Disputa em sociedade

Sociedade de dois sócios pode acionar um sem aval de cotistas

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23 de janeiro de 2008, 9h44

Sociedade limitada composta de apenas dois sócios pode ajuizar ação de responsabilidade contra um deles, sem a necessidade de reunir os cotistas para tomar tal decisão. O entendimento é da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. A Turma decidiu, por unanimidade, acolher o Recurso Especial da Indústria de Móveis Moro para determinar o prosseguimento de uma ação de indenização contra um dos sócios.

A Indústria de Móveis Moro pediu na Justiça que André Alexandre Bortolosso, detentor de 50% do capital social da empresa, Larri Cusin, Euclides Longhi, Ivo Cusin e Decormóvel Indústria de Móveis fossem condenados a devolver valores que teriam sido desviados, de forma ilícita, da Móveis Moro.

A primeira instância considerou que a sociedade deixou de preencher um dos pressupostos para a validade do processo: a autorização prévia da maioria dos cotistas em conformidade com o artigo 159 da Lei de Sociedades Anônimas. As partes apelaram ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que manteve a sentença.

A Móveis Moro entrou com Recurso Especial no STJ. Argumentou violação aos artigos 10 e 18 do Decreto 3.708/19, que dispõe sobre a responsabilidade dos sócios-gerentes no regime legal das sociedades por cotas limitadas. Pediu também a aplicação subsidiária da Lei de Sociedades Anônimas e dos artigos 115 e 159 da Lei 6.404/76 (lei da Sociedade por Ações), que prevê ser desnecessária a reunião dos cotistas quando a sociedade é composta por apenas dois sócios e um está impedido de votar.

A ministra Nancy Andrighi, relatora do caso, acolheu os argumentos. Segundo ela, o contrato social da Móveis Moro não prevê a existência de conselho de administração, de conselho consultivo, de conselho fiscal e tampouco exige a aprovação prévia da reunião de cotistas para que seja tomada qualquer decisão administrativa.

Nancy Andrghi entendeu que, se a particular situação jurídica da sociedade revela que as decisões dos cotistas poderiam ser tomadas de maneira informal, exceto quando se referiam à própria alteração do contrato social, também não deve se exigir reunião de cotistas para o ajuizamento de ação de responsabilidade contra o administrador.

A 3ª Turma acatou Recurso Especial para afastar a extinção do processo em julgamento de mérito e determinar o prosseguimento da ação de indenização.

REsp 736.189

Leia a decisão

RECURSO ESPECIAL Nº 736.189 – RS (2005⁄0046974-7)

RECORRENTE: INDÚSTRIA DE MÓVEIS MORO LTDA

ADVOGADO: VANDERLEI LUÍS WILDNER E OUTRO(S)

RECORRIDO : ANDRÉ ALEXANDRE BORTOLOSSO

ADVOGADO: JOSÉ DARCI PEREIRA SOARES E OUTRO(S)

RECORRIDO: DECORMÓVEL INDÚSTRIA DE MÓVEIS LTDA E OUTROS

ADVOGADO: PAULO ROBERTO TRAMONTINI E OUTRO

EMENTA

PROCESSO CIVIL E DIREITO SOCIETÁRIO. SOCIEDADE POR QUOTAS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA. RESPONSABILIDADE DO ADMINISTRADOR. AÇÃO SOCIAL UTI UNIVERSI. APLICAÇÃO SUPLETIVA DO ART. 159 DA LEI DAS SOCIEDADES ANÔNIMAS. PRÉVIA REUNIÃO DE SÓCIOS QUOTISTAS. IMPOSSIBILIDADE. PARTICULARIDADES DA HIPÓTESE. SOCIEDADE DE APENAS DOIS SÓCIOS, AMBOS GERENTES, CADA UM DETENTOR DE METADE DO CAPITAL SOCIAL.

– Os sócios gerentes respondem perante a sociedade pelos atos praticados com violação do contrato ou da lei.

