São Paulo tem solução

Entrevista: Nelson Calandra, presidente da Apamagis

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12 de janeiro de 2008, 23h00

Nelson Calandra - por SpaccaSpacca" data-GUID="nelson_calandra.png">O desembargador Nelson Calandra defende a magistratura não apenas como um dever de ofício de quem preside a maior entidade de magistrados do país, mas como um ato de fé na carreira que abraçou há 26 anos. Ele compara o trabalho do juiz com o do padeiro que tem a obrigação de fazer o pão de cada dia de sua clientela. “Nosso dever é colocar na mesa de cada cidadão o resultado do nosso trabalho que é distribuir justiça”, diz ele com a certeza de que fala de um sonho possível.

Com experiência de militância em entidades da magistratura, o desembargador encara seu trabalho como se fosse o de um líder de infantaria num campo de batalha. Na sua opinião, hoje o juiz é um escravo moderno, cobrado a cumprir metas e obrigado a proferir a cada mês cerca de 160 sentenças.

Calandra acredita que a Associação Paulista dos Magistrados (Apamagis) deve se fortalecer como braço político do Tribunal de Justiça. Ele defende uma parceria entre a entidade e a instituição, na qual o TJ cumpre o papel de administrar a Justiça paulista, enquanto a Apamagis o de pavimentar o terreno para a execução dos planos administrativos.

Como um otimista incorrigível, o novo presidente da Apamagis tem fé de que os problemas do Judiciário paulista estão perto do fim. As fraquezas do Judiciário não são derivadas da falta de talento, acredita, mas da ausência de recursos. “Se alcançarmos os recursos adequados, com certeza nós venceremos as dificuldades porque o Judiciário é formado por excelentes magistrados e servidores”, afirmou Calandra, em entrevista à revista Consutor Jurídico.

A solução estaria em sensibilizar o Executivo e o Legislativo a investirem na Justiça. O instrumento para tirar o Judiciário da penúria pecuniária seria a criação de um fundo próprio para cobrir as despesas do Tribunal de Justiça. Esse fundo seria constituído por três fontes oficiais de recursos: custas processuais, emolumentos e taxas judiciais.

Cada uma dessas receitas tem uma finalidade diferente. A taxa judicial é responsável pela despesa do Poder Judiciário, ou seja, pela remuneração dos gastos oriundos da prestação jurisdicional. As custas são cobradas para cobrir o custo dos atos processuais. Os emolumentos são destinados ao custeio das atividades extrajudiciais. É pago quando o cidadão lavra uma escritura ou registra um imóvel.

Calandra se mira no exemplo do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, pioneiro na criação de um fundo próprio para cobrir suas despesas. A medida, prevista na Reforma do Judiciário, seria a receita para garantir a independência financeira do Judiciário paulista, acredita Calandra.

Henrique Nelson Calandra, de 62 anos, nasceu em Itaquaquecetuba (extremo leste da Grande São Paulo). Formou-se em 1974 pela PUC de São Paulo. Ingressou na magistratura em 1981 e assumiu como juiz substituto na comarca de Pirassununga. Passou pelos três tribunais de alçada, extintos depois da emenda da Reforma do Judiciário. Chegou ao Tribunal de Justiça em janeiro de 2005.

Leia a entrevista

ConJur — São Paulo tem solução?

Nelson Calandra — São Paulo tem solução. Eu acho que São Paulo tem solução porque os nossos problemas não são derivados de falta de talento, são derivados de falta de recursos. Se nós tivermos os recursos adequados, com certeza venceremos as dificuldades porque temos excelentes magistrados, excelentes servidores. Se o Poder Executivo e o Poder Legislativo resolverem investir em justiça, São Paulo continuará tendo o primeiro lugar como Judiciário pioneiro em todo o Brasil.

ConJur — E como se resolve o problema da falta de recursos?

Nelson Calandra — O Poder Judiciário brasileiro é, pela sua dinâmica, sua organização, o único dos poderes do Estado que reúne condições de ser auto-sustentável, na medida em que existe uma taxa judiciária. Se ela for recolhida, o Judiciário não precisa pedir nada a ninguém, porque ele próprio arrecadará o suficiente para a sua manutenção. A taxa judiciária mede o trabalho que dá o processo, ou deveria medir esse trabalho. O problema é que há isenções tributárias a favor das municipalidades e o Judiciário não arrecada por sua intervenção em diversas áreas, como por exemplo, na questão de crimes ambientais.

