Presunção de inocência

Quem disse que Fernandinho Beira-Mar é culpado?

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28 de janeiro de 2008, 14h03

Quando escrevem os juristas sobre o direito à liberdade e à presunção material de inocência, justo num país como o Brasil, tudo indica que a fórmula parece não se adequar à realidade nacional, impondo um sabor alienígena ao escrito. De um lado, tal excepcionalidade é uma vaidade a mais espetando o ego do articulista e, de outro, trata-se de um desdouro à inteligência nacional a falta de luzes ao público que condena garantias constitucionais.

Evidente que bandidos não são coitadinhos e devem ser tratados com reprimenda exemplar. Não menos certo que criminosos de escol não merecem o mesmo trato que cidadãos inocentes e, finalmente, corruptos não podem ser igualados à gente honesta. E, por derradeiro, seria um espanto se qualquer analista não soubesse discernir entre a higidez constitucional em prol do inocente e as conseqüências repressivas que deverá haver contra um culpado. Somos todos partidários da Justiça e ninguém pela desonestidade, pelo crime, pela violência, por uma sociedade de barbarismos que se tornam vulgares atentados diários.

Qual diferença entre o Estado Democrático de Direito e a animalidade institucional de países fanáticos? Qual a dessemelhança entre um estado libertário e um covil de bandidos oficiais? Como saber, ao certo, se estamos vivendo sob a lei ou sob a vontade arbitrária do governante ou de um burocrata de quinto escalão? Aplica-se a todos os problemas levantados um antídoto bastante racional: a nação que se pautar pelo aparato legislativo em consonância com direitos e garantias internacionais, acolhendo fundamentos liberalizantes de postura jurídico-política estará na esteira da democracia, da ilustração, da libertação do fanatismo. Ao contrário, o país terá uma tentadora coceira ditatorial. Não podemos olvidar haver os defensores da “lei e ordem”, bem ao estilo coronelesco, mandando presos quebrarem pedras, torturados, desaparecidos. Emergem as máximas: “quanta moleza, para que tantos direitos” ou escapam opiniões do quilate “pena de morte, prisão perpétua” etc.

É claro que queremos os “bandidos” longe dos “mocinhos”. Como diferenciá-los, todavia? Por meio do Judiciário, ou não? Confiamos ou não nos aparelhos jurídicos que garantem nossa co-existência pacífica? Somos ou não um Estado Democrático de Direito? Então, sendo esse o caso (e acredito que seja), precisamos aparelhar o julgador com mecanismos tecnológicos, pessoal burocrático, e outros meios capazes de nos apresentar respostas céleres e eficazes e não crucificar seja quem for, por um estado de “notória culpa”. Aliás, não existe culpa notória, a menos que estejamos vivendo sob signos de inquisição, quando não era preciso defesa.

Eu não defendo nem Fernandinho Beira-Mar, Marcola, João Arcanjo ou Jack Estripador, muito menos os atos porventura praticados por estes indivíduos, em tese. O foco central da defesa aguerrida, do discurso democrático febril é que o cidadão — mesmo o Bandido da Luz Vermelha, mesmo o Maníaco do Parque — tem direito a todas (e não apenas algumas) as garantias constitucionais e nos tratados internacionais, hoje incorporados à legislação pátria. Quando o criminoso tem para si salvaguardados os direitos mais primitivos, aí sim o cidadão comum saberá que pode dispor de um sistema confiável e que ele também não será vítima de julgamentos voluntariosos, discricionários, movidos à opinião pública.

É evidente que o Brasil precisa caminhar para a democratização e popularização dos paradigmas constitucionais e não para o recrudescimento das garantias pétreas. As defensorias públicas precisam ter o mesmíssimo orçamento que as promotorias de Justiça, a fim de equiparar o sistema acusatório com o defensivo. O Judiciário necessita deixar de ser moroso e dar respostas não ao sabor da publicidade, e sim num ritmo que satisfaça. Entretanto, essa “ligeireza”, esse “justiçamento” não poderá sacrificar direitos fundamentais de Champinhas, de Fernandinhos, de Arcanjos, ou seja, lá de quem for. E mais: todo cidadão, sobretudo o mais pobre e menos provido de meios, deverá ter as mesmas garantias das classes mais abonadas.

