Movimento especulativo

Crise não é motivo para aumento no preço da energia

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26 de janeiro de 2008, 23h00

Há uma corrente sociológica que entende que, para se entender uma nação, faz-se necessários conhecer seus mitos e lendas. Se assim for, melhor representação do Brasil não há que nossos Curupira e Saci Pererê. Um anda para frente, mas tem os pés virados para trás. O outro é um moleque travesso, ora fazendo bondades ora maldades.

O Brasil é, pois, um país de paradoxos. Caminhamos para um lado, mas sinalizamos para outro. Nosso governo tem um “saco” de gostosuras e travessuras que distribuí, nem sempre aleatoriamente e nem sempre gratuitamente, à sociedade. Caso recente, que estamos vivenciando, é o apagão.

A geração e distribuição de energia elétrica passou por um amplo processo de privatização, criando-se um modelo moderno de fornecimento de energia elétrica. Deixou-se para trás anos de intervenção estatal e, parecia, ingressaríamos no rol dos países que moldam suas economias pelas leis de mercado.

No entanto, ao sinal de que há uma diminuição dos reservatórios (e conseqüentemente da capacidade de geração de energia), rápida e oportunamente, as companhias privatizadas deixam de lado a prática comercial saudável e aproveitam o momento para maximizar seus balanços.

Um exemplo destes últimos dias ocorre com a CPFL. Uma vez privatizada a companhia e estando esta sob a direção privada, foi feito todo um trabalho pela empresa no sentido de racionalizar o uso da energia.

Assim, empresas foram incentivadas pela companhia a usarem a energia em determinados horários pré-determinados, “desafogando” os horários de pico. Em troca, a CPFL ofereceu preços diferenciados para esta energia consumida em horários de menor movimento.

Aquiescendo à proposta CPFL, centenas de indústrias adequaram sua produção para valerem-se destes preços diferenciados. E, tomando o custo proposto da energia, projetaram seus negócios naquelas bases.

Agora, contudo, na esteira da “crise” energética, estas indústrias assistem o rompimento unilateral do fornecimento de energia a preço diferenciado, sob a alegação de falta de sobra.

Este problema não é pequeno. Para se ter uma idéia, em Sertãozinho, segundo o CEISE (Centro de Indústrias de Sertãozinho), que congrega 550 indústrias da região, quase uma centena será afetada pelo rompimento unilateral do contrato.

Pelo contrato que havia entre a CPFL e as indústrias, pagava-se R$ 0,18 por hora em horário normal e R$ 0,35 em horário de pico, isto é, entre 18h e 21h. Com o rompimento do contrato, as empresas voltaram a pagar a tarifa considera normal, R$ 0,79 por hora.

Esta mudança contratual unilateral representa mais de 100% de aumento e irá, certamente, trazer um grande impacto aos custos das indústrias que dependem, na formação dos custos, do preço da energia.

E qual o argumento da CPFL?

Lastreia-se, juridicamente, em cláusula contratual que prevê o rompimento do contrato de forma unilateral e, aproveita toda a “onda” do apagão para argüir que lhe falta energia. Tais argumentos são disparatados.

A primeira falácia é o argumento que falta energia. Ora, se falta energia como então a CPFL continua a dispor-se a fornecer tal às indústrias por um preço 100% superior? Se houvesse falta de energia, então, haveria cortes e racionamento e não simplesmente aumento do preço do fornecimento.

Fica claro que a questão, então, é o preço. A CPFL “surfa a onda” do apagão para aumentar seus lucros. Tal opinião já foi esboçada por profissionais especializados na área, como João Mello, da consultoria Andrade & Canellas, que afirmou que “Esse preço não é de mercado. Ultrapassou a faixa razoável.” (Folha de São Paulo, 15.01.08)

Compreendido que há um movimento especulativo por parte da CPFL, o qual ultrapassa o razoável quando majora seu preço em mais de 100% alegando falta de produto (energia) mas, contrariando sua justificativa, diz que tem o produto (energia) se lhe for pago o aumento, resta aos consumidores somente a busca do Poder Judiciário.

Com efeito, em primeiro plano, há que se situar o contrato de fornecimento de energia como um “contrato monopolizado”. Ora, os consumidores de energia elétrica não têm opção ao fornecimento de energia elétrica senão contratando com a CPFL. Não existe empresa concorrente que dê opção ao consumidor de buscar alternativas. Ou o consumidor contrata com a CPFL ou compra um gerador próprio.

Este fato, em si, já é pernicioso a qualquer relação comercial.

Não obstante, é de se ressaltar que a própria CPFL, não muito tempo atrás, incentivou os grandes consumidores (indústrias) a firmarem contrato de fornecimento diferenciado.

É evidente que este contrato de fornecimento com preços diferenciados trouxe vantagens financeiras aos consumidores, mas em primeiro e maior plano à CPFL, que conseguiu, assim, “distribuir” seu fornecimento ao longo do dia, maximizando sua produção e lucros.

Assim, foi a própria CPFL que incentivou as indústrias a fiarem-se no fornecimento de sua energia, fazendo com que tais indústrias fizessem todo o planejamento dentro de tal conjuntura.

O rompimento, abrupto e unilateral, do preço diferenciado figura-se, pois, como um desequilíbrio na relação negocial, lesiva e ilegal à luz da nova contratualística regulada pelo Código Civil.

Melhor dizendo e enfocando o aspecto puramente jurídico1, conforme já esboçamos no livro Revisão de Contratos no novo Código Civil, claro está que o novo Código Civil procurou regrar a contratualística de modo que a liberdade irrestrita de contratar ficasse atrelada à função social do contrato que, em última análise, não pode ser compreendida senão como instrumento de pacificação social.

Deste modo, como poder-se-ia afirmar que a admissão de contratos desequilibrados, que gerassem desproporções entre “vantagens” e “sacrifícios”, poderiam atender suas funções sociais?

A natureza jurídica da ação de revisão judicial de contratos, então, deve ser compreendida como instrumento processual que possibilita, em situações onde a relação contratual em está em dissonância com sua função social, à tutela jurisdicional reequilibrar o vínculo, enquadrando o acordo de vontades (privado, em princípio) à função social, representada, em última análise, pela proporcionalidade.

O seu fundamento, embora possa à primeira vista parecer, somente privado, confunde-se com o direito público, porquanto o equilíbrio interessa à sociedade. Esta compreensão é turvada pelos interesses diretos que têm os contratantes no resultado da demanda, contudo, deve ser entendido o equilíbrio contratual como um bem social e não um negócio privado.

No caso em espécie, frente a inoperância das instituições governamentais que deveriam cuidar dos serviços prestados por setores monopolizados, resta às indústrias, prejudicadas pelo arbitrário movimento especulativo no setor de energia, socorrem-se do Poder Judiciário e, buscarem em ações próprias, a cidadania que lhes é negada.

Nota de rodapé

1. Tal assertiva, tal seja, de que uma matéria possa ser puramente jurídica, é um paradoxo, porquanto, tratando-se o Direito de uma ciência eminentemente humana, tudo o que relaciona-se ao homem, todos seus contornos, suas relações sociais, seu inter-agir, interessa, em princípio, à ciência jurídica.

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