nos acomodar e assistir ao telejornal. Respeitável público! O Grande Circo da Polícia vai começar. Atenção, criançada! Tem marmelada? Tem, sim senhor! Tem palhaçada? Tem, sim senhor! Atenção, atenção, muita atenção para as nossas atrações, porque o Grande Circo já começou!

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