Punição contraditória

Lei antidrogas criou uma simbiose entre o tráfico e o combate

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14 de janeiro de 2008, 10h36

A Lei 11.343/2006, denominada de “Lei Antidrogas” contém em si algumas armadilhas que podem transformá-la na “Lei Pró-Drogas”. Vejamos.

Primeiramente deve se ter em mente que o tráfico de drogas é, essencialmente, uma espécie de comércio, que, a despeito de ser ilegal, obedece às leis universais da oferta e da demanda. Obviamente, só existem traficantes porque existem usuários de drogas. Quanto mais fácil for para o usuário comprar a droga, mais incentivos terá o traficante para vendê-la. O usuário e o traficante vivem em uma situação de dependência mútua[1]. A situação de um deles afeta diretamente a situação do outro.

Por isso, a política de drogas deve ter uma coerência interna: deve reprimir conjuntamente o tráfico e o uso de drogas. Ou, em outro extremo, liberar ambos. Qualquer alternativa seria, no mínimo, contraditória.

Porém, foi isso que a lei fez. Ao deixar de considerar o porte de drogas um crime[2], criou penas cuja força repressiva é tão insignificante que beira o escárnio[3]: advertência sobre os efeitos das drogas; freqüência a curso ou programa educativo e prestação de serviços à comunidade. Dessa maneira, ninguém se sentirá incitado a não portar drogas. Pelo contrário: o porte de drogas tem uma relação custo-benefício bastante interessante para o usuário, pois, mesmo na remotíssima hipótese de ser condenado, a sanção penal não provocaria nenhum temor.

A esquizofrenia legal fica patente quando verificamos que a pena mínima do traficante de drogas foi aumentada de três para cinco anos[4]. O objetivo é, evidentemente, evitar que os condenados por tráfico de drogas recebam o benefício da substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos[5].

Como justificar o paradoxo de uma lei que “estimula” o usuário e reprime ainda mais o traficante? É razoável “estimular” a demanda e reprimir a oferta? Porém, o paradoxo é apenas aparente, como veremos a seguir.

Na verdade, apenas em duas ocasiões a pena foi diminuída: no citado artigo 33, caput, e no artigo 36, que trata do financiamento do tráfico. Vários tipos penais foram criados prevendo tratamento mais benéfico para determinadas categorias:

1) quem semeia, cultiva ou colhe plantas que dão origem a drogas é apenado nos termos do artigo 28, caput, se o objetivo for consumo próprio e em pequena quantidade (artigo 28, § 1°);

2) quem induz, instiga ou auxilia alguém a consumir drogas recebe a pena de detenção de um a três anos (artigo 33, § 2°);

3) quem oferece droga de modo eventual e gratuito a pessoa de sua convivência recebe a pena de seis meses a um ano (artigo 33, § 3°);

4) o traficante primário, de bons antecedentes e que não tenha carreira criminosa nem integre organização criminosa pode ter a pena diminuída de um a dois terços (art. 33, § 4°);

5) quem colabora como informante de organização criminosa recebe a pena de reclusão de dois a seis anos (art. 38); e

6) redução de pena de um a dois terços para o membro da quadrilha que delata seus comparsas (artigo 41). Ressalte-se que, de acordo com a lei anterior, em todos esses casos o agente responderia por tráfico de drogas, recebendo pena de reclusão de três a quinze anos.

Portanto, o aumento da pena mínima do tipo básico de tráfico de drogas (artigo 33, caput) — de três para cinco anos, foi uma alteração pouco mais que cosmética, em meio a vários dispositivos que beneficiaram traficantes e usuários. Trata-se de uma lei que, sub-repticiamente, considera o uso e o tráfico de drogas “mais aceitáveis” ou “menos graves”.


Tudo isso é resultado de uma ideologia bastante disseminada entre os doutrinadores penais brasileiros: o laxismo penal, cujo conceito é exposto com brilhantismo por Silveira:

“Laxismo Penal é a tendência a propor solução absolutória, mesmo quando as evidências do processo apontem na direção oposta, ou a aplicação de punição benevolente, desproporcionada à gravidade do delito, às circunstâncias do fato e à periculosidade do infrator, tudo sob o pretexto de que, vítima do esgarçamento do tecido social ou de relações familiares deterioradas, o delinqüente se sujeita, quando muito, à reprimenda simbólica, desconsiderando, absolutamente, o livre-arbítrio na etiologia do fenômeno transgressivo” [6].

Ressalte-se que todas essas mudanças ocorrem quando (ainda) está em vigor o dispositivo constitucional que considera o tráfico de drogas um crime equiparado a hediondo (artigo 5°, XLIII). Ora, se hediondo é o crime de maior gravidade, que deve receber a punição mais rigorosa, não estaria sendo, por via oblíqua, violada a Constituição?

Se o tráfico é hediondo, ou seja, gravíssimo, o consumo de drogas, que é sua causa, poderia ser uma infração penal de gravidade ínfima? Em termos lógicos, é razoável que do “quase nada jurídico” que se transformou o porte de drogas surja um crime que a Constituição equipara a hediondo?

Estamos diante de uma questão de hermenêutica constitucional. É razoável a nova lei em vista do caráter hediondo do tráfico de drogas? A discussão está em aberto, mas é importante ressaltar que, a princípio, seria mais coerente uma emenda à Constituição para que se possa alterar tão radicalmente a política de drogas no Brasil.

Além disso, temos que o crime, como diria Durkheim, traz suas “vantagens” para o Estado. Uma delas é justificar a hipertrofia da Administração Pública. Milhares de agentes públicos são contratados com a justificativa de combaterem a criminalidade. Da mesma forma, vários órgãos públicos são criados para, pelo menos declaradamente, combater o crime.

