Ataque do Leão

Entrevista: Maria Leonor Leite Viera, diretora do Ibet

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17 de fevereiro de 2008, 0h01

Maria Leonor - por SpaccaSpacca" data-GUID="maria_leonor.jpeg">O Fisco vê no planejamento tributário uma forma de sonegação fiscal. A opinião é da advogada tributarista Maria Leonor Leite Vieira, que atua na área há mais de 20 anos. A presunção de culpa que parte da Receita Federal quando olha para o contribuinte pode explicar, por exemplo, a ânsia de bisbilhotar as contas bancária. Maria Leonor reforça que essa vigilância não é constitucional. “Não há lei que preveja e nem poderia, pois a proteção das contas é constitucional”. No entanto, ela afirma: “na prática, acontece”.

É por isso que a advogada defende a criação de uma associação para proteger contribuintes das garras do leão. Ela aponta como exemplo da falta que faz esse grupo organizado as ilegalidades cometidas com a CPMF. A contribuição foi criada para arrecadar dinheiro para a saúde, e não para caçar possíveis sonegadores. Mas foi isso que aconteceu, e ninguém fez nada, reconhece Maria Leonor. Hoje, sem a CPMF, a Receita tenta, a todo custo, manter esse poder de fiscalização.

Maria Leonor se formou em Direito pela PUC em 1978. Desde o início, trabalhou com Direito Tributário. Hoje, é diretora do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), que promove cursos e palestras Brasil afora. Durante 20 anos, fez parte do Conselho de Contribuintes. Defende o processo administrativo, mas reconhece que hoje a tendência é favorecer mais o fisco.

A advogada falou sobre o assunto para a Consultor Jurídico. Transação tributária, execução administrativa e segurança jurídica também foram outros temas que rechearam a entrevista, da qual participaram também os jornalistas Lilian Matsuura e Rodrigo Haidar.

Leia a entrevista

ConJur — A transferência de dados de contas bancárias para a Receita Federal sem a autorização do Judiciário é constitucional?

Maria Leonor Leite Vieira — Ela ofende o direito ao sigilo bancário, que está previsto na Constituição Federal. Não há lei que preveja essa fiscalização das contas, e nem poderia ter, pois a proteção dos dados é constitucionalmente protegida. Mas essa vigilância, na prática, acontece. Temos o caso do caseiro Francenildo, lembram? [Servidores do governo violaram o sigilo bancário do caseiro. O caso culminou com a queda de Antônio Palocci do Ministério da Fazenda, em março de 2006]. Por isso, o contribuinte precisa ficar atento.

ConJur — As recentes instruções normativas da Receita que determinam que os bancos repassem ao Fisco os dados de clientes formalizam essa vigilância.

Maria Leonor Leite Vieira — A Constituição Federal determina, no inciso II do artigo 5º, que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer nada senão em virtude de lei. E o conceito de lei abrange a própria Constituição leis ordinárias e complementares, medidas provisórias, algumas resoluções do Senado e alguns decretos legislativos sobre tratados internacionais. Uma instrução normativa de um órgão só pode estabelecer regras para cumprir a lei. Por exemplo, para dizer que o formulário a ser preenchido tem que ser rosa ou amarelo. Não pode inovar na ordem jurídica, como fazem as instruções da Receita. Em matéria tributária, a Constituição é ainda mais rígida e inflexível.

ConJur — A CPMF não foi criada também com o objetivo de fiscalização?

Maria Leonor Leite Vieira — Ela foi criada para arrecadar para a saúde. Seu objetivo nunca foi fiscalizar. Hoje, a CPMF acabou, mas o Fisco não quer abrir mão do cadastro que desfrutava com a cobrança da contribuição.

ConJur — Ou seja, o Fisco cometeu ilegalidade toda vez que usou a CPMF para fiscalização. É isso?

Maria Leonor Leite Vieira — Quebrar sigilo, realmente, o Fisco não pode. A CPMF também estava servindo para isso. E não pode. A impressão é a de que o Fisco faz isso porque ninguém reclama, ninguém consulta um advogado e vai levar a questão para o Judiciário. Por isso eu defendo a criação de uma associação de defesa do contribuinte. É preciso que o contribuinte tenha um representante forte. E agora o Fisco também quer transformar a execução fiscal em administrativa.