ConJur — E o que falta para a cobrança da taxa judiciária?

Nelson Calandra — Precisa de uma reforma legislativa. Nós apresentamos junto à Assembléia um esboço de anteprojeto de lei que visa conceder as taxas para o próprio Judiciário. O Poder Judiciário do Rio de Janeiro hoje é o que está mais em dia em todo o Brasil. É aquele que tem dinheiro para emprestar para o Executivo em razão do modo como gerencia a taxa judiciária. Há muitos anos defendemos essa tese de independência financeira para o Poder Judiciário. O desembargador Thiago Ribas Filho, quando foi eleito presidente do TJ do Rio, fez duas coisas: unificou os Tribunais antes da Emenda 45, muito antes, e dotou o Rio da taxa judiciária.


ConJur — São Paulo já tem um projeto de lei sobre a matéria?

Nelson Calandra — Nós elaboramos um projeto na Frente Parlamentar pela Independência do Poder Judiciário. Cabe agora ao deputado Rodolfo Costa e Silva apresentar o projeto e tocar em frente. A modificação legislativa pode dar ao Tribunal de São Paulo a ferramenta necessária para que ele tenha independência financeira e pague o que deve aos seus servidores. Não se justifica um Tribunal de Justiça cometer a injustiça de dever a magistrados e servidores por salários de tempo antigo. Há dívidas que remontam a oito anos por diferenças e descompassos com o Poder Executivo. Precisamos resgatar essa dívida e modernizar a estrutura administrativa e operacional.

ConJur — As deficiências da estrutura física são muito graves?

Nelson Calandra — A situação é precária. Você anda pelo estado e encontra inúmeros prédios completamente defasados. Temos que olhar para o nosso público, entender melhor as partes que vão ao Tribunal, ter instalações adequadas. Como é que você recebe testemunha para depor no processo criminal, todo mundo misturado. Às vezes o acusado senta ao lado da testemunha no corredor de fórum, em um banco de madeira, sem o menor conforto, sem a menor assistência. E disso tudo resulta que a Justiça Penal muitas vezes exerce um papel menor. Talvez se a Justiça Penal fosse mais eficaz, se houvesse proteção das nossas testemunhas, se tratássemos melhor a nossa clientela, talvez o retrato da sociedade seria diferente. Talvez teria menos gente no presídio, porque a pena tem que exercer um caráter intimidativo. Então, quando muita coisa prescreve, muita coisa não é punida, fica aquele sentimento de impunidade, de descrédito.

ConJur — A Apamagis e o Tribunal de Justiça estão sob nova direção que assume num momento de crise da Justiça de São Paulo. Qual é o papel da Apamagis nesse contexto?

Nelson Calandra — A Apamagis completará 55 anos de existência. Toda a sua vida foi pautada por uma luta para que o Poder Judiciário seja cada vez mais independente. Ela deve atuar como braço político do Tribunal de Justiça e cabe à entidade estar na frente de combate, defendendo propostas que dêem ao Tribunal os instrumentos necessários para que ele possa distribuir Justiça de modo rápido, transparente e eficiente. Nós tivemos situações bastante complicadas no passado. Apesar do esforço feito nas administrações dos presidentes Luiz Tâmbara e Celso Limongi, o quadro pode ser comparado a uma gota d’água em um oceano de dificuldades. Mas vamos vencer essas dificuldades e apresentar um serviço judiciário que seja modelar para São Paulo e para o país.

ConJur — A Apamagis deixa, assim, de ser apenas uma representação sindical e corporativa para se transformar no braço político do Tribunal. É isso?

