Preço da dor

Entrevista: Leonardo Amarante, advogado

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9 de fevereiro de 2008, 23h00

Leonardo Amarante - por SpaccaSpacca" data-GUID="leonardo_amarante.jpeg">Não é porque existem casos de litigância abusiva que o Judiciário tem de nivelar por baixo o valor das indenizações por danos morais. Principalmente diante do fato de que o número de pessoas que age com má-fé é pequeno se comparado ao de quem vai à Justiça porque efetivamente sofreu um dano.

A opinião é do advogado especialista em responsabilidade civil Leonardo Amarante, que representa vítimas de grandes tragédias, como o acidente do Boeing da Gol e do Bateau Mouche (nome da embarcação que naufragou e matou 55 pessoas no réveillon de 1989, no Rio de Janeiro). Para ele, a Justiça tem de diferenciar os casos realmente graves e condenar as empresas de grande porte econômico a pagar indenizações pesadas para desestimular o desrespeito a direitos e a repetição de atos que causam abalo moral.

De acordo com o advogado, a Justiça brasileira não está preparada para lidar com os grandes casos. Os maiores problemas são o valor baixo das reparações e a demora para que elas sejam efetivamente pagas. Por isso, muitas famílias optaram por acionar nos Estados Unidos as empresas americanas envolvidas no acidente da Gol. “Nos Estados Unidos, o sistema é mais favorável à vítima”, explica.

O especialista afirma que acionar a União é sinônimo de arrastar o processo por anos sem solução. Também acredita que a condenação do Estado deva ser tratada de maneira peculiar, já que o contribuinte é quem paga a conta e o efeito punitivo acaba se diluindo. Ele critica a demora para a solução dos casos e demonstra desânimo ao falar do processo do Bateau Mouche: “Quando comecei neste caso, era casado com outra mulher e não tinha filho. Separei, casei de novo, tenho um filho grande e o processo não acaba”.

Leonardo Amarante nasceu no Rio de Janeiro e é formado pela Universidade Cândido Mendes. Atua na área de responsabilidade civil desde 1981, quando ainda era estagiário. Também é procurador do estado do Rio de Janeiro há 20 anos e defende o estado em causas de indenização. O advogado não vê conflito em suas duas atuações.

Em entrevista concedida à Consultor Jurídico, em seu escritório no centro do Rio de Janeiro, Amarante falou também sobre as peculiaridades dos processos em que atua e as diferenças do sistema jurídico brasileiro e americano no tratamento destes casos.

Leia a entrevista

ConJur — Como se mede a dor moral?

Leonardo Amarante — É muito difícil. Antes se dizia que o dano moral não poderia ser indenizado porque era impossível mensurar a dor. Depois, passou a predominar a visão de que não se mensura a dor, mas é possível compensá-la de alguma forma. A discussão avançou e se cogitou estabelecer a indenização por dano moral de caráter punitivo, que não vingou porque o lobby das empresas conseguiu bloqueá-la.

ConJur — O discurso dominante é o de que a indenização não pode ser muito alta a ponto de causar enriquecimento ilícito, nem muito baixa que não seja capaz de desestimular a ação que causou o dano. Na prática, como funciona?

Amarante — O discurso aparece em muitas decisões judiciais, mas não repercute no valor da indenização. Na prática, predomina a indenização de valor baixo. Em alguns casos é mesquinho, se considerarmos o porte da empresa e a intensidade do dolo corporativo. Hoje, fala-se muito de massificação do dano moral. Dizem que se a Justiça começar a conceder indenizações elevadas, a demanda vai aumentar porque as pessoas vão querer buscar valores milionários, deixando o Judiciário ainda mais afogado.

ConJur — E não vai acontecer isso?

Amarante — Acho o contrário. Quando há uma culpa grave e a empresa tem um porte econômico considerável, a indenização tem de ser diferenciada. Não quer dizer que o valor vai se estender a qualquer decisão. O abuso também tem que ser coibido. Há três etapas do dano moral no país. Na primeira, o dano moral não era indenizado. Depois, houve um fenômeno histórico com a Constituição de 88, o Código do Consumidor e com a criação do Superior Tribunal de Justiça. Antes do STJ, o Supremo Tribunal Federal tinha competência para julgar recursos sobre indenização e não permitia que o dano moral fosse acumulado com a reparação material. Com o STJ e a Constituição de 88, isso mudou. Foi o boom do dano moral. Agora, vivemos a terceira etapa, em que as indenizações estão cada vez menores e as hipóteses em que são concedidas, mais raras.

ConJur — E qual será a próxima etapa?