– A ação de responsabilidade civil contra o administrador compete primordialmente à própria sociedade por quotas de responsabilidade limitada.

– As limitadas podem admitir contorno jurídico informal no qual a manifestação da vontade social se dá quase que exclusivamente pelos atos de seus administradores, restringindo-se as reuniões dos quotistas a deliberar temas que envolvam apenas a alteração do contrato social.

– A aplicação supletiva das formalidades previstas na Lei de Sociedades Anônimas, por força da regra contida no art. 18 do 3.708⁄19, não deve ser feita automaticamente, sem examinar a natureza jurídica específica da sociedade por quotas de responsabilidade limitada que se encontra em litígio.

– Se a particular situação jurídica da sociedade revela que as decisões dos quotistas podem ser tomadas de maneira informal, exceto quando se refiram à própria alteração do contrato social, também não se deve erigir a realização de reunião prévia de quotistas à condição de pressuposto processual objetivo externo. Solução que favorece, ademais, o amplo acesso ao Poder Judiciário.

Recurso Especial provido.

RELATÓRIO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):

Cuida-se de recurso especial interposto por Indústria de Móveis Moro Ltda, com fundamento no arts. 105, inciso III, alíneas “a” e “c” da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.

Ação: Indústria de Móveis Moro Ltda. ajuizou ação indenizatória contra André Alexandre Bortolosso, Decormóvel Indústria de Móveis Ltda., Larri Cusin, Euclides Longhi e Ivo Cusin. A autora pretende ver seu administrador, André Alexandre Bortolosso, detentor de 50% do capital social, condenado na devolução de valores que ilicitamente desviou da atividade normal da empresa em comunhão de esforços com os demais réus.


Sentença: Em primeiro grau de jurisdição considerou-se que a sociedade autora, tendo apenas dois sócios, cada um com 50% do capital social, deixou de preencher um dos pressupostos de existência e desenvolvimento válido do processo, qual seja, a autorização prévia, para a propositura da ação, da maioria dos quotistas, em conformidade com o art. 159, Lei de Sociedades Anônimas, aplicável à espécie por força do art. 18 do Decreto 3.708⁄19. O feito foi extinto sem julgamento de mérito, com base no art. 267, IV, CPC.

Acórdão: Ambas as partes apelaram e o Tribunal de origem manteve integralmente a sentença, lavrando acórdão que trouxe a seguinte ementa:

“Apelação Cível. Sociedade por quotas de responsabilidade limitada. Sociedade de apenas dois sócios, ambos gerentes, cada um detentor de metade do capital social. Ação de reparação de danos promovida pela sociedade representada por um dos sócios contra o outro. Ilegitimidade ativa. Aplicação supletiva do art. 159, § 4o, da Lei das Sociedades Anônimas. Extinção do processo sem julgamento do mérito, ressalvada em face das peculiaridades do caso a possibilidade de ajuizamento da demanda pelo sócio em nome próprio. Honorários advocatícios. Legitimidade para postular a majoração da verba. Apesar de a Lei 8.906⁄94 ter atribuído direito autônomo ao advogado para tal desiderato, os demandados também são parte legítima para pleitear a majoração dos honorários de forma concorrente. Verba arbitrada por apreciação eqüitativa do juiz, que se mostra condizente com o zelo e trabalho desenvolvido pelo profissional, a dificuldade da causa e o tempo de tramitação do processo. Apelação da autora desprovida.

Rejeição da preliminar levantada em contra-razões da apelada. Apelação dos demandados desprovida”.