ConJur — E isso é legal?

Maria Leonor Leite Vieira — O credor não pode ir até a sua casa e retirar a geladeira para pagar a sua dívida. Ele precisa recorrer ao Judiciário para iniciar o processo de execução. A Fazenda Pública também precisa seguir os mesmos caminhos. Ela é a credora e o contribuinte é o devedor. A idéia da Fazenda, que está em um anteprojeto de lei, é que ela mesma possa fazer a execução. Ou seja, ela decide quanto o contribuinte deve pagar, cobra e executa a dívida, sem a mediação judicial. Ela própria vai até a sua casa e retira a geladeira para pagar o tributo. Isso é Estado policialesco. A minha impressão é de que a gente esqueceu aquilo que aprendeu na primeira série do colégio: o Estado tem três Poderes e um não pode invadir a esfera de competência do outro.

ConJur — O que diz esse anteprojeto?

Maria Leonor Leite Vieira — Permite que a Fazenda lavre o autor de infração, aplique a multa e, se o contribuinte não pagar, a própria Fazenda pode penhorar algum bem do contribuinte.

ConJur — A senhora já se manifestou contra a penhora online. Por quê?

Maria Leonor Leite Vieira — Vou contar um caso que presenciei recentemente. A pessoa foi sócia de uma empresa há 25 anos. Agora, depois de todos estes anos afastada e sem saber o que estava acontecendo, sua conta bancária foi bloqueada. Para desbloquear, é preciso recorrer ao Poder Judiciário, que vai querer saber da Receita por que aconteceu o erro. Enquanto isso, a conta permanece bloqueada. Por isso eu sou contra. A penhora online tem problemas sérios. A lei diz também que a penhora deve recair excepcionalmente sobre o dinheiro. Com a penhora online, essa exceção virou regra. Mas eu ainda defendo o Poder Judiciário porque sei que está abarrotado. São poucos juízes para muito contribuintes.

ConJur — Mas execução fiscal na esfera administrativa não seria uma forma de desentupir o Judiciário?

Maria Leonor Leite Vieira — É uma forma de desentupir o Judiciário de processos e de entupir o contribuinte de desespero. O que é preciso é preparar o Judiciário para que ele possa dar conta da demanda. Não dá para a Justiça continuar com o mesmo tamanho que tinha há anos. A população cresceu muito. A execução administrativa é uma forma de exigir que o contribuinte pague sem reclamar. Senão, ele acaba sendo prejudicado. É o que acontece com as empresas que precisam da Certidão Negativa de Débito para participar de licitação. A Receita diz que elas devem tal tributo. Até elas contestarem no Judiciário a dívida, já perderam a licitação.

ConJur — Contestar o débito na Receita também demora?

Maria Leonor Leite Vieira — Sim. É o chamado envelopamento. O contribuinte põe sua defesa em um envelope, que vai ficar parado na Receita por anos. Por isso, é preciso ir à Justiça para mandar a Receita analisar a defesa. Mesmo assim, demora. Em São Paulo, a Fazenda está atrasada em cinco meses, mais ou menos, para obedecer às ordens judiciais.

ConJur — É a burocracia que atrasa a análise dos envelopes de defesa do contribuinte apresentados na Receita?

Maria Leonor Leite Vieira — Em parte, sim. Mas, além disso, há outro problema. A Constituição Federal diz que a administração pública deve ser célere e eficiente. A Fazenda Pública é célere e eficiente para cobrar, mas não para prestar serviços ao contribuinte. Hoje, o contribuinte é acompanhado online. Ele não paga um tributo e, no dia seguinte, já tem algum fiscal para cobrar.

ConJur — Para que serve o Conselho de Contribuintes?

Maria Leonor Leite Vieira — O contribuinte tem o direito constitucional do contencioso administrativo. Ou seja, direito de discutir administrativamente o que está sendo cobrado dele, antes de ir para o Judiciário. Discutir com a administração pública é como discutir direto com o credor. O Conselho de Contribuintes foi criado para ser a segunda instância. É formado por metade de fiscais, representando o Fisco, e metade de advogados, economistas ou administradores que entendam de tributos, representando o contribuinte. Sou defensora da discussão na esfera administrativa porque ela não tem custo para o contribuinte: ele não precisa de advogado e nem paga custas judiciais e honorários de sucumbência.

