Insegurança jurídica

Juízes não estão sempre em condições de remediar

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17 de fevereiro de 2008, 0h01

Tem-se falado muito no Brasil sobre a segurança jurídica. Como exemplos de situações em que o uso dessa expressão assoma as manchetes de jornais e títulos de trabalhos, lembramos casos em que alguns princípios constitucionais foram subjetivamente abalados, ou em que o Poder, controlando o executivo como jamais se fizera antes neste país, institui uma Medida Provisória que vem a ser transformada em Lei.

Um outro exemplo ocorre quando o Poder, sem que para isso fosse necessário um instrumento jurídico de hierarquia superior, faz aprovar uma Lei Complementar para matéria que poderia ter sido regulada em Lei Ordinária e, posteriormente, suscita o Poder conflitos de interpretações, levando o Judiciário a se manifestar, nas jurisdições inferiores e nas superiores, também, de acordo com o perfil psico-social do magistrado ou do ministro a quem for submetida a questão.

Também devo me referir à hipótese em que o Poder fez aprovar diploma legal instituindo norma interpretativa com efeitos retroativos, ferindo, assim, princípio fundamental inscrito na Constituição. Ou, ainda, sem observância do devido processo legal, magistrados deferem a invasão de escritórios de consultores e de advogados, sempre sob o argumento de que tais cidadãos são solidários com eventuais infrações que entendem praticadas por um contribuinte.

Vamos procurar campos neutros para a abordagem da segurança jurídica. Se tomarmos o Diccionario Espasa Jurídico, da Editora Espasa, na sua 9ª Edição, em edição promovida pela Fundação Tomás Moro, temos que por seguridad jurídica se há de entender a “Cualida del ordenamiento que produce certeza y confianza em el ciudadano sobre lo que es Derecho en cada momento y sobre lo que, previsiblemente lo será en el futuro (Sainz Moreno). E, adiante, complementando, “La seguridad jurídica establece ese clima cívico de confianza en el orden jurídico, fundada en pautas razonables de previsibilidad, que es presupuesto y función de los Estados de Derecho (Perez Luño).”.

Na Constituição Espanhola, encontramos a segurança jurídica no inciso 9.3, do Artigo 9, que vem lavrado nos seguintes termos, conforme edição de As Constituições dos Estados da União Européia, de Jorge Bacelar Gouveia, edição Vislis Editores, Lisboa, do ano de 2000: “A Constituição garante o princípio da legalidade, a hierarquia normativa, a publicidade das normas, a não retroactividade das disposições penais que não favoreçam ou que restrinjam os direitos individuais, a segurança jurídica, a responsabilidade e a proibição da arbitrariedade dos poderes públicos.”.

Em nosso contexto jurídico, é interessante que a Constituição não aborde — ainda que se considere o seu casuísmo! — a segurança jurídica. A doutrina não abordava a segurança jurídica como em outros contextos jurídicos, de forma entusiástica e incisiva. As idéias existiam, mas a abordagem da segurança, por exemplo, em Geraldo Ataliba, in República e Constituição, Editora Revista dos Tribunais, 1985, no Capítulo VII, era a da Segurança do Direito, embora a estrutura da justificação de tal segurança fosse bem semelhante ao que indicamos acima para a segurança jurídica, in verbis:

“Na administração, o dever e a finalidade são predominantes, no domínio, à vontade. A administração é a atividade do que não é senhor absoluto”. E, adiante, explica que a relação de administração somente se nos depara, no plano das relações jurídicas, quando a finalidade a que a atividade de administração se propõe, nos aparece defendida e protegida, pela ordem jurídica, contra o próprio agente e contra terceiros.”

Um pouco mais além, coroa esta parte de seus ensinamentos, lecionando que “o fim e não a vontade domina todas as formas de administração, ou administração é a atividade de quem não é senhor absoluto”.

Adiante, e para que se entenda o contexto da segurança jurídica no Brasil, farei uma transcrição longa, mas necessária, que bem explica o complexo contexto da segurança jurídica brasileira. É que esse tipo de meditação nos mostrará que o legislador infraconstitucional, no Brasil, não dispõe da mesma esfera de liberdade, de que desfruta nos Estados Unidos, Itália, França, Alemanha — para mencionar países que têm proximidade cultural conosco e influência sobre nós.