Embargos de Declaração: Indústria de Móveis Moro Ltda. opôs embargos de declaração, alegando haver omissão no que diz respeito aos arts. 10 e 18 do Dec. 3.708⁄19, ao art. 115, § 1o, da Lei 6.404, de 15.12.1976, bem como ao art. 6o, CPC. Os embargos foram rejeitados pelo Tribunal de origem (fls. 312⁄315)

Recurso Especial: Indústria de Móveis Moro Ltda. interpôs, então, Especial, sob o argumento de que o acórdão recorrido teria violado os seguintes dispositivos da lei federal: (i) art. 535, CPC, porque o Tribunal de origem deixou de suprimir as omissões e de corrigir as contradições apontadas por meio de embargos de declaração; (ii) arts. 10 e 18 do Dec. 3.708⁄19, porque há disposição específica a respeito da responsabilidade dos sócios-gerentes no regime legal das sociedades por quotas limitadas e, dessa forma, seria desnecessária a aplicação subsidiária da Lei de Sociedades Anônimas; (iii) arts. 115 e 159 da Lei 6.404⁄76, tendo em vista que seria desnecessária a reunião quando a sociedade é composta por apenas dois sócios e um encontra-se impedido de votar; e (iv) art. 245 da Lei 6.404⁄76, que lhe conferiria legitimidade ativa. Alegou, por fim, haver dissídio pretoriano, trazendo como paradigma o REsp 16.410-0⁄SP.

Juízo de Admissibilidade: Apresentadas as contra-razões (fls. 363⁄370; 375⁄378), o Tribunal de origem deixou de admitir o Especial (fls. 380⁄383). Dei provimento ao agravo de instrumento para melhor análise do feito, determinando a remessa dos autos ao STJ.

É o relatório.

VOTO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):

Cinge-se a controvérsia a analisar a possibilidade de aplicação subsidiária da Lei de Sociedades Anônimas ao regime legal das sociedades por quotas de responsabilidade limitada em especial no que diz respeito à necessidade de convocação de reunião de quotistas para o ajuizamento de ação social uti universi para a responsabilidade do administrador.

(i) Admissibilidade.

Inicialmente, anoto que o recurso especial deve ser admitido com fundamento na alínea ‘a’ do permissivo constitucional. Com efeito, já em sede de apelação, o recorrente vinha discutindo o alcance dos arts. 10 e 18, Dec. 3.708⁄19, bem como dos arts. 115, 159 e 245 da Lei 6.404⁄76.

Embora não haja, no acórdão recorrido expressa menção a tais dispositivos de lei, tal fato não afasta a conclusão de que o Tribunal de origem tinha em vista a discussão que ora se apresenta neste Especial. Tanto é assim que o Tribunal de origem expressamente faz aplicar à hipótese as regras da Lei de Sociedades Anônimas, exigindo a prévia existência de reunião de quotistas.

Houve, portanto, o necessário prequestionamento, conforme a inteligência das Súmulas 282 e 292 do STF e dos diversos precedentes do STJ (REsp 819238⁄RJ, Terceira Turma, Rel. Min. Castro Filho, DJ 26.02.2007; AgRg no Ag 769722⁄RS, Quarta Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJ 11.12.2006). Isto é o quanto basta para a admissibilidade do Especial.


Quanto ao dissídio, cabe frisar que a admissibilidade do Especial pressupõe certa similitude de circunstâncias de forma que o acórdão guerreada possa ser confrontado com seu paradigma. Essa é a clara dicção do art. 541, parágrafo único, CPC, e do art. 255, § 2o, RISTJ.

Ocorre que o acórdão trazido pela recorrente não se presta ao paradigma. As hipóteses fáticas, aqui e ali, são completamente diversas. O acórdão paradigma julgou disputa que se deu sob circunstâncias diversas. Ao julgar o REsp 16.410-0⁄SP, a Quarta Turma deste STJ resolveu controvérsia que se calcava tanto na responsabilidade do controlador de sociedade anônima quanto na de seu administrador. Ali, um único sócio detinha mais de 95% do capital social. Ademais, a ação havia sido ajuizada por sócio minoritário. Aqui, a sociedade limitada litiga com um de seus sócios, detentor de 50% das quotas, com fundamento em sua responsabilidade como administrador.

(ii) Violação ao art. 535, II, CPC.