Amarante — A do equilíbrio. Existe abuso, mas o Judiciário tem que atuar e separar o joio do trigo. O que não pode é, com a justificativa do abuso, conceder uma indenização baixíssima em um caso grave e em que a situação econômica da empresa é boa. Para uma pessoa de classe média que atropela alguém, R$ 100 mil é um valor altíssimo. Já para a Petrobras é uma gota no oceano. Não se pode nivelar por baixo. A tendência atualmente é o tabelamento. Morte do pai vale tanto; do irmão, outro tanto.


ConJur — Há casos como o de um juiz que se sentiu ofendido pelo advogado e recebeu indenização de R$ 200 mil. Já, a mãe que perdeu o filho em um acidente, recebeu R$ 20 mil. Como são estabelecidos os parâmetros?

Amarante — A vida parece não valer muito. Quando a pessoa é humilde, a Justiça restringe a indenização sob o argumento de enriquecimento ilícito, como se alguém fosse enriquecer às custas da perda da mãe. Esse discurso é meio bizarro. A vida é o bem jurídico máximo, portanto, vale mais do que tudo. As distorções se explicam pela falta de um critério uniforme. Há o medo justificado do abuso. Mas há uma ou outra ação abusiva. A regra é a pessoa ter um direito e buscar na Justiça a sua reparação.

ConJur — Mas todas as discussões vão, hoje, parar na Justiça. Não estamos criando uma sociedade que não consegue resolver seus conflitos fora dos tribunais?

Amarante — O Brasil ainda está muito longe de ser uma sociedade que recorre ao Judiciário mais do que deveria. Como a Justiça é muito lenta e os custos são altos, as pessoas até evitam ir ao Judiciário. Quando a questão envolve uma entidade estatal, pior fica. Há, sim, uma explosão de pedidos de indenizações por dano moral. Há pessoas que pedem indenização por qualquer situação. Mas o número ainda é pequeno, perto de quem vai à Justiça porque efetivamente tem direito.

ConJur — É possível identificar bem as duas situações?

Amarante — A diferença é muito tênue. É muito difícil estabelecer a diferença entre um aborrecimento e um ato que cause dano moral. Depende de uma apreciação subjetiva do juiz.

ConJur — O advogado que comete um erro em um processo e prejudica o cliente, pode ser responsabilizado por isso? Tem de indenizar por danos morais?

Amarante — O que se discute nessa hipótese é se o cliente teria êxito na causa. A doutrina e a jurisprudência têm reconhecido esse erro como a perda de uma chance. Se o advogado deixa de cumprir com alguma obrigação profissional e acarreta prejuízo ao cliente, não é necessário que o cliente prove que ganharia a ação. O que ele perdeu foi uma chance de ganhá-la. Não há nenhuma razão para excluir o advogado dessa responsabilidade.

ConJur — Quais os parâmetros para definir a responsabilidade do advogado?

Amarante — Existem erros que são justificáveis. Por isso a lei prevê a necessidade da prova da culpa, o que atenua a responsabilidade do profissional liberal. Perder um prazo é grave. Não há dúvida de que isso gera responsabilidade. A discussão mais complicada seria em relação a provar o dano.

ConJur — Com a ampliação da competência da Justiça do Trabalho, a pessoa é demitida e pede indenização porque sofreu a dor da demissão. Mas o empresário tem o direito de demitir. Se ele pagou todas as verbas rescisórias, não pode ser punido. Como a Justiça lida com isso? Os juízes não podem aplicar multa por litigância de má-fé quando se deparam com abusos?

Amarante — Aplicar multa não seria eficaz, porque normalmente as pessoas não têm patrimônio para responder por esse tipo de condenação. As distorções existem em qualquer lugar do mundo, só não podem prejudicar o cidadão que quer exercer o seu direito. Existe uma litigância abusiva na Justiça trabalhista, mas isso ocorre em qualquer esfera. Não é criando barreiras que a situação vai melhorar. É o preço que temos de pagar para a Justiça ser mais democrática, aberta e eficaz.

ConJur — O senhor atua na defesa das famílias das vítimas do acidente da Gol. De quem é a competência para julgar acidentes aéreos?

Amarante — Em geral, é da Justiça Estadual. Se o acidente envolve uma entidade federal, como a Anac ou a Infraero, a competência se desloca para a Justiça Federal. Nos dois casos mais rumorosos e recentes, envolvendo a Gol e a Tam, percebe-se a participação de agentes públicos federais. No caso da Gol, em menor escala. Mas as pessoas não querem envolver a União nas ações porque sabem que isso significará o alongamento do processo por décadas. Elas procuram resolver com as empresas privadas no acidente. No caso da Tam, alguns acordos têm sido feitos. No caso da Gol, um pouco menos, porque existe a possibilidade de entrar com ação nos Estados Unidos.