Daí o escasso proveito que se pode extrair da doutrina alienígena, elaborada à vista de um direito constitucional sintético e ático, ao contrário do nosso, amplo, extenso, abrangente e minucioso (que se não circunscreve a colocar certos princípios básicos, mas os desdobra em sub-princípios e a esses, em regras, contendo inúmeras vezes preceitos minuciosos). Esse é o contexto no qual se há de entender as condições que estabelecem o clima que permite falar-se em segurança jurídica.

Geraldo Ataliba abrda, a seguir, os vetores deste sistema de segurança jurídica. E o faz arrolando a “Previsibilidade estatal” e a “Interpretação do direito positivo e certeza do direito”. Nas abordagens sobre os dois vetores mencionados, assinala para a “Previsibilidade estatal” que os sistemas constitucionais dos países a que se referiu não abrigam as improvisações, já que prevêem um esquema que “postula absoluta e completa previsibilidade da ação estatal, pelos cidadãos e administrados. É que o legislador atua representando o povo e expressando seus desígnios. Seu trabalho é necessariamente público e desenvolvido em clima de amplo debate”.

Já no que respeita à “Interpretação do direito positivo e certeza do direito” observa que “Se, como visto, o dono da res publica é o povo, todas as disposições a respeito de sua (coisa pública) preservação, desenvolvimento e aplicação a ele (povo) pertencem. Só o dono pode dispor sobre o destino da coisa; só ele pode dizer como, quando e em que finalidades ela pode ser aplicada.” A seguir, lembra que Povo (e não o Governo!) “deve ser entendido como o conjunto dos cidadãos, na acepção jurídica do termo.”.

Adiante, volta ao conceito da segurança jurídica (devendo ser lembrado, no entanto, que o título do Capítulo que trata desse assunto é precisamente “segurança do direito”).

E o faz nos seguintes termos: “A rigorosa inteligência do conteúdo, no contexto do nosso Direito Constitucional, exige que se entenda serem todos eles informados — e, portanto, tendo a sua interpretação rigorosa e diretamente dele dependente—pelo princípio da segurança jurídica, compreendido no parágrafo 36 desse mesmo artigo 153 (Constituição anterior a de 1988 cujo texto dispunha que “A especificação dos direitos e garantias expressos nesta Constituição não exclui outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios que ela adota”) e informador essencial de todos os demais direitos.

Efetivamente, seja os direitos que defluem diretamente do Texto Constitucional, seja os que a lei reconhece aos cidadãos, pouca eficácia terão, sem a informação essencial da segurança jurídica”.

Cremos que a atualidade dessas lições segue sem mácula, já que até mesmo o sistema constitucional não só foi mantido, como eu diria que teve até uma ampliação do rol dos princípios e regras. Além disso, o parágrafo 2º, do artigo 5º, da Constituição, também dispõe que: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”

E este texto inova e otimiza os direitos dos Cidadãos, na medida em que a expressão “tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” amplia a base de direitos de que pode o Cidadão se socorrer. A questão, portanto, será obtermos do Judiciário, desde que o Poder pretenda omitir-se, a garantia de que esses princípios inscritos nos “tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte ganhem o seu reconhecimento. Ora, se tomarmos, pois, o inciso II, do mesmo art. 5º da Constituição, teremos que, se “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;”, a segurança jurídica se constitui em um dos princípios que o Cidadão brasileiro tem o direito de exigir dos seus Governos.

O professor Celso Ribeiro Bastos, in Comentários à Constituição do Brasil, Editora Saraiva, 2º Volume, 1989, nos ensina que o preceito desse parágrafo 2º, do art. 5º da Constituição tem sido adotado no Brasil desde a Constituição de 1891. Como se pode ler, o que esse texto tem de vantajoso é sua dinâmica, já que os fatos sócio-econômicos que afetam a sociedade permitem ao Cidadão, com tal preceito, reivindicar direitos que, de outra forma, não lhe permitiriam demandar senão quando o Brasil tivesse um tratado incorporado à ordem jurídica interna, conforme exige a maioria da doutrina: “A doutrina dominante exigia a intermediação de um ato de força legislativa para tornar obrigatório à ordem interna um tratado internacional.”

O que temos hoje, e é mister que se torne uma alavanca de exercício da cidadania, é que a redação da última Constituição permite ao cidadão reivindicar, como vimos, direitos ou princípios que se inscrevam em quaisquer “tratados internacionais, em que a República Federativa do Brasil seja parte.”