Os embargos de declaração constituem instrumento processual de emprego excepcional, visando ao aprimoramento dos julgados que encerrem obscuridade, contradição ou omissão.

O acórdão hostilizado se manifestou sobre todos os pontos suscitados nas apelações, alcançando solução que, de acordo com a unanimidade dos votantes, foi tida como a mais justa e apropriada para a hipótese vertente.

A prestação jurisdicional dada, portanto, corresponde àquela efetivamente objetivada pelas partes, sem omissão a ser sanada, tampouco contradição a ser aclarada. O Tribunal a quo pronunciou-se de maneira a abordar a discussão de todos os aspectos fundamentais do julgado, dentro dos limites que lhe são impostos por lei.

O não acolhimento das teses contidas no recurso não implica em obscuridade, contradição ou omissão, pois ao julgador cabe apreciar a questão conforme o que ele entender relevante à lide. Não está o Tribunal obrigado a julgar a questão posta a seu exame nos termos pleiteados pelas partes, mas sim com o seu livre convencimento, consoante dispõe o art. 131 do CPC, utilizando-se dos fatos, provas, jurisprudência, aspectos pertinentes ao tema e da legislação que entender aplicável ao caso.

(ii) Da violação aos arts. 10 e 18 do Dec. 3.708⁄19.

A recorrente ajuizou ação indenizatória afirmando que, em seu quadro societário, possui dois sócios, cada um deles detendo 50% das quotas sociais. André Alexandre Bartolosso, na qualidade de sócio gerente da recorrente, teria extrapolado os poderes que lhe eram conferidos pelo contrato social, praticando uma série de atos fraudulentos. Em específico, afirmou que, em 21.03.1997, teriam sido emitidos 2 cheques, no valor total de R$40.000,00, para pagar empréstimo inexistente, de forma a beneficiar os recorridos.

Tanto a sentença quanto o acórdão recorrido viram na inicial aquilo que o direito societário denomina ação social uti universi, ou seja, uma demanda proposta pela sociedade contra seu administrador para se ver ressarcida de prejuízos próprios. Com amparo no art. 18 do Dec. 3.708⁄19, aplicaram, então, as regras constantes do art. 159 da Lei de Sociedades Anônimas, para concluir que era imprescindíviel a convocação de reunião de quotistas para deliberar sobre o tema. No trecho relevante, a fundamentação adotada pelo acórdão recorrido foi a seguinte:

“Trata-se de sociedade por quotas de responsabilidade limitada, constituída por apenas dois sócios, ambos gerentes, detentores cada um de cinqüenta por cento do capital social, nada prevendo a consolidação do contrato social a respeito da ação de responsabilização de um dos sócios pela sociedade, em relação a atos realizados por aquele em prejuízo desta (f. 38-41). A demanda, contudo, foi promovida pela sociedade, representada por um dos sócios, sem a anuência do outro (f. 15-20).

Consoante o art. 11 do Decreto 3.708⁄19, que regula as sociedades por quotas de responsabilidade limitada, cabe ação de perdas e danos, sem prejuízo da responsabilidade criminal, contra o sócio que usar indevidamente da firma social ou que dela abusar. Revela-se omisso, contudo, tal diploma legal a respeito do procedimento a ser seguido em tal hipótese.

Para Egberto Lacerda Teixeira de Freitas (Sociedades Limitadas e Anônimas no Direito Brasileiro, São Paulo, Saraiva, 1987, p. 48), deve-se aplicar supletivamente em casos dessa natureza o art. 159 da Lei das Sociedades Anônimas, tendo em vista o art. 18 do mencionado Decreto 3.708⁄99. De tal sorte, se omisso o contrato social, a ação só poderá ser proposta se a maioria dos quotistas assim deliberar.