ConJur — É melhor reclamar lá do que entrar com a ação no Brasil?

Amarante — O melhor lugar é o que tem uma indenização mais justa. Não há dúvida de que, nos Estados Unidos, as indenizações são mais elevadas, o sistema é mais favorável à vítima. O julgamento é pelo Tribunal do Júri. São pessoas comuns que vão julgar a causa e fixar a indenização. Além disso, lá existe o dano moral punitivo, aplicado em casos excepcionais.

ConJur — Nos Estados Unidos, houve a concentração dos processos dos familiares de vítimas do acidente da Gol contra os pilotos Joseph Lepore e Jan Paladino e a ExcelAire [dona do jato Legacy, que se chocou com o Boeing da empresa brasileira]. Como funciona esse mecanismo?


Amarante — O princípio da concentração estabelece que todas as ações têm de ser processadas pelo mesmo juiz para evitar gastos desnecessários. É o contrário do Brasil, em que em um acidente com 154 vítimas pode dar origem a 154 processos em 154 lugares diferentes. Nos Estados Unidos, existe um tribunal chamado Multi District Litigation (MDL), que só resolve conflitos de competência. Em qualquer processo nos Estados Unidos em que há múltiplas vítimas, é o MDL que julga qual é o foro competente. O foro escolhido é onde há mais vínculo do processo com o local. No caso do acidente da Gol, Nova Iorque foi escolhida porque os pilotos moram na cidade.

ConJur — Isso também evita decisões diferentes sobre o mesmo caso.

Amarante — Sim, a intenção é a de evitar entendimentos diferentes, além do excesso de gastos. Tenho um processo no Brasil que envolve americanos que vieram para um congresso. Ao fazer turismo em Petrópolis, o ônibus em que eles estavam capotou. Temos sete ações em andamento e, em determinado momento, tínhamos feito três perícias de engenharia que concluíam a mesma coisa. Nos outros processos, eu pedi ao juiz para aproveitá-las, pois a perícia tem um custo absurdo. Alguns juízes aceitaram, outros não. Não há preocupação com a economia dos recursos das partes. Nos Estados Unidos, os processos seriam encaminhados para um mesmo juiz e seria feita uma única perícia.

ConJur — A Gol foi incluída no processo dos Estados Unidos?

Amarante — Não. A responsabilidade da Gol é objetiva, decorre do contrato de transporte. Então, não há o que discutir. Ela tem de indenizar aqui no Brasil. Já a aceitação do processo contra as empresas americanas nos Estados Unidos é a etapa mais complexa. O juiz americano tem o poder de não aceitar a ação. Ele pode entender que o foro americano não é o conveniente. Mas isso não livra as empresas de responderam a processos no Brasil.

ConJur — As famílias podem entrar com a ações nos Estados Unidos e no Brasil?

Amarante — Podem, porque não há litispendência internacional neste caso. Algumas pessoas fizeram isso. O máximo que pode ocorrer é ter que descontar a indenização que foi paga aqui da que será paga nos Estados Unidos.

ConJur — O senhor também atua em ações que envolvem o acidente do barco Bateau Mouche, que naufragou e matou 55 pessoas no réveillon de 1989, no Rio de Janeiro. O que aconteceu com esses processos?

Amarante — A primeira ação, que deve ter sido ajuizada em março de 1989, só teve o trânsito em julgado da decisão em 2007. Foi uma ação proposta pela Defensoria Pública, que defendia os familiares dos trabalhadores da embarcação — dançarinas, garçons, marinheiros. Na época, não existia Defensoria Pública da União e o processo foi para Brasília. Então, a defensoria Estadual saiu do processo e nós assumimos o caso porque já tínhamos vários clientes. Mas há processos sobre o acidente que não tem sequer sentença de primeira instância.

ConJur — O que causa essa demora?

Amarante — A legislação é completamente esquizofrênica; permite dezenas de recursos. E os réus usam todos os recursos possíveis. Mas também é causada pela lentidão e ineficiência da Justiça. Tem um Recurso Especial que está há oito anos no Superior Tribunal de Justiça, passando de gabinete em gabinete, esperando para ser julgado. Não há justificativa para essa demora. O caso se tornou simples, porque não há o que inovar em matéria de argumentos. Já houve a responsabilização dos sócios da embarcação, da União, os agentes públicos — oficiais que liberaram o barco — foram condenados criminalmente por negligência. Estamos ganhando todas as ações. Mas uma coisa é ganhar; outra é levar.

ConJur — Há a condenação, mas a indenização não foi paga?