Celso Bastos, somando-se a Manoel Gonçalves Ferreira Filho (Comentários à Constituição brasileira, 3ª Edição, São Paulo, Saraiva, 1983, p. 632, que transcreve em seus comentários a que acima nos referimos), nos ensina, pois, que “O dispositivo em exame significa simplesmente que a Constituição brasileira ao enumerar os direitos fundamentais não pretende ser exaustiva. Por isso, além desses direitos explicitamente reconhecidos, admite existirem outros, decorrentes dos regimes e dos princípios que ela adota, os quais implicitamente reconhece.”

Esta questão da segurança jurídica voltou-me ao espírito, como expliquei, por vários fatos ocorridos, mas, em especial, em razão de duas situações jurídicas, ambas originárias da França.

Na primeira, houve a divulgação, pela entidade La Documentation Française de um dossiê com um Relatório do Conselho de Estado (Le Conseil d’Etat est la plus haute juridiction administrative en France —o Conselho de Estado é a mais alta jurisdição administrativa da França), relativo ao ano de 2006.

É que o referido Conselho de Estado, em Relatório de 1991, afirmara que “Quand le droit bavarde, le citoyen ne lui prête plus qu´une oreille distraite” (Quando o Direito dispõe futilmente, o cidadão não lhe dá atenção!) . E mais: “Prolifération des textes, instabilité des règles, dégradation de la norme: en affectant la sécurité juridique, ces derives menacent l´Etat de droit. (Proliferação de textos, instabilidade de regras, degradação da norma: afetando-se a segurança jurídica, essas derivas ameaçam o Estado de Direito)”.

Anotemos, por favor, os tópicos que o Conselho de Estado francês identificou como ameaçadores ao Estado de Direito: i) “prolifération des textes” (proliferação de textos); ii) “l´instabilité des règles” (instabilidade das normas, das regras); iii) “la degradation de la norme”(a degradação da norma jurídica).

Nos comentários do redator da La Documentation Française, que se inspirou no referido Relatório do Conselho de Estado, se pode ler uma afirmação que corresponde, portanto, lá como aqui, às realidades cotidianas. Diz ele sobre a complexidade do mundo em que vivemos e da conseqüência da forma como as normas acabam por ser elaboradas: “De cette situation, le législateur est la première victime. Ses marges de liberté pour décider des sujets qu´il convient de traiter se révèlent de plus en plus restreintes. Et Il vient a ne plus exercer sa mission dans les conditions lui permettant d´élaborer des textes de qualité. Cela conduit en outre à dépossession”

(Nesta situação, o legislador é a primeira vítima. Suas margens de liberdade para decidir sobre os objetos de que deve tratar se revelam cada vez mais reduzidas. E ele acaba por não mais exercer sua missão nas condições que lhe permitiriam elaborar textos de qualidade. Isto conduz, além do mais, à desqualificação política). E, ainda, acrescenta: “Mais c´est surtout la société qu´en pâtit. Le droit, au lieu d´être un facteur de sécurité, devient un facteur d´inquiétude et d´incertitude. La démarche de simplification court après ses objectifs. Le juges ne sont eux-mêmes pas toujours en état d´y remédier, et sont parfois conduits à prendre leur part de l´aggravation de la complexité.”

Mas, é sobretudo a sociedade que sofre. O Direito, ao invés de ser um vetor de segurança, se torna um fator de inquietude e de incerteza. A medida de simplificação corre atrás dos seus objetivos. Os juízes não estão sempre em condições de remediar e são, por vezes, conduzidos a tomar parte na agravação da complexidade.

Assim, prosseguindo com os comentários e conclusões constantes do Relatório do Conselho de Estado francês, destaca dois aspectos que considera fundamentais, para a existência da segurança jurídica, a saber: 1) a qualidade da lei. Neste ponto, aborda um aspecto que diríamos constructológico da lei, preconizando que ela “doit être normative, c´est-à-dire prescrire, interdire, sanctionner”(a Lei deve ser normativa, quer dizer prescrever, proibir, sancionar).

A seguir, nos conduz a outra abordagem, sobre a qual teríamos muito a discorrer, especialmente em nossos dias, já que tanto o Executivo como o Legislativo não se preocupam com ela. Refiro-me ao fato de que o Poder parece buscar no obscurecimento da norma o objetivo de moldá-la a seu interesse governamental, nunca, jamais Republicano. Este ângulo no Relatório é assim sintetizado:

“a loi non normative affaiblit la loi nécessaire en créant un doute sur l´effet réel de sés dispositions.” (a lei não normativa enfraquece a lei necessária, criando uma dúvida sobre o efeito real de suas disposições.).