Nelson Calandra — Na verdade, uma entidade de classe como a Apamagis trabalha em duas vertentes: o lado corporativo e o lado político-administrativo. O primeiro não pode ser esquecido, porque os magistrados e magistradas são de carne e osso, têm suas necessidades elementares que precisam ser atendidas. Há muitos espaços em que ocorre um desencontro entre planos administrativos traçados pelo Tribunal e aquilo que vai nortear as ações em primeiro grau. Uma coisa é você fazer um plano de trabalho maravilhoso desenvolvido por uma entidade de administração como a Fundação Getúlio Vargas, e outra coisa é você ter uma base concreta onde esses planos serão aplicados, onde o juiz tem dificuldade com falta de servidores, falta de recursos materiais. Então nós precisamos olhar para isso também. Nós temos que ver a situação daqueles que constituem a infantaria dentro do Judiciário, aqueles que estão realmente no campo de batalha.

ConJur — Mas deixar para trás o trabalho da FGV não é um retrocesso?

Nelson Calandra — A Fundação Getúlio Vargas tem expertise de matéria administrativa, não precisamente em relação à administração pública. Foi positiva a experiência na iniciativa privada para dar um choque de modernidade, de práticas inovadoras. Mas, muitas vezes quem desenha essas práticas inovadoras não considera as dificuldades que nós temos. Nós magistrados enfrentamos dificuldade de nos adaptar a determinadas práticas, porque estamos acostumados a viver em um mundo de papel, e hoje o mundo não é mais de papel. O mundo de trabalho, o mundo operacional da magistratura transita dentro da informática, com recursos que até então eram desconhecidos. Eu olho para o Poder Judiciário cartorial cheio de papéis e carimbos e eu vejo que esse sistema está no fim. Isto acabou. Daqui para frente nós teremos um Judiciário informatizado, onde os processos vão transitar por meio eletrônico e o juiz terá que ter uma velocidade muito maior de decisão. A modernidade reclama, primeiro, instrumentos eletrônicos de decisão, efetividade da norma jurídica. O único contrato que o povo brasileiro não pode rescindir é a Constituição Federal. Então nós temos que aprender a respeitar a Constituição, a respeitar as leis, a tratar as causas com grande objetividade. O brasileiro tem mania de querer dar jeito para tudo. Tem coisas que não tem jeito, o jeito é cumprir a lei.


ConJur — Como é que fica o juiz? A gente sabe que se no Tribunal existem todos esses problemas, na primeira instância eles podem ser ainda maiores.

Nelson Calandra — Eu costumo dizer que a aplicação da jurisdição penal requer mais do que qualquer coisa um gesto de heroísmo por parte dos juízes e juízas. As condições materiais são péssimas, nós temos funcionários devotados, mas nos falta aquele suporte necessário, base física correta, local para trabalhar. Nós fizemos a opção pelo Juizado Especial, mas nos falta estrutura. O juiz trabalhava na sua Vara durante o dia, à noite fazia Juizado, e uma vez por semana colégio recursal. Então o juiz ficava extremamente sobrecarregado. Agora criamos os cargos do Juizado Especial, criamos cargo de auxiliar, mas, com todos os cargos criados, ainda assim é insuficiente pelo volume de trabalho que nós temos.

ConJur — Por quê?

Nelson Calandra — Porque o modo como se trabalha, o volume de papel que nós manuseamos e tudo isso faz com que o processo demore. Então o juiz trabalha no limite da suas forças. É um volume de trabalho desumano. Raro é o magistrado que, pela carga de trabalho que tem, não seja obrigado a trabalhar aos sábados e domingos. Você tem uma estatística para cumprir, você tem metas. Hoje um magistrado não pode dar menos de 120, 160 sentenças de mérito não repetitivas por mês. Em um tribunal nós andamos também mais ou menos com a mesma meta, com um diferencial, que nós temos ainda votos de revisão e votos de terceiro juiz. Portanto os nossos 120 são 120 vezes três, que você tem que estar lendo o que o outro vai decidir, ouvir, pedir vista, falar e votar.

ConJur — O senhor acha que precisaria de uma administração profissional no Tribunal?

Nelson Calandra — Eu conheço bem esse assunto, porque militei na União Internacional de Magistrados e conheci a experiência de diversos países. No meu ponto de vista, nós não podemos separar a alta administração da decisão. Eu me lembro que na Venezuela havia pena de morte e o presidente da Suprema Corte dizia assim: “Eu posso condenar o réu à morte, mas não posso comprar café para servir para você, porque eu tenho que pedir para o Conselho Superior da Magistratura que é quem administra as contas autorização para comprar um quilo de café”.