Amarante — Nenhuma indenização foi paga até hoje. Os bens dos sócios da Bateau Mouche estão indisponíveis. Mas ao levar seu patrimônio a leilão, conseguem-se valores bem inferiores ao que os bens, de fato, valem. Vai sobrar para a União. Ou seja, o contribuinte pagar uma parte dessa conta. O que estamos tentando evitar é que pague um valor substancial.

ConJur — No caso do Bateau Mouche, a União foi responsabilizada pela omissão. No caso da Gol, a União também não responde pelo acidente?

Amarante — Nós defendemos que houve participação dos controladores de vôo para o acidente, mas ela não foi decisiva para que ele ocorresse. A responsabilidade maior é dos pilotos do Legacy. O controlador de vôo poderia ter feito uma aberração, mas com o transponder ligado o acidente não aconteceria. A União poderia ser acionada, mas as pessoas não têm interesse porque sabem que vai ser outro Bateau Mouche. O que não exclui a possibilidade de as empresas que pagarem as indenizações entrarem com ação de regresso para responsabilizar a União. No caso da Tam, acho que as vítimas estão buscando a punição criminal de quem liberou a pista. Até porque indenização paga pela União é paga por todos nós. O caráter punitivo, quando se fala de Estado, acaba se diluindo.


ConJur — Como a Justiça trata as vítimas de grandes acidentes?

Amarante — Mal. O Judiciário não está aparelhado para lidar com esse tipo de situação. Não existe um tratamento coletivo. Por um lado, é bom que seja assim. Não vejo com bons olhos as ações coletivas em casos de acidentes. Elas acabam gerando um processo mastodôntico que não se resolve nunca, como é o caso do Palace II [edifício residencial que desabou em 1998, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro].

ConJur — Qual é a dificuldade neste processo?

Amarante — O processo coletivo no caso do Palace II é uma loucura. Só foi para frente porque houve acordo com a construtora. Cada um tem uma situação específica, os bens que perdeu têm valores distintos.

ConJur — Então, não há vantagem em entrar com ação coletiva.

Amarante — Temos uma legislação boa. Mas, na prática, é muito complicado transformar a ação coletiva em um processo com um início, meio e fim. Se o interesse é individual, defendo a ação individual. Há pessoas que têm tudo provado com os contra-cheques e outras que não têm. São situações distintas. Não dá para misturar tudo e fazer uma ação só. A Justiça não tem estrutura para lidar com esse tipo de processo.

ConJur — E como fica a situação do advogado diante das expectativas das vítimas, ávidas por acabar logo com o processo?

Amarante — É complicada, principalmente nesta área, pois as pessoas depositam no advogado a esperança de conseguir uma decisão que possa garantir sua subsistência ou reparar um mal que lhe foi causado. Quem nos procura é porque está em uma situação econômica difícil ou passou por um momento muito ruim na vida, perdeu um parente ou sofreu uma lesão grave.

ConJur — O senhor falou sobre as pessoas que o procuram. Nos casos recentes de acidente aéreos, muitas famílias foram procuradas por advogados. Algumas, assediadas nos velórios. Qual o efeito desse assédio para advocacia?

Amarante — Nestes casos, a abordagem foi extremamente agressiva e causou muito constrangimento às famílias. Nos Estados Unidos, a lei proíbe que as vítimas sejam abordadas até 45 dias após o acidente. Isso porque existe uma permissividade maior para esse tipo de postura do advogado. No Brasil, é captação de clientela, considerada conduta antiética e proibida pelo Código de Ética da OAB.

ConJur — O senhor acha que a OAB deveria restringir menos a propaganda dos advogados.

Amarante — A legislação é restrita demais. Foi concebida em uma época em que a advocacia era diferente. Hoje, a atividade está massificada e a lei deveria ser reformulada, pois o rigor excessivo faz com que as regras sejam burladas. Talvez os Estados Unidos sejam um exemplo exagerado, já que a disputa pelos clientes é predatória. Vivi a experiência nos casos da Gol. Em Manaus, um advogado mandou um comunicado para todas as vítimas dizendo que haveria uma palestra do Ministério Público Federal para explicar quais seriam os direitos das vítimas. Todo mundo foi, mas quem apareceu foi o advogado, dizendo que o procurador da República não pôde ir.

ConJur — O senhor é procurador do estado. Não é contraditório atuar ao lado das vítimas e, ao mesmo tempo, como procurador do estado?

Amarante — Não. A responsabilidade do Estado é objetiva. Muitas vezes, não há muito que se discutir além dos valores. Talvez o conflito seja de defender o aumento do valor da indenização por dano moral de um lado, e a diminuição do outro. Mas a minha tese é de que a indenização a ser paga pelo Estado tem que ser tratada de forma diferente, pois é o contribuinte quem paga a conta.

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