Mas os Conselheiros do Conselho de Estado estavam inspirados e acrescentam: “L´intelligibilité implique la lisibilité autant que la clarté et la précision des énoncés ainsi que leur cohérence”

(A inteligibilidade da norma implica a sua percepção tanto quanto a compreensão e precisão dos seus enunciados bem como a sua coerência,);

2) a previsibilidade da lei. O preceito, explica o Conselho de Estado francês, implica em que “le príncipe de sécurité juridique suppose que le droit soit prévisible et que les situations juridiques restent relativement stables.”(o princípio da segurança jurídica supõe que o direito seja previsível e que as situações jurídicas permaneçam relativamente estáveis – grifos nossos).

Esse aspecto que abordamos por último, em matéria de Direito Financeiro brasileiro, é excepcionalmente relegado pelo Poder, que emite, edita e inflaciona com normas legais, regulamentares e, simplesmente, operacionais os cidadãos brasileiros, gerando um contingente ininteligível e dispersivo de normas que, por vezes, ferem princípios constitucionais ou legais e, em outras ocasiões ignoram, simplesmente, a existência de um sistema jurídico no País. Recentemente, após a vigência do tributo conhecido como CPMF, o Governo, e não a República — porque os Cidadãos continuam a se opor a tais improvisações—, instituiu, por norma operacional, portanto oriunda das instâncias inferiores da Administração Pública, norma jurídica (ex-vi do artigo 100, do Código Tributário Nacional) que simplesmente ignorou princípio constitucional inscrito no artigo 5º, inciso XII, da Constituição, também fazendo “oreille distraite” (atuando com desatenção) ao instituir norma que busca quebrar o sigilo bancário.

Kiyoshi Harada, em artigo que fez publicar no site ,i>Jus Navigandi (consultar por 1647, em 04/01/2008), discorre sobre este vetor de insegurança jurídica, afirmando e informando: “A jurisprudência da Corte Suprema, conciliando o interesse público com o interesse privado, entendeu que a garantia do sigilo de dados constitui matéria que resolve-se com observância de normas infraconstitucionais, com respeito ao princípio da razoabilidade e que estabeleceriam o procedimento ou o devido processo legal para a quebra do sigilo bancário (RE 219.970, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 10-9-99, p.33)”

Neste ponto, estamos abordando a segunda situação jurídica que nos precipitou a escrever estas reflexões.É verdade que tal comportamento do Poder atuante uma vez mais investe contra os princípios inscritos no art. 37 da Constituição.

Parece-nos indiscutível que, assim agindo, ignora, menospreza e ofende os princípios da moralidade, da legalidade e da eficiência, na medida em que a Administração Pública também tem que, no exercício da gestão da coisa pública, empregar o princípio da proporcionalidade, sem o que gerará questões e problemas, esses também geradores de ineficiências e custos adicionais com a manutenção de demandas judiciais e, sempre, geradores de insegurança jurídica.

Mas, a nosso ver mais importante, é que tais atitudes são geradoras de ilícito penal. Efetivamente, o nosso Código Penal capitula no artigo 1º, que é referente à Anterioridade da Lei, que “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”. Ora, devemos considerar, para uma qualificação penal de um fato, a existência de tipificação, isto é, de relação direta entre a descrição legal e o ato cometido por determinado Agente. Este tratamento deflui do disposto no Código Penal, art.13, in verbis: “Art. 13 – O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.”.

Portanto, no exercício da Cidadania, se um Cidadão dá causa a uma sanção, seja ela penal, seja ela administrativa, devemos analisar se a tipificação que lhe foi encontrada se ajusta no due process of Law (no devido processo legal), legítimo, ou decorre de uma distorção da aplicação da norma legal ou constitucional pelo Agente Público. Daí, chegamos à violação do sigilo, tipicamente um vetor de insegurança jurídica, quando ignora o devido processo legal. Vem ela –a infração- capitulada no art. 153, e tem a seguinte estrutura legal:

Divulgação de segredo

Art. 153 – Divulgar alguém, sem justa causa, conteúdo de documento particular ou de correspondência confidencial, de que é destinatário ou detentor, e cuja divulgação possa produzir dano a outrem:

Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.