No caso dos autos, não ocorreu convocação de qualquer reunião para que os quotistas deliberassem a respeito dessa matéria, nem é óbvio maioria poderia ser obtida, porquanto os dois sócios em litígio detêm cada um cinqüenta por cento do capital social. Tais as circunstâncias, somente caberá ao sócio descontente com a atuação do outro a promoção da demanda de responsabilidade em nome próprio, como se infere do disposto no art. 159, § 4º, da Lei 6.404⁄76.

Solução semelhante é preconizada por C. F. da Cunha Peixoto (A Sociedade por Cotas de Responsabilidade Limitada, vol. I, 2a. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1958, nº 369, p. 341): ‘Verificada a falta do gerente, três hipóteses podem ocorrer: a) a sociedade, isto é, a maioria dos sócios, reconhece a culpa do gerente; b) a maioria é de opinião que não está provada a falta; c) os atos do gerente são aprovados. No primeiro caso, a sociedade deverá destituir o gerente e ingressar em juízo para recompor o patrimônio social e só em sua omissão poderá o sócio tomar a iniciativa. A ação beneficia à sociedade e, conseqüentemente, ao sócio; e se aquela não toma a iniciativa, é razoável que se permita a este propor a competente ação’.

Como se vê, segundo o consagrado jurista, a sociedade somente poderá promover a demanda se reconhecida pela maioria do capital a culpa do gerente, o que não ocorre na espécie, pois os dois únicos sócios divergem a respeito da matéria” (fls. 293⁄300).


O Especial sustentou que o art. 10 do Dec. 3.708⁄19 enuncia regra específica sobre a responsabilidade dos administradores de sociedade por quotas limitada, estabelecendo que “os sócios gerentes ou que derem o nome à firma não respondem pessoalmente pelas obrigações contrahidas em nome da sociedade, mas respondem para com esta e para com terceiros solidaria e illimitadamente pelo excesso de mandato e pelos actos praticados com violação do contracto ou da lei”. Com isso – conclui o recorrente – não haveria omissão a justificar a aplicação subsidiária da Lei de Sociedades Anônimas.

Com efeito, o vetusto Dec. 3.708⁄19 foi econômico ao tratar da responsabilidade do administrador. O regime jurídico do administrador, denominado sócio-gerente, resume-se a dois artigos de lei. O art. 10 determinava que o administrador fosse solidária e ilimitadamente responsável pelos atos praticados com violação à lei ou ao contrato social. O art. 11, por sua vez, estabelecia que “cabe acção de perdas e damnos, sem prejuízo da responsabilidade criminal, contra o sócio que usar indevidamente da firma social ou que della abusar”.

Tal fato levou um dos mais abalizados comentaristas da aludida norma a afirmar que era “tristemente lacunoso e defeituoso o Decreto nº 3.708, de 10 de janeiro de 1919, em tudo quanto diz respeito à administração das sociedades por quotas de responsabilidade limitada. Indesculpável a incúria e a negligência com que o legislador brasileiro enfrentou, ou deixou de enfrentar, tão magno assunto” (Egberto Lacerda Teixeira. Das Sociedades por Quotas de Responsabilidade Limitada. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 104).

Embora seja certo que o Código Civil de 2002 tenha abandonado a fórmula sintética de regulamentação das limitadas, no que vem sendo objeto de críticas (vide, exemplificativamente, Rachel Sztajn. Notas em matéria de empresa e sociedades empresariais no Código Civil. In Revista do Advogado, AASP, n. 71, Agosto de 2003, p. 93-98), é certo que o novo diploma também é silente no que diz respeito aos procedimentos necessários para a responsabilização do administrador. Ainda que assim não fosse, seus efeitos não poderiam retroagir para regulamentar a hipótese em discussão nesses autos.

Dessa forma, o desafio que se apresenta é obter a interpretação sistemática mais condizente com o espírito do direito societário e identificar se os poucos comandos normativos contidos nos arts. 10 e 11 do Dec. 3.708⁄19 são suficientes ao deslinde do feito ou se, ao contrário, reclamam complementação.

