Preservação do segredo

STF não pode criar rampa íngreme na quebra de sigilo bancário

Autor

9 de fevereiro de 2008, 9h37

[Artigo publicado no jornal O Estado de S.Paulo, deste sábado, 9 de fevereiro]

Na esteira da derrocada da CPMF, o governo sofreu a obstrução do valioso fluxo de informações que mantinha com as instituições financeiras. Ao noticiar à Receita Federal o recolhimento da contribuição, o banco estava obrigado a apontar o correntista e indicar o tipo e o valor da operação realizada. Procedimento necessário, pois se prestava a apurar o correto pagamento do tributo. Mas trazia sorrateira vantagem ao Fisco: assegurava visibilidade suficiente sobre grande parte das movimentações, permitindo detectar evasões fiscais, sem o incômodo de promover a quebra do sigilo bancário.

Para recobrar a ampla visão o secretário da Receita Federal editou a Instrução Normativa (IN) 802. Desde 1º de janeiro as instituições financeiras estão obrigadas a reportar à Receita as operações que o indivíduo realizar durante o semestre, caso a somatória delas exceda o valor de R$ 5 mil. Para as pessoas jurídicas esse teto é de R$ 10 mil.

O mecanismo não surpreende pela novidade. Algo muito parecido foi instituído em 2002, quando o Decreto 4.489 impôs esse mesmo dever às instituições financeiras. A indesejada surpresa está na mudança do prazo de apuração: o hoje período semestral era, até dezembro, mensal.

O indivíduo que no ano passado fazia pagamentos em torno de R$ 1 mil por mês não era submetido à fiscalização, porque não ultrapassava o teto mensal de R$ 5 mil. Se continuar desembolsando, este ano, os mesmos R$ 1 mil por mês, totalizará R$ 6 mil no semestre, excederá os R$ 5 mil semestrais e terá o conjunto de suas operações repassado à Receita. Resultado: o ato do secretário da Receita colocou um número maciçamente maior de pessoas na vitrina da fiscalização.

É de perguntar: este ato de um homem só não comprometeu o sigilo bancário de milhões de brasileiros, que é direito fundamental do indivíduo insculpido na Constituição Federal? Decerto que sim.

Historicamente, os direitos de segredo foram institucionalizados para evitar que o Estado cometesse excessos sobre a esfera privada do indivíduo. O sigilo bancário cumpre esse propósito. Toma-se como regra a preservação do sigilo e como exceção a intromissão estatal, que só deve ocorrer se houver indícios de mau uso do direito. Sinais de lavagem de dinheiro numa conta corrente, por exemplo, dariam margem à fiscalização, mas com a condição de se instaurar um processo e nele se assegurar ampla defesa ao correntista.

Quando a IN 802 escancara as operações financeiras à Receita, parece presumir a existência de um ilícito coletivo, que será semestralmente investigado, sem a instauração de processo e sem a possibilidade de apresentação de defesa.

Estamos diante de grandiosa inconstitucionalidade. Mas onde ela se originou? O óbvio apontaria para o secretário da Receita, afinal, foi o editor da IN. Ele poderia dizer: “Não tenho nada que ver com isso. O artigo 5º, inciso II, do Decreto 4.489/02 me autorizou a mudar o período de apuração de mensal para semestral.” É verdade. Então, o responsável seria o expedidor do decreto, o presidente da República. Este, por sua vez, alegaria: “Recebi poderes do artigo 5.º da Lei Complementar (LC) 105/2001 para fixar o período em que as instituições financeiras devem prestar informações à Receita.” Justo! Chega-se, assim, a quem parece ser o violador da Constituição: o Congresso Nacional. Este poderia sustentar: “O sigilo bancário, enquanto direito fundamental, não é absoluto, comporta restrições, desde que sejam feitas por lei. Por isso me senti autorizado a editar a LC 105/01.” Também é verdade!

Esse fenômeno não é raro no Direito, onde se detecta a inconstitucionalidade, mas não se encontra, com clareza, o local de seu nascimento. É questão que, por excelência, deveria ser apaziguada pelo Supremo Tribunal Federal, órgão incumbido da “guarda da Constituição” (palavras da Carta Magna). Mas há um obstáculo intransponível à execução dessa tarefa: a jurisprudência do próprio STF.

A Suprema Corte entende que somente os atos que afrontam diretamente a Constituição podem ser por ela analisados. Significa dizer que, se para detectar a inconstitucionalidade do ato do secretário for necessário caminhar pela pirâmide das normas, a partir da base — onde se encontra a IN 802 — em direção ao ápice — onde reside a Constituição —, e ter de passar pelo Decreto 4.489/02 e pela LC 105/01, o STF concluirá que não se trata de “afronta direta à Constituição”, mas sim indireta, e deixará de solucionar o conflito entre indivíduo e Estado.

Não se está dizendo que o STF não tutele o sigilo bancário. Diversos são os casos em que a Corte Suprema fez prevalecer o sigilo para corrigir abusos estatais. O destaque é para o tipo de inconstitucionalidade que o STF disse a si próprio que não examina, mesmo tendo recebido da Constituição a incumbência de guardá-la. Caso se entenda que a inconstitucionalidade da IN 802 é indireta, as portas do STF estarão fechadas. Todos os que se sentirem prejudicados pelo ato poderão, sim, levar suas queixas ao Judiciário. Mas não serão decididas pela Corte Máxima.

Em 1988, a Constituição desenhou o Supremo para garantir amplo acesso aos que desejassem discutir as questões constitucionais. Curiosamente, essa facilidade coincide com a arquitetura de seu edifício. Quem da Praça dos Três Poderes pretenda ingressar na sede da Corte Suprema encontrará uma rampa curta, de inclinação tênue, quase ao nível da praça. Infelizmente, construções jurisprudenciais como essa dão ao STF outra aparência, fazendo-o parecer mais com o prédio de seu vizinho em frente, que é dotado de rampa íngreme e longa e percorrida não por todos os brasileiros, mas por um só, que denominamos presidente da República. Definitivamente, não é este o acesso que esperamos.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!