§ 1º Somente se procede mediante representação

§ 1o-A. Divulgar, sem justa causa, informações sigilosas ou reservadas, assim definidas em lei, contidas ou não nos sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Ora, a Autoridade Pública não pode desconhecer que a Constituição, em seu art. 5º, inciso II, c/c os incisos X e XII, remete a quebra do princípio da inviolabilidade e do sigilo à forma legal.

Em outras palavras, a quebra dos princípios poderá existir, se o devido processo legal (due processo of Law) for observado, ainda que possa ocorrer como material probante, no correr de um processo, por exemplo, criminal.

Há, portanto, um devido processo legal, para que a Autoridade possa agir. Se a Autoridade não age em conformidade com a Lei, eis que infringe disposição legal clara e insofismável, redigida ao tempo em que as normas observavam, em sua elaboração, todos os ingredientes redacionais a que nos referimos anteriormente. Em caso, pois, em que haja a Autoridade de forma diversa daquela preconizada constitucionalmente, temos a tipificação do excesso de exação.

Ocorre esse excesso de exação porque o Administrador Público, estando submetido à observância de uma norma Constitucional, tanto quanto estaria à norma legal ou administrativa, gera, usando a autoridade de que está investido, o chamado ato arbitrário, que se distingue do ato discricionário.

O ato discricionário é o que tem conformidade com a lei, embora seja um ato subjetivo (Hely Lopes Meirelles, in Direito Administrativo Brasileiro, 18ª. Edição de Malheiros Editores, a fls. 150 e seguintes. Hely Lopes Meirelles explica que tais atos discricionários “… são os que a Administração pode praticar com liberdade de escolha de seu conteúdo, de seu destinatário, de sua conveniência, de sua oportunidade e do modo de sua realização.).

Todavia, quando a Autoridade procede tal como acima nos referimos, simplesmente ignorando a Constituição, a Lei e gera mecanismos normativos que se inscrevem no contexto das Normas Complementares de Direito Tributário, eis que estamos diante de um ato arbitrário, que o referido Hely Lopes Meirelles, na obra referenciada, explica: “Já temos acentuado, e insistimos mais uma vez, que ato discricionário não se confunde com ato arbitrário. Discrição e arbítrio são conceitos inteiramente diversos. Discrição é liberdade de ação dentro dos limites legais; arbítrio é ação contrária ou excedente da lei. Ato discricionário, portanto, quando permitido pelo Direito, é legal e válido; ato arbitrário é sempre e sempre, ilegítimo e inválido.”

E é, pois, no contexto do ato arbitrário que vamos encontrar o excesso de exação, que se encontra no art. 316 do Código Penal, a saber:

Concussão

Art. 316 – Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida:

Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa.

Excesso de exação

§ 1º – Se o funcionário exige tributo ou contribuição social que sabe ou deveria saber indevido, ou, quando devido, emprega na cobrança meio vexatório ou gravoso, que a lei não autoriza:

Pena – reclusão, de três a oito anos, e multa.

Nesse contexto acima é que a segurança jurídica carece urgentemente de nossa atenção e de nossas atitudes positivas de busca e perseguição do Direito esquecido pelo Governo e não, repetimos, pela República!

Vejam só que, no cenário acima descrito, em que se encontrou a arbitrariedade, a “qualité de la loi” (qualidade da lei) e a “prévisibilité de la loi” (previsibilidade da lei) estão sendo ignoradas, desprezadas, desdenhadas, seja pelo Legislativo, seja pelo Executivo, seja, especialmente, por aqueles que constroem as Normas Complementares (dentre as quais se enumeram os “atos administrativos expedidos pelas autoridades administrativas;” e, o que é pior, quando estão no exercício transitório de funções nas quais estão por razões de “confiança”, que deveria ser aquela Republicana e não a Governamental (apreciação que se inscreve no art. 37, da Constituição, numa avaliação do respeito aos princípios da moralidade e da legalidade!)

Mas, voltando ao Relatório do Conselho de Estado francês, devemos dizer que sua postura não nasceu dele próprio, somente, mas surgiu de decisões que foram adotadas no âmbito da Cour de Justice des Communautés Européennes (Corte de Justiça da Comunidade Européia), em decisão proferida no caso Bosch, em 6 de abril de 1962, e no Conselho Constitucional francês (que, cf/ art. 56 e seguintes, da Constituição, “zela pela regularidade da eleição do Presidente da República…e aprecia as leis orgânicas, antes de sua promulgação..”), numa decisão de 16 de dezembro de 1999, no caso n.º.99-421 DC. A abordagem, em ambos os casos, foi essencialmente de que o objetivo constitucional impunha normas “d´accessibilité et d´intelligibilité de la loi” (de acessibilidade e de inteligibilidade da lei)!