A lei faz com que o crime possa trazer uma nova “vantagem” para o Estado. O artigo 62 determina que os instrumentos e produtos do tráfico de drogas devem ser apreendidos, mas, contrariando a regra geral, a sua alienação não é obrigatória, pois a polícia judiciária pode requerer permissão para fazer uso desses bens. Aqueles bens que forem eventualmente alienados terão seu valor transferido para o Fundo Nacional Anti-Drogas (Funad).

A princípio, o dispositivo parece ser bastante salutar em sua idéia de utilizar os bens dos traficantes para combater o próprio tráfico, uma prática que poderia levar-lhes, paulatinamente, à asfixia econômica. Porém, será que é mesmo interessante à polícia o desmantelamento de uma grande quadrilha de traficantes?

A dúvida, por estranho que pareça, está calcada na seguinte lógica: a lei constituiu uma “simbiose” entre o tráfico de drogas e os órgãos encarregados de combatê-lo. “Graças” aos criminosos, a polícia pode ter mais verbas e ser mais bem aparelhada. Além disso, dá-se aos policiais a oportunidade de fazerem uso de bens de alto luxo, aos quais nunca teriam acesso normalmente[7].

Considerando que o ser humano é movido a incentivos, temos uma situação em que a polícia é estimulada a utilizar sua força repressiva a conta-gotas, de modo que nunca chegue a desmantelar totalmente uma organização criminosa voltada para o tráfico, que, periodicamente, pode lhe render uns “presentinhos” [8].

Mais de uma vez, o presidente da República e o ministro da Justiça à época da promulgação da lei, Márcio Thomaz Bastos, manifestaram sua discordância da política repressiva no combate às drogas[9].


Também há denúncias, infelizmente não investigadas de modo devido, de que o PT tenha recebido dinheiro das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc)[10], movimento comunista diretamente ligado ao tráfico de cocaína. Por fim, o partido do governo participa, a cada dois anos, do Foro de São Paulo, reunião dos partidos e movimentos de esquerda da América Latina, que inclui os narcoterroristas das Farc, conforme registram as próprias atas da reunião[11]. Por essa simples amostra, vemos que o partido do presidente da República coleciona indícios da sua opção “liberal” de política criminal.

Ressaltamos que o movimento mundial pela liberalização das drogas tem vozes respeitáveis, como o prêmio Nobel Milton Friedman[12]. Porém, essa não foi a opção de nossa Constituição. Pelo contrário: não só considerou o tráfico como crime equiparado a hediondo, mas também possibilitou a extradição de brasileiro naturalizado por crime de tráfico de drogas, mesmo que cometido após a naturalização (artigo 5°, LI); e determinou o confisco de imóveis rurais onde sejam cultivadas plantas tóxicas (artigo 243).

Portanto, por mais que sses dispositivos constitucionais sejam criticáveis, cumpre obedecê-los, cabendo agora aos operadores do Direito evitar que a lei, já excessivamente liberal no tocante ao usuário ao descriminalizar o porte de drogas, também se converta em um passo, ainda que sutil, no caminho da descriminalização do próprio tráfico de drogas.

Bibliografia:

FARC-PT: Abin não disse a verdade, dizem pessoas que trabalharam na investigação da Abin. Disponível em: http://pt.wikinews.org/wiki/FARC-PT:Abin_n%C3%A3o_disse_a_verdade,_dizem_pessoas_que_trabalharam_na_investiga%C3%A7%C3%A3o_da_Abin.

Foro de São Paulo. Disponível em: http://www.midiasemmascara.com.br/pop_foro.htm. Acesso em 26.12.2007.

GIORDANO, Al. A guerra das drogas é uma guerra de classes. Disponível em: http://www.narconews.com/Issue30/artigo773.html. Acesso em 26.12.2007.

GOMES, Luiz Flávio et al. Nova lei de drogas comentada. São Paulo: RT, 2006.

PAIGE, Randy. Entrevista com Milton Friedman sobre a “Guerra à Droga”. Disponível em http://www.geocities.com/Athens/8613/bbfridm.html. Acesso em 26.12.2007.

PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 2001.

SILVEIRA, Sérgio Luiz Queiroz Sampaio da. Laxismo penal e a Lei nº 11.343/2006. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10098 . Acesso em: 26 de dezembro de 2007.


[1] Como foi muito bem demonstrado no filme “Tropa de Elite”.

[2] Anteriormente, a Lei 6368/76 aplicava a pena de detenção, de seis meses a dois anos, e multa.


[3] Vide o art. 28, caput, da lei.

[4] Vide o art. 33, caput, da lei.

[5] Vide o art. 44, caput, do Código Penal.

[6] SILVEIRA, Sérgio Luiz Queiroz Sampaio da. Laxismo penal e a Lei nº 11.343/2006 .

[7] Recentemente, um delegado da Polícia Federal foi flagrado utilizando, para fins particulares, um veículo apreendido de um traficante. O automóvel estava avaliado em quase R$ 300.000,00.

[8] Aqui estamos considerando apenas a atuação lícita da polícia, sem levar em conta as extorsões periodicamente feitas por policiais em traficantes.

[9] Cf. http://www.narconews.com/Issue30/artigo773.html.

[10] Cf. http://pt.wikinews.org/wiki/FARC-PT:Abin_n%C3%A3o_disse_a_verdade,_dizem_pessoas_que_trabalharam_na_investiga%C3%A7%C3%A3o_da_Abin .

[11] Disponíveis em http://www.midiasemmascara.com.br/pop_foro.htm.

[12] Cf. a interessantíssima entrevista disponível em http://www.geocities.com/Athens/8613/bbfridm.html.

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