Solução de conflitos

Arbitragem não é um misto de contrato e jurisdição

Autores

  • Ana Tereza Palhares Basílio

    é advogada e sócia do escritório Basilio Advogados; presidente da Câmara de Mediação e Arbitragem e da Comissão de Sociedades de Advogados da OAB-RJ vice-presidente da Comissão de arbitragem da OAB-RJ e professora do curso de pós-graduação em arbitragem da Fundação Getúlio Vargas.

  • André R. C. Fontes

    é desembargador do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (RJ e ES).

22 de fevereiro de 2008, 0h01

Apresentam-se sob a forma de discussão polarizada as opiniões doutrinárias sobre a natureza jurídica da arbitragem. Entendem os estudiosos que seu enquadramento nas diversas classes de idéias que preponderam no Direito resumir-se-ia ao dualismo público-privado, ou mais especificamente às noções de jurisdição e contrato. A jurisdição seria, para muitos autores, o paradigma que melhor explicaria a natureza jurídica da arbitragem, especialmente porque ela, a arbitragem, seria um modo de resolução de conflitos, no qual incumbiria a um terceiro dar a palavra final. De outro lado, aqueles que se orientam pela noção de contrato exprimem-se de modo a retomar a clássica visão contratual como um meio de duas partes atenderem aos seus interesses, inicialmente contrapostos.

Essa distinção do que seria a arbitragem para o Direito não é, sabidamente, nova e infundada. Tampouco está associada aos efeitos que a jurisdição e o contrato oferecem aos seus defensores e aqueles que acreditam que estejam tratando da mais célere e flexível forma de se resolver conflitos nos tempos atuais. Ela remonta ao fenômeno que se convencionou chamar de divisão dicotômica do Direito: a vetusta problemática do direito, especialmente o denominado Direito Continental, ou “Civil Law”, que se contrapõe ao “Commom Law”, em vigor nos países anglo-saxônicos.

Essa visão dual ou dicotômica de que em Direito ou se está diante do que é público ou do que é privado é a mais afirmada (summa divisio), e também a mais questionada (scientia uma) pelos juristas, e consiste no principal alicerce da polêmica arbitral. E se há aporias sobre o que é classificado como público ou privado, igualmente se duvida do critério, ou talvez, critérios de distinção.

Um sem número de teorias finitas, mas incontáveis, são arroladas na maior dimensão que se pretende atribuir ao objeto da explicação. Uma teoria deve ser lembrada, entretanto: a que determina a divisão na presença do Estado, na qualidade de Estado, nas situações jurídicas em que se apresenta. É dessa maneira que se entende ser o Direito Processual uma disciplina de Direito Público. A presença do Estado como Estado-juiz atribui a esse ramo do conhecimento a marca pública. Por sua vez, os contratos em geral são vistos, normalmente, como uma expressão do Direito Privado, exatamente pela ausência do Estado. A figura do contrato administrativo não seria bom exemplo, primeiro pelas inúmeras controvérsias acerca de sua existência, e segundo pelo fato de que é por força de lei que o contrato administrativo é assim classificado e categorizado.

A divisão do Direito em duas partes (público e privado) continua a ser ensinada nos cursos jurídicos como uma premissa aos estudos fundamentais, e é, simultaneamente, a mais combatida, especialmente nos semestres seguintes da graduação.

De tudo o que se expôs, extrai-se que a coisa pública, desde os tempos de Roma antiga, com a figura da res publica, continua a merecer atenção singular dentre os assuntos preferidos dos doutores, seja para afirmá-la, seja para negá-la. Um distintivo específico da atualidade é a mistura ou identificação entre o que é público e privado. Algo que se assemelha aos movimentos socialistas, que tanto vigor teórico provocaram no século passado, notadamente sob a perspectiva do diferencial da titularidade: no socialismo pretendia-se a titularidade pelo Estado do que era público e privado; hoje, pretende-se a titularidade do particular para o que é público e particular. Não é sem razão, por exemplo, a polêmica sobre se o usuário de serviços públicos seria, também, consumidor, pois é a fronteira cinzenta do público e do privado que impede a exata visão dos limites da norma regulatória, no confronto com o Código de Defesa do Consumidor.

A arbitragem sofre os efeitos mais imediatos desse debate geral. É por isso que prospera o dissenso sobre a arbitragem ser jurisdição ou contrato, ou, em outras palavras, instituto de natureza pública ou privada.