Recentemente, num caso que foi levado à sua apreciação (Decisão de 24 de março de 2006, em que eram partes a KPMG e outros), o Conselho de Estado francês, no exercício de funções consultivas, consagrou “le principe de sécurité juridique…” (o princípio da segurança jurídica).

E os exemplos da aplicação do princípio da segurança jurídica são encontrados em todas as instâncias do Poder.

Na França, vale lembrar que o Judiciário não se constitui em Poder já que é uma instância administrativa especializada, submetida ao Presidente da República (O art. 64 da Constituição dispõe que “O Presidente da República é o garante da independência da autoridade judicial. Nessas funções, é assistido pelo Conselho Superior da Magistratura.”).

Todavia, ainda assim, recentemente o TRIBUNAL de GRANDE INSTÂNCIA de PARIS (TGI-Paris), pela sua 12ª Câmara, em julgamento de 1º de junho de 2007, tendo como partes a Empresa A, de um lado, e os Srs. T1 et T2, de outro, aplicou a Lei, para condenar os Srs. T1 e T2 a seis meses de prisão. Todos dois foram condenados civilmente, também, a compensações por perdas e danos (dommages-intérêts). A condenação do primeiro foi pela quebra do SIGILO e pela FRAUDE que praticou, respectivamente, ao entrar nos e-mails dos Diretores da empresa A, para a qual trabalhara anteriormente e, assim, fraudulentamente acessou um sistema de tratamento automatizado de dados. Guardara as senhas dos Diretores da empresa A, de que tinha conhecimento, por exercer a função de Consultor de Informática. O segundo, seu irmão, foi condenado por “recel”, isto é, por ter se omitido, consentindo, na referida “quebra do sigilo” praticada pelo irmão. O Sr. T2, que se transferira para uma empresa concorrente da Empresa A, recepcionava as informações que seu irmão lhe passava, no sentido de acompanhar a compra eventual da empresa A pelo seu novo Empregador, a empresa B (essas informações estão publicadas no saite Legalis. Net e foram divulgadas sob restrições pelo TGI de Paris. Todavia, o julgamento ocorreu em 1º de junho de 2007, por sua 12ª Câmara).

O tema da segurança jurídica, pois, é levado a sério em todas as instâncias decisórias, ainda que tenham elas o caráter administrativo.

No Brasil, como registra Luís Roberto Barroso, in Constituição da República Federativa do Brasil, Anotada, Ed. Saraiva, 1998, a fls. 65, o Egrégio Supremo Tribunal Federal, decidindo sobre uma questão de sanção administrativa, houve por bem se pronunciar sobre a impossibilidade administrativa de se aplicar uma pena administrativa “por toda a vida”, já que ela equivaleria, em seus efeitos, à pena de caráter perpétuo, que é proibida pela Constituição (art. 5º, inciso XLVII, item ).

A sistemática da abordagem do tema segurança jurídica, no Brasil, tem sempre uma técnica difusa, diria mesmo canhestra. Não gostaria de chegar a dizer que existe uma solidariedade entre os Governos e os Juristas que têm abordado o tema indiretamente. Mas, reconhecendo-se que a segurança jurídica deveria ser uma proteção oferecida ao Cidadão pela República, e não pelos Governos, o fato é que se antepõe à segurança jurídica todas as outras seguranças, por vezes dela tratando, somente, no contexto de um período, de uma frase.

Um desses exemplos encontro na 9ª. Edição-Revista, 4ª. Tiragem, do compêndio de Curso de Direito Constitucional Positivo, Malheiros Editores, de José Afonso da Silva. À fls. 382, o Douto Constitucionalista trata do Direito à Segurança. Encontramos em seqüência entusiástica a segurança do domicílio, das comunicações pessoais, em matéria penal, em matéria tributária. É óbvio, e devemos fazer justiça, que José Afonso da Silva destaca os ingredientes integrativos da segurança jurídica que se inscrevem, por exemplo, no art. 150 – Limitações do Poder de Tributar – da Constituição; ou no art. 5, incisos XXXVII, XLVII e LXXV, “sem falar no habeas corpus”. Contudo o Ilustre Jurista parece não se ter preocupado com a proliferação das normas legais, regulamentares e complementares, que pretendem presidir nossa existência cidadã.