ConJur — A discussão administrativa não corre o risco de se tornar mais um ferramenta protelatória? Tudo não acaba parando na Justiça depois?

Maria Leonor Leite Vieira — Não. Submeter o processo ao Conselho de Contribuintes não é apenas uma maneira de protelar. Se o resultado final for favorável ao contribuinte, o Fisco não pode ir à Justiça. Encerra a discussão aí. Se for contrário, o contribuinte pode questionar no Judiciário ou o Fisco iniciar uma execução fiscal, também na Justiça.

ConJur — Há, de fato, imparcialidade nas decisões do Conselho de Contribuintes?

Maria Leonor Leite Vieira — Eu fui juíza do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo, como representante da classe dos contribuintes, durante 20 anos. E fui do Conselho de Contribuintes Federal, que julga os tributos federais. O que eu sempre vi é que 50% dos casos são resolvidos a favor do contribuinte e 50%, contra. Hoje, o que eu tenho visto é uma tendência de decisões mais a favor do Fisco. Não sei explicar esse movimento. Não é político, mas há mais pessoas a favor do Fisco.

ConJur — O número de execuções fiscais é absurdo. É o contribuinte que sonega demais ou o Fisco que vê qualquer movimento como burla à lei?

Maria Leonor — Todo mundo faz planejamento tributário. Mas, para o Fisco, essa expressão é sinônimo de atitude ilícita. E não é. É só uma forma de pagar menos tributos dentro do que diz a lei. Tem de saber a diferença entre elisão fiscal, que é o chamado planejamento tributário lícito, e a evasão fiscal. Esta sim é burlar a lei.

ConJur — As empresas fazem planejamento tributário de olho nos tribunais?

Maria Leonor Leite Vieira — Muitas vezes não é de olho nos tribunais, mas com o objetivo de não ofender a lei para não ser autuado. Os contribuintes tentam, por exemplo, instalar sua empresa onde o ISS é mais barato. Isso é fazer planejamento tributário, não sonegar.

ConJur — Há segurança jurídica no Brasil em matéria tributária?

Maria Leonor Leite Vieira — A insegurança jurídica assusta. Há alguns casos que havia jurisprudência maciça e, agora, década depois, os tribunais estão mudando seu entendimento. Essa mudança é natural, mas é preciso ter segurança nas decisões judiciais. Daí a importância da modulação dos efeitos das decisões.

ConJur — Um dos conflitos tributários que agita a comunidade jurídica é a discussão sobre a isenção da Cofins para sociedades de profissões regulamentadas. Lei ordinária pode revogar lei complementar?

Maria Leonor Leite Vieira — Eu concordo perfeitamente com o ministro Marco Aurélio [ele defende que não importa o conteúdo da lei; se ela foi aprovada como lei complementar, não pode ser revogada por lei ordinária]. Se o Congresso Nacional quis aprovar a matéria como lei complementar, com o quorum específico [maioria absoluta dos parlamentares], deve ter tido um motivo para isso. Não cabe analisar a vontade jurídica do legislador, mas sim o que ele fez. Se foi aprovada como lei complementar, não pode ser mudada por lei ordinária. A Constituição diz, no artigo 153, que o IOF [Imposto sobre Operações Financeiras] terá alíquota mínima de 1%, mas a fixação de alíquotas é matéria de lei ordinária. Permitir que lei ordinária altere lei complementar é o mesmo que permitir que lei ordinária mude a alíquota de IOF na Constituição.

ConJur — A senhora acha que a transação tributária é uma boa idéia?

Maria Leonor Leite Vieira — A transação é uma negociação das partes. Há previsão para ela no Código Tributário Nacional, mas não há lei que trate do assunto. E não há porque o crédito tributário, como bem público, é indisponível. Uma vez que o crédito tributário nasce, o contribuinte tem que pagar e não há como se livrar disso. Existe um anteprojeto de lei que diz que a transação tributária tem de obedecer a princípios como confidencialidade, cooperação e transparência, entre outros. Não dá para conciliá-los. Esse anteprojeto não vai ser aprovado.

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