De especial relevância para a solução da presente controvérsia é a dicção do art. 10 do Dec. 3.708⁄19. Se estabeleceu ali que “os sócios gerentes (…) respondem para com esta e para com terceiros solidaria e illimitadamente pelo excesso de mandato e pelos actos praticados com violação do contracto ou da lei”. Com efeito, os desvios da administração causam prejuízos à sociedade e é ela quem tem legitimidade para reclamá-los em juízo. Trata-se, à toda evidência, de ação social.

Dispondo sobre a mesma ordem de problemas, a Lei das Sociedades Anônimas estabelece que os administradores responderão perante a sociedade por sua negligência. Com efeito, a dicção do art. 159, Lei 6.404, de 15.12.76 dispôs o seguinte:

“Compete à companhia, mediante prévia deliberação da assembléia-geral, a ação de responsabilidade civil contra o administrador, pelos prejuízos causados ao seu patrimônio”.

Luiz Gastão Paes de Barros Leães, tratando sobre o tema sob a ótica das sociedades anônimas, afirma que “a ação de responsabilidade civil contra o administrador de sociedade anônima compete à companhia. É natural; à sociedade, como pessoa jurídica com aptidão para adquirir direitos e contrair obrigações, é que cabe prioritariamente defender a integridade do seu próprio patrimônio (Lei n. 6.404, de 1976, art. 159). A ação pertence à sociedade e, por isso, qualifica-se com propriedade, de ação social” (A prévia deliberação assemblear como condição de legitimatio ad causam na ação social. In Pareceres. São Paulo: Ed. Singular, v.I, p. 462).

Há, portanto, um certo paralelismo entre o regime legal das sociedades por quota de responsabilidade limitada e o das sociedades anônimas, pois, a final, seus administradores respondem perante a própria sociedade quando negligentemente lhe causarem danos. A ação social existe tanto aqui como ali.

As semelhanças evidentes param aí, pois a Lei 6.404⁄76 exige que a assembléia geral de acionistas delibere previamente sobre a conveniência de se vir a juízo buscar ressarcimento. A exigência de tal formalidade é justificada nos seguintes termos pela doutrina:

“Tratando-se de procedimento da sociedade contra membros da própria administração (que normalmente seria o órgão encarregado da representação processual da sociedade), a lei reserva à assembléia geral – órgão que expressa a vontade social – a competência para decidir sobre a propositura ou não da ação em questão” (Barros Leães, idem, p. 462-463).


A formalidade é mais que razoável quando se trata de sociedade anônima, pois ordinariamente há ali uma razoável separação entre a administração da empresa e a titularidade de ações, cisão essa que só é mitigada no nível do conselho de administração. Submetendo-se os administradores exclusivamente ao crivo dos acionistas, confere-se estabilidade à gestão empresarial e resguarda-se o interesse social, de forma a assegurar que a ação de responsabilidade não será meio para a consecução de interesses individuais (no mesmo sentido, vide Nelson Eizirik. Temas de Direito Societário. São Paulo: Renovar, 2005, p. 117).

A realidade vivenciada pelas sociedades por quotas de responsabilidade limitada pode ser, no entanto, amplamente diversa dessa, sobretudo quando se trata de empresas de pequeno ou médio porte.

No seio de uma organização empresarial mais modesta, a titularidade de quotas e a administração são realidades que freqüentemente se confundem. Lembre-se, nesse sentido, que o Dec. 3.708⁄19 sequer exigiu que os quotistas se reunissem em sessões formais, que houvesse aprovação anual de demonstrações financeiras ou que certas matérias ficassem sujeitas a aprovação de maioria qualificada. As únicas deliberações formais são aquelas que implicam na própria alteração do contrato social e, por isso, devem ser levadas a registro. Nesse passo, as deliberações sociais, na maior parte das vezes, se dá, no dia-a-dia, sob a forma de decisões gerenciais. Da mesma forma, é mais difícil se diferenciar na limitada o interesse social do interesse dos sócios. Por isso, as formalidades que bem tutelam as sociedades anônimas podem, se indistintamente transpostas para o âmbito das limitadas, se revelar verdadeiras armadilhas.