E quem diz que Beira-Mar é culpado? A Justiça e não os advogados, não os promotores e não os policiais. Antes de o magistrado dizer o direito sobre o fato, antes de o tribunal publicar a última decisão confirmando a condenação, pena, sistema de cumprimento, agravantes e atenuantes, quem disse que Fernandinho Beira-Mar é culpado? Não acredito em forças sobrenaturais atuando para antever o estado de culpa ou inocência de um cidadão. Apenas o Judiciário, prestigiando-o, apoiando-o ou combantendo-o com todas as forças, por meio de recursos, ações autônomas de impugnação e outros meios jurídicos. Assim, o maior marginal brasileiro, o serial killer de calibre, o pior meliante, traficante, quadrilheiro, é inocente enquanto não subsistir sentença transitada em julgado.

Essa segurança no trato constitucional para os outros é a que eu quero para mim e para qualquer cidadão brasileiro, mormente para o mais pobre e o inocente. Como não tenho bola de cristal para diferenciar um do outro, aguardo democraticamente a Justiça manifestar-se e não colaboro para o uivo público por fogueiras e caça as bruxas. E aqueles que criticam mais veementemente o direito de defesa (pontualmente para criminosos de monta), são os mesmos que pretendem censurar a imprensa por avaliar notícias mais ou menos “produtivas”. A imprensa é livre e a responsabilidade é de quem escreve, quem edita e quem publica.

Meus caros leitores da Consultor Jurídico, eis aqui o espaço mais democrático do país, local onde o articulista defende Fernandinho Beira-Mar com ênfase, porque a liberdade que assiste, que socorre, que defende o cidadão brasileiro nos permite isso. A liberdade não quer ser domada, censurada, polida ou sofrer qualquer cabresto dos puritanos de plantão.

Os críticos pediram a defesa de Fernandinho Beira-Mar e eis-me aqui defendendo-o em suas prerrogativas constitucionais: a) tem direito sim à conferência pessoal com o advogado e ao interrogatório pessoal e presencial com o juiz; b) tem direito sim a qualquer recurso previsto na legislação; c) tem direito sim a não ser tratado como um animal em isolamentos obscenos e contraproducentes; d) tem direito sim a anulação de processos quando conduzidos indevidamente; e) tem direito sim aos meios de prova lícitos, preservando-se todos os sigilos constitucionais; f) tem direito sim à intimidade generalizada; g) tem direito sim às visitas íntimas; h) tem direito sim à vida, à dignidade, todos as prerrogativas que ele pode ter furtado de muita gente. E, mesmo culpado, é vedado ao Estado tratar condenados como animais ou vingar-se publicamente dos prisioneiros.

E não é porque um cidadão não teve acesso às garantias legais que outro, por semelhança, também não poderá ter! Todos, sem exceção qualquer, devem usufruir de direitos. Não pretendo apenas retirar prerrogativas de uns, equiparando-os aos outros e sim estender a todos, supostos privilégios de alguns. Pensar o contrário é, com a licença dos críticos de plantão, pensar torto. É que estamos vivendo, felizmente, sob o pálio da lei. E, sob este signo que é mais brilhante do que qualquer fundamentalismo religioso ou paredões totalitários ou mesmo fascismos escamoteados, podemos dizer que ninguém, nem mesmo Fernandinho Beira-Mar é culpado, sem sentença com trânsito em julgado. E que todos merecem gozar o rol dos direitos cidadãos encartados nas leis nacionais e internacionais, adotadas posteriormente.

Se advogando sou bem sucedido, o problema importa mais à inveja do que convicções sobre temas defendidos. Se advogo pro bono ou cobro fortunas, isso é um problema entre a banca e o cliente que pode pagar. Em nada altero o molde central do pensamento libertário esposado desde o começo da carreira, como coordenador-geral de Ações Criminais da Defensoria Pública de Mato Grosso ou como advogado criminalista.

Advogar para ricos ou para pobres é uma opção que gravita entre vocação e competência, o que não muda o pilar central das posturas alinhavadas em prol da liberdade, da intimidade, da segurança, até mesmo em favor dos maiores facínoras tupiniquins, porque bandido é bandido rico ou pobre. Não deveria importar a conta bancária do acusado e faço votos que as Defensorias Públicas aparelhem-se para enfrentar o maior dos arbítrios — contra o pobre.

A minha opinião sobre crimes, essas barbaridades que nos apequenam cada vez mais, as corrupções que enojam e os desvios que aviltam a cidadania não interessam. Trata-se de senso-comum. Pessoalmente rejeito o crime, a corrupção que causam a miséria nacional e nem poderia ser diferente como cidadão que cumpre obrigações. Todavia, o que torna um cidadão de bem diferente, um fiador da liberdade própria é a defesa da liberdade alheia, ainda que pagando um módico óbolo à crítica.

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