Também não podemos nos esquecer de que temos, explícitos e bem explorados pela doutrina e apoiados pela jurisprudência, alguns temperos que integram a segurança jurídica, tais como o são o princípio da irretroatividade da Lei, o princípio da legalidade e, em certos casos, o princípio da anterioridade da norma, ainda que neste sistema nonagenário.

Mas o fato é que os vetores novos, desestabilizadores da segurança jurídica, tais como a “logorrhée legislative et réglementaire” (a verborragia legislativa e regulamentar) e os “raffinements byzantins” (refinamentos, apuros, bizantinos, de questões insignificantes, sem resultado prático), ou, ainda, o “droit mou, droit flou, droit à l´etat gazeux…”(a regra que dura pouco, a regra vaga, de falsos valores, e a regra no estado gasoso, sem forma, sem propósito) têm se constituído em hábito constante por parte de nossos Governos, cujo único objetivo é a arrecadação financeira e a desestabilização do Cidadão para que não reaja às suas investidas de força, de absorção, de centralização e de domínio permanente.

Tem razão o Douto Nagib Slaibi Filho, in Direito Constitucional, Ed. Forense, 2004, a fls. 393, que, ao discorrer sobre o Direito à Segurança, registra que “Não basta ao indivíduo viver e ser livre – necessário também que sinta a segurança de que os bens alcançados por ele não lhe serão retirados. A insegurança das relações sociais (e, em conseqüência, jurídicas) é algo que irrita a personalidade individual, pois todos trazem em si o sentimento de que suas necessidades serão satisfeitas com os bens que alcançaram”.

Recentemente, como reflexo desta tendência ao crescimento da insegurança jurídica, teve o Douto Kiyoshi Harada oportunidade de discorrer sobre a “execução fiscal administrativa” (in Jus Navigandi nº1655, de 12/01/2008). Para mim, o único senão da abordagem desse excelente Jurista foi o fato de ter vinculado o tema ao “Decadente princípio da separação dos poderes”. Se retomarmos as considerações do Conselho de Estado, francês, a que já me referi, temos que nos lembrar de que a referida entidade advertiu que a instabilidade das regras e a degradação das normas nos conduz a “…comportements ” (comportamentos doentios ou que podem nos conduzir a doenças). Uma das doenças, a meu ver, seria a crença de que certos princípios, como o da “separação dos poderes” se tenha tornado despiciendo, em virtude da atitude militante do Executivo e submissa e sem “farol” do Legislativo.

Também não podemos nos esquecer de que a segurança jurídica deve ser sentida e vista como integrativa do disposto no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal, isto é, da dignidade humana. Esta é a lição que encontramos desenvolvida por Marcio Monteiro Reis, na obra coletiva Teoria dos Direitos Fundamentais, Ed. Renovar, 1999, organizada pelo Douto Ricardo Lobo Torres, a fls. 130, in verbis: “Por dignidade humana não se refere apenas ao conceito de direitos humanos. Há, no seu entender, quatro valores que devem constituir a moralidade do Poder e do Direito: liberdade, igualdade, solidariedade e segurança.”. E, adiante, relativamente à segurança jurídica: “A segurança jurídica, valor específico da modernidade, é a condição de outros valores e a razão que fundamenta direitos e princípios de organização, para a criação de um âmbito de paz, de ordem, de certeza, de superação do medo em face de ataques da força irracional do outro ou do titular do poder, em face da enfermidade, em face da idade, ou seja, em face de realidades pessoais ou fáticas que possam impedir ou dificultar a existência de outros valores.” (grifos nossos).

Concluindo estas reflexões sobre a segurança jurídica, creio que devemos todos nos convencer de que nossas perplexidades em torno de todos esses fenômenos geradores da insegurança jurídica, a que o Conselho de Estado faz referência, devem ser por nós repelidos em nossos escritos, em nossas ações e em nossas reflexões, de tal forma que a reação, no campo jurídico, possa ser essencialmente do uso dos meios legais que temos e de que dispomos para combater os excessos, sejam eles na ação da autoridade, decorram eles da construção normativa da autoridade, mas todos geradores da insegurança e da desestabilização das normas jurídicas, que asseguram o exercício da Cidadania, com respeito à Dignidade Humana.

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