O debate está longe de se circunscrever ao que é público ou privado. O argumento mais decisivo é o de que a arbitragem inicia-se por um negócio (ou contrato simplesmente para alguns) e é exercida e realizada com poderes que muito se assemelham aos da jurisdição. Dessa constatação se poderia suscitar, em uma primeira provocação, se o caráter negocial deve ser ignorado para se utilizar a tese da jurisdição; ou, talvez, desconsiderar a tese da jurisdição, em virtude do papel da vontade na arbitragem. É certo que nem a classificação de jurisdição, nem a de natureza contratual pura da arbitragem resolve, de forma imediata, as questões suscitadas. É que, a primeira vista, somos conduzidos a uma posição intermediária.

A Teoria Intermediária da arbitragem adota como elementos conceituais aspectos da Teoria da Jurisdição e da Teoria do Contrato, simultaneamente. Por associar elementos de duas outras teorias, nós a denominamos também de Teoria Mista, exatamente por tratar dessas posições intermediárias, que tantas dúvidas provocam. Essa concepção, que é conhecida ainda como Teoria Sincrética, a primeira vista, solucionaria o problema, pois em uma simples assertiva poderia se afirmar que a conjugação das teorias melhor exprimiria a natureza jurídica da arbitragem. Esse raciocínio é de cunho reducionista e não enfrenta o problema central da categorização, natureza e realidade da arbitragem.

Suscita-se, ademais, outra indagação: se a arbitragem não é uma categoria própria ou autônoma, e, sim, um contrato ou jurisdição, porque não se aplicam a ela os regimes desses institutos? A resposta é simples: porque o árbitro não é dotado de todos os poderes do juiz e porque a arbitragem não se subordina apenas à autonomia da vontade.

Demais disso, a arbitragem não se limita à aplicação do Direito, pois, sabidamente, pode se realizar por eqüidade, ou ainda pela praxe, como, por exemplo, as práticas comerciais. A sistemática da arbitragem pode obedecer às cláusulas convencionadas pelos litigantes em formas totalmente distintas do Direito em vigor. Então, nesse caso, a arbitragem não seria jurisdição, contrato ou os dois amalgamados. A arbitragem seria o que, então? A melhor resposta é uma só: arbitragem é arbitragem.

A teoria que melhor explica a arbitragem, por conseguinte, será aquela lastreada na afirmação de que arbitragem é arbitragem, e não jurisdição, ou contrato ou ainda um misto de jurisdição e contrato.

O significado do debate aqui desenvolvido é de pura natureza e não se limita a um mero enquadramento enciclopédico. Como qualquer tipo ou espécie de instituto conhecido, não se justifica retirar da arbitragem a pretensão de ser objeto de um tratamento autônomo, dela ser, ela mesma, um específico campo de estudo, sem muletas do Direito Processual ou do Direito Civil. A arbitragem não pode ser uma exceção à idéia de que também ela deveria passar pelo debate de ter uma explicação científica autônoma, de constituir objeto de um estudo próprio e específico, e não ser classificada como um saber científico ancilar, caudatário de um outro. Não se justifica que nenhuma especulação científica, divorciada das cartilhas dos estudiosos do Direito Processual e do Civil, possa existir.

As importantes contribuições do pensamento jurídico no terreno arbitral, longe de serem relegadas ao esquecimento, devem ser altamente valorizadas, porque conservam a riqueza e a vitalidade do interminável debate. Serão os contrastes entre arbitragem e jurisdição, assim como arbitragem e contrato, que nos permitirão concluir pela necessidade e importância de uma autonomia própria e científica da arbitragem e de seus estudos.

Pressuposto de qualquer análise deve ser a assertiva de que nenhuma contribuição dos estudos jurídicos no terreno da arbitragem nos brindou com uma explicação satisfatória do problema e que seja capaz de apreendê-lo com um caráter universal. A isso se agrega o fato de que, em grande medida, a natureza da arbitragem dependerá do sistema legal sob o qual se analisa a questão.

A principal crítica à Teoria Jurisdicional é a falta de imperium no poder dos árbitros. A impossibilidade de exercer a coerção sobre os particulares, para obter o cumprimento forçado de um determinado pronunciamento do árbitro, robustece a concepção de que não se exerce uma verdadeira jurisdição, porquanto essa última leva implícita a força coercitiva emanada do Estado-juiz.