ConJur — Mas não é justamente por isso que deveria haver juízes para julgar e administradores para administrar o Tribunal?

Nelson Calan dra — A administração superior tem que ser exercida de fato pelo Tribunal, com o concurso de técnicos especializados. Administrar é mais uma parcela do poder. Tem muito juiz que diz que o juiz não sabe administrar. Mas quando ocupa a presidência do Tribunal, o juiz não pode se restringir exclusivamente à função de julgar. Senão ele dá margem para que se crie um poder paralelo onde aquilo que é preconcebido para ser um poder do Estado acaba subjugado por aqueles que vão exercer a administração. A administração é instrumento para o exercício do poder. As deliberações têm que partir daqueles que têm a incumbência de exercer o poder. Os que foram encarregados pelo Estado de exercer o poder não podem delegar deliberações em matéria de administração de forma plena para pessoas que não são magistrados.

ConJur — Em outras palavras, o senhor não abre mão do poder pleno do magistrado administrar.

Nelson Calandra — Pleno. Porque nós somos responsáveis. Se amanhã alguma coisa sair errado, o presidente do Tribunal é quem responde com a sua própria liberdade, com seu próprio nome. Então, na medida em que ele delega as coisas e vai espraiando essa delegação e deixa de exercer o controle político dessa atividade de administrar, ele acaba extremamente fragilizado e provoca fissuras em um poder de Estado que deve ser exercido com autonomia, com independência.

ConJur — O que é a Apamagis?

Nelson Calandra — A Associação Paulista de Magistrados é uma entidade que procurou ao longo dos anos se firmar como entidade de classe, sem descuidar da parte assistencial aos magistrados e aos seus familiares. Nós temos hoje 2.800 associados aproximadamente.

ConJur — Num universo de quantos magistrados do estado?

Nelson Calandra — De cerca de três mil, se contar ativos e inativos. Nós temos mais de duzentos magistrados fora da Apamagis. Na última gestão, batemos todos os recordes de adesão quanto aos juízes novos, mais de 90 % dos novos juízes ingressaram na entidade. Hoje a Apamagis tem um patrimônio de mais de R$ 40 milhões. Tudo isso foi construído ao longo dos anos, o que dá a ela lastro financeiro para as suas operações.

ConJur — Em termos institucionais o que incomoda hoje a magistratura?

Nelson Calandra — Uma coisa que incomodou, por exemplo, foi a tentativa de construção de um Código de Ética para juízes. Porque essa atividade tem que vir através do Estatuto da Magistratura pelo Supremo Tribunal Federal. Cabe ao Supremo Tribunal Federal, e não ao CNJ, dispor sobre o Estatuto da Magistratura. Há coisas que acabam vindo através de uma atividade do CNJ, que de algum modo, extravasa a sua competência constitucional e invade a competência do Supremo Tribunal Federal. Os magistrados às vezes se sentem incomodados com essa intervenção, porque, por qualquer banalidade as pessoas recorrem ao CNJ. A prova é que São Paulo é campeão de reclamações junto ao Conselho, porque se difundiu entre todos a cultura de que qualquer insatisfação com o Judiciário tem que ser revista pelo CNJ, quando este tem uma atividade de controle administrativo e não uma atividade jurisdicional.

ConJur — Ou seja, o CNJ estaria usurpando o papel da Corregedoria?

Nelson Calandra — De algum modo sim. O que deveria ir ao CNJ é aquilo que fica sem resposta ao nível de Corregedoria. Diante de qualquer situação banal, a pessoa vai ao CNJ e toca o juiz responder à Corregedoria para o CNJ. E nós já temos uma carga monstruosa de trabalho. Cada um de nós escreve por mês o equivalente a um livro de 700 páginas, na média. E além de tudo isso, ainda ter que prestar informações ao CNJ, à Corregedoria Geral de Justiça, muitas vezes a políticos, porque as pessoas também vão reclamar nas Assembléias, nas Câmaras Federais, para cá para lá. A gente também recebe ofícios pedindo esclarecimentos. Nós nunca deixamos de esclarecer. Mas à custa de uma sobrecarga imensa de trabalho. E gastando recursos que deveriam ser destinados a melhorar o próprio processo.

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