É justamente esse o caso dos autos. A recorrente fabrica e comercializa móveis, seu quadro societário é composto por duas pessoas, cada uma detentora de metade do capital social. Ambos os sócios exercem a gerência. O contrato social, por outro lado, não prevê a existência de conselho de administração, de conselho consultivo, de conselho fiscal e tampouco exige aprovação prévia da reunião de quotistas para que seja tomada qualquer decisão administrativa. O contrato social também não prevê forma, prazo e tampouco quorum de instalação para a reunião de quotistas.

Por isso, exigir que a ação social ut universi esteja, na hipótese dos autos, sujeita à prévia deliberação dos quotistas é fato que gera algumas perplexidades. Caso seja imposta a realização da reunião, as partes haveriam de se deparar com o problema do empate, já que cada um dos sócios possui metade do capital social, e é de se esperar que cada um defenda sua posição. Haveriam, assim, de aplicar a regra do art. 129, § 2o, Lei 6.404⁄76, segundo o qual “no caso de empate, se o estatuto não estabelecer procedimento de arbitragem e não contiver norma diversa, a assembléia será convocada, com intervalo mínimo de dois meses, para votar a deliberação; se permanecer o empate os acionistas não concordarem em cometer a decisão a um terceiro, caberá ao Poder Judiciário decidir no interesse da companhia”.

Como se não bastasse, os sócios haveriam de se defrontar com um eventual impedimento do voto, como, aliás, já vem sendo sustentado pelo recorrente à luz do art. 115, §1o, Lei 6.404⁄76.

Com isso, o acórdão guerreado poderia levar os sócios a litigarem durante anos sobre a validade do ato societário exigido pelo Tribunal de origem como requisito para a propositura da ação social uti universi. A possibilidade de ajuizamento da ação social uti singuli tampouco remedia a situação, pois o art. 159, §§ 3o e 4o, da Lei 6.404⁄76 também exigem a realização de prévia assembléia geral para que o sócio possa atuar como substituto processual da sociedade.

Assim, o absurdo das conseqüências advindas da exigência da realização de uma reunião de quotistas bem revela que tal solução contraria comezinhos princípios de amplo acesso ao Poder Judiciário e de razoável duração do processo.

Deve ser igualmente ressaltado que é um verdadeiro contra-senso a aplicação supletiva das formalidades previstas na Lei de Sociedades Anônimas à sociedade recorrente, que prezou pela informalidade em seu procedimento decisório. Se a particular situação jurídica da sociedade revela que as decisões dos quotistas poderiam ser tomadas de maneira informal, exceto quando se referiam à própria alteração do contrato social, também não se deve exigir reunião de quotistas para o ajuizamento de ação de responsabilidade contra administrador da limitada.

Não se pode aplicar a regra contida no art. 18 do 3.708⁄19 automaticamente, sem examinar a natureza jurídica específica da sociedade por quotas de responsabilidade limitada que se encontra em litígio. Havendo incompatibilidade entre a natureza específica da sociedade recorrente e as normas supletivas da Lei 6.404⁄76, não se pode erigir a realização de reunião prévia de quotistas à condição de pressuposto processual objetivo externo.

Ante a suficiência dos fundamentos supra indicados para a solução da controvérsia, fica prejudica a análise dos arts. 115, 159 e 245 da Lei 6.404⁄76.

Forte em tais razões, DOU PROVIMENTO ao Recurso Especial para afastar a extinção do processo sem julgamento do mérito e determinar o prosseguimento da ação indenizatória na esteira do devido processo legal.

CERTIDÃO

Certifico que a egrégia TERCEIRA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

A Turma, por unanimidade, conheceu do recurso especial e deu-lhe provimento, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Humberto Gomes de Barros e Ari Pargendler votaram com a Sra. Ministra Relatora.

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