Ações orquestradas

Ações de fiéis da Universal revelam abuso do direito de petição

Autor

  • René Ariel Dotti

    é advogado professor titular de Direito Penal da Universidade Federal do Paraná conselheiro federal da OAB e vice-presidente da Associação Internacional de Direito Penal.

24 de fevereiro de 2008, 13h17

[Artigo publicado na seção Tendências/Debates do jornal Folha de S.Paulo deste domingo, 24 de fevereiro]

A multiplicação de ações indenizatórias contra a Folha de S.Paulo e a jornalista Elvira Lobato, propostas por fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus alegando suposto dano moral e tendo como causa uma única reportagem considerada ofensiva, revela aspectos que transcendem as rotineiras demandas forenses. A reportagem informa que, em 30 anos de existência, a igreja tornou-se detentora de um império na área de comunicação. Além de 23 emissoras de TV e 40 de rádio, a Folha aponta a existência de 32 empresas registradas em nome de membros da instituição, em sua maioria bispos.

Jornais diários, gráficas, agência de turismo, imobiliária, seguradora e táxi aéreo constituem a parte visível de um imenso patrimônio. Por trás dessa constelação de poder, está a figura do bispo Edir Macedo, com mais de 40 livros publicados e imensa fortuna pessoal. Uma espécie de reencarnação do magnata do jornalismo William Randolph Hearst, retratado no clássico filme de Orson Welles Cidadão Kane, interpretando o personagem Charles Foster Kane.

O primeiro aspecto peculiar dessa causa única da igreja com mais de 50 processos — como fogueiras da Inquisição acesas em múltiplos lugares — é o expediente ofensivo ao princípio do devido processo legal, ao restringir o exercício do contraditório e impedir a ampla defesa, que são garantias constitucionais. A obrigação imposta ao jornal e à jornalista de comparecerem fisicamente às mais distantes comarcas do país para responder às querelas revela um autêntico abuso do direito de petição, como salientou o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, em entrevista publicada na Folha. Comete ato ilícito o titular de um direito que “ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos costumes” (Código Civil, artigo 187).

Um dos exemplos da litigância de má-fé é caracterizado pelo uso do processo para conseguir objetivo ilegal. Como poderão os juízes assegurar às partes litigantes a “igualdade de tratamento” exigida pelo Código de Processo Civil (artigo 125, I), se uma delas ofende esse “equilíbrio de armas” ao repartir indevidamente o processo para conseguir um fim proibido por lei? Nesse caso, cabe ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, proferir sentença que obste tal objetivo (CPC, artigo 129). A necessidade de reunião de todos os processos, até mesmo para evitar decisões contraditórias, é o primeiro desafio a ser enfrentado pelo Poder Judiciário como guardião da Constituição e da lei.

O segundo é o de proteger o princípio da liberdade de informação — indissociável de um Estado democrático de Direito — quanto aos assuntos de interesse público. Possuem esta natureza os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens. Eles podem ser explorados pelo particular mediante concessão através de contrato administrativo, no qual se destaca a finalidade pública. A natureza dessa atividade não dispensa os controles formais e informais. Os recursos financeiros obtidos e aplicados por uma empresa que explora serviços de radiodifusão e com deveres inerentes à responsabilidade social podem e devem ser investigados pela imprensa. Trata-se de proporcionar o controle popular e democrático de um meio de comunicação social. O conflito entre a liberdade de informação jornalística e os direitos da personalidade (nome, intimidade, vida privada, honra e imagem) deve ser resolvido em favor da divulgação da matéria de interesse público.

Na célebre conferência “A imprensa e o dever da verdade”, editada em 1920, Ruy Barbosa (1849-1923) escreveu: “A imprensa é a vista da nação. Por ela é que a nação acompanha o que lhe passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem, devassa o que lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam ou roubam, percebe onde lhe alvejam ou nodoam, mede o que lhe cerceiam ou destroem, vela pelo que lhe interessa e se acautela do que a ameaça”.

E Thomas Jefferson (1743-1826), terceiro presidente dos Estados Unidos da América, declarou: “Se pudesse decidir se devemos ter um governo sem jornais ou jornais sem governo, eu não vacilaria em preferir a última alternativa”.

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