De outra parte, se a concepção segundo a qual a noção de jurisdição compreende a atividade de julgar e de impor condutas — a cognição e a execução — aos árbitros faltaria a segunda e alguns outros poderes da primeira. Sem esse poder coercitivo, o chamado elemento coertio, que integra a jurisdição, a arbitragem nunca poderia revestir natureza jurisdicional. O árbitro não tem poder de coerção, seja sobre as partes, seja sobre terceiro. Falta-lhe também um característico marcante, que é o elemento executio, que dá ao juiz o poder de tornar concreta a solução encontrada pela sentença (o elemento juditium). A jurisdição não se limita aos elementos notio, vocatio e juditium, e se todas as suas propriedades não alcançam a arbitragem, é de se considerar que de outro instituto se trata.

O árbitro é, acima de tudo, um agente das partes, a quem elas autorizam emitir um pronunciamento que solucione a disputa pendente. Nem se diga que não seria só a vontade das partes que atribui jurisdição aos árbitros, pois é o Estado que proporcionaria tais condições. O Estado possibilita, justamente, por meio da jurisdição, que a arbitragem tenha proteção e exeqüibilidade. A analogia com o trabalho do juiz de formar comandos para a solução de conflitos está longe de ser critério definidor, porque, também a Administração Pública lança mão de comandos resultantes de julgados, na órbita das suas atividades e nas relações com os jurisdicionados, e nem por isso se atribui a tal atividade administrativa o caráter de jurisdicional.

Por outro lado, a vontade determinante dos sujeitos do litígio na formação da arbitragem não lhe atribui caráter negocial ou contratual, porque as partes assumem também o compromisso de se submeter ao laudo arbitral, que é uma característica mais próxima de um poder de julgar, do que simplesmente dar cumprimento a um contrato.

A celeuma é antiga e não passou despercebida dos antigos romanos. No texto Pro Roscio, Marco Túlio Cícero destacava que o árbitro (arbiter) atuava com maior extensão e ampla liberdade e suas funções se diferenciavam das do juiz (judex). Dizia, em passagens do texto com a perspectiva da época, que o juízo era de dinheiro certo ou versando a lide sobre uma soma fixa, enquanto a arbitragem dizia respeito à questão de soma não determinada. Segundo o autor, se recorria ao judex para ganhar ou perder tudo; já ao árbitro, a despeito de querer ganhar tudo, ao menos para perder somente pouco, pois a fórmula do juízo seria direta, rude e simples, ao passo que a do árbitro, moderada e suave. E acrescenta que para uma causa havia apenas um só juiz, mas na arbitragem vários são os árbitros. Na arbitragem, segundo Cícero, concede-se o que for melhor e mais eqüitativo; nela o demandante confessa que exige mais do que lhe é devido, mas que lhe basta e sobra o que concede o árbitro.

Vista como um tema processual, a arbitragem continuará a ser analisada em alguns de seus aspectos. De igual modo, o mesmo resultado será obtido pelo estudo da arbitragem, pautado pela visão contratual. A dupla perspectiva processual e contratual não afasta a persistência de que o enfoque deve ser ampliado, de forma global, como um todo. A sua consistência privada complexa, de conteúdo aparentemente público, não pode ser fragmentada, segundo a origem dos seus estudos. Só se poderá alcançar o objetivo de conhecer a arbitragem a partir da própria arbitragem. Um estudo no qual a arbitragem seja tomada dos ângulos mais variados que uma análise convencionalmente depurada da sua gênese e livre das proposições tradicionais estará fadado a atentar contra a sua natureza e realidade.

Nestas breves considerações, um assunto de tanta relevância foi aludido de maneira geral e abrangente. O conteúdo do texto está muito longe de corresponder ao conjunto de perspectivas múltiplas e das questões suscitadas em torno da arbitragem. A natureza jurídica da arbitragem é tema clássico e capital no destino que se quer dar a esse dinâmico instrumento de solução de litígios. Marcada por novas e apaixonadas reflexões, a delimitação da natureza jurídica da arbitragem sempre será medular na elaboração teórica desse instituto, que está, sem dúvida, em permanente construção.

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    é advogada e sócia do escritório Andrade & Fichtner Advogados; presidente da Câmara de Mediação e Arbitragem e da Comissão de Sociedades de Advogados da OAB-RJ, vice-presidente da Comissão de arbitragem da OAB-RJ, e professora do curso de pós-graduação em arbitragem da Fundação Getúlio Vargas.

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    é desembargador do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (RJ e ES).

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