Princípio da proporcionalidade

Teoria da razão de Estado não serve para justificar terrorismo

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7 de fevereiro de 2008, 23h00

Após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, que feriram direta e violentamente o ocidente e alteraram de uma vez por todas as relações internacionais, uma teoria medieval que pouco se debatia recebe novamente foco e passa a ser discutida com relevante freqüência: a teoria da razão de Estado.

Embora a princípio o tema aparente ser predominantemente teórico, além de remontar ao século XVI, restará demonstrado que, mutatis mutandis, ele pode contribuir para justificar determinados atos praticados pelos países que travam a “guerra contra o terrorismo”, atos esses supostamente considerados contrários aos princípios do Estado de Direito e a normas de direitos humanos. Outrossim, é a própria razão de Estado, suscitada sob outras nomenclaturas, que é freqüentemente invocada na atualidade.

Para melhor compreensão da idéia central da teoria em apreço, faz-se necessário traçar um brevíssimo histórico da sua construção. Mesmo tendo sido mencionado pela primeira vez pelo humanista Giovanni della Casa, o tema da razão de Estado ganhou autonomia teórica a partir do tratado Da Razão de Estado, de Giovani Botero, publicado em 1589.1 Para Botero, a razão de Estado é o conhecimento dos meios próprios para fundar, conservar e engrandecer um Estado. O principal objeto da teoria em apreço é, portanto, resolver as questões práticas relativas aos modos de atuação em concreto do Estado, de modo a assegurar sua auto-preservação.

Para os defensores da razão de Estado, a submissão à lei exercia papel secundário, pois vigorava a máxima romanista segundo a qual “a necessidade não precisa de lei”. S. Tomás de Aquino admitia que o governante pudesse considerar-se desvinculado da própria lei, caso estivesse diante de um interesse público superior ao seu cumprimento. Era este o princípio que levava à discussão dos critérios e práticas que o governante devia utilizar para que o seu Estado não sucumbisse perante os inimigos. Diversas mensagens contidas em O Príncipe de Maquiavel refletem claramente os argumentos desses tratadistas. Em termos simples e diretos, pode-se dizer que a razão de Estado procura justificar atos de governo eventualmente contrários à lei, com base na necessidade de preservação do Estado.

Deixando temporariamente de lado os mencionados aspectos teóricos, faz-se necessário tecer algumas palavras sobre a problemática que causa o terrorismo na ordem jurídica internacional. Em primeiro lugar sobre a proibição do uso da força e, após, sobre os direitos humanos.

No que diz respeito à proibição do uso da força nas relações internacionais. De acordo com o artigo 2º, 4, da Carta das Nações Unidas, o uso da força nas relações internacionais é proibido. Este comando é um dos pilares da Carta, cujo fundamento principal é a manutenção da paz e da segurança internacionais. Por outro lado, o artigo 51 da mencionada Carta afirma que a proibição do uso da força não pode afetar o direito à legítima defesa individual ou coletiva, assegurado ao Estado vítima de um ataque armado.

O costume e a jurisprudência entendem que a legítima defesa deve estrita obediência à questão da atualidade. Para fazer uso da força fundado em legítima defesa, é preciso que o ataque armado contra o qual se pretende reagir esteja em curso, pois para o Direito Internacional não há legítima defesa preventiva. Logo, caso o Estado não reaja durante o ataque armado ou imediatamente após o seu fim, só vindo a fazê-lo alguns dias depois, a questão da atualidade resta prejudicada e entende-se que a reação não tem caráter defensivo, mas antes se configura como represália armada, que é proibida no Direito Internacional.

Destarte, tendo em mente que a imputação de um ato terrorista a um Estado ou a outra entidade vinculada ao Direito Internacional não é tarefa fácil, o requisito da atualidade da resposta ao ataque armado dificilmente será observado. Tomemos como exemplo que um homem-bomba de nacionalidade do Estado A cometa um atentado contra o Estado B às 8h da manhã, causando a morte de 150 pessoas e ferindo mais de 500. Sendo certo que o Estado B está vinculado à Carta das Nações Unidas e não pode fazer uso da força nas relações internacionais a não ser em legítima defesa, por força do princípio da atualidade deverá provar que o ato terrorista é imputável ao Estado A naquela mesma manhã para que possa agir belicamente em desfavor do Estado A sem desrespeitar a Carta das Nações Unidas.

A menos que o Estado A reivindique a autoria do atentado, a imputação imediata é praticamente utópica. Logo, algum tempo decorrerá até que o Estado B tenha investigado e concluído que o ato do terrorista é imputável ao Estado A e eventual reação bélica tardia para destruição da base de treinamento de terroristas naquele Estado será contrária ao Direito Internacional, porque, como dito, o requisito da atualidade exigido para que se invoque a legítima defesa não foi respeitado. Logo, o Estado B não poderá atacar a base terrorista porque não mais agiria em legítima defesa se o fizesse?

No que concerne aos direitos humanos. O direito a não ser torturado e submetido a tratamentos desumanos ou degradantes está consagrado na Declaração Universal dos Direitos do Homem, assim como em outros importantes textos a nível regional. Para muitos, esse direito faz parte do jus cogens e não admite qualquer restrição ou derrogação. Pois bem. Admitamos a hipótese de que um Estado C tenha capturado, em um dos seus principais aeroportos, duas pessoas que portavam explosivos e pretendiam explodir o avião em que iriam embarcar. O Estado C suspeita que outros três homens detidos no estacionamento do aeroporto tenham ligação com o atentado frustrado, mas não há provas concretas nesse sentido, pois o interrogatório dos três suspeitos não rendeu resultados positivos. Pergunta-se então o que deve o Estado C fazer. Simplesmente soltar os três suspeitos, que no futuro podem vir a praticar um atentado contra seu território e cidadãos?

As duas hipóteses podem dar a dimensão da problemática do terrorismo e sua relação com a razão de Estado, anteriormente conceituada.

Com efeito, os atentados terroristas são ameaças concretas a componentes vitais de alguns Estados, principalmente ocidentais. Talvez tenha sido o papel messiânico dos Estados Unidos, mencionado por Henry Kissinger, de impor ao restante do mundo os seus próprios valores fundados na democracia e na liberdade que tenha causado a ira dos extremistas. Mas provavelmente nunca se saberá ao certo o que os move. O que se sabe, contudo, é que a ameaça dos terroristas é, de fato, uma ameaça global.

É bem verdade que o Estado de Direito, as garantias processuais e a consagração de direitos humanos a nível universal são importantes conquistas da humanidade. Mas será justo impor a um Estado que atue apenas e tão somente em estrita obediência à lei nos casos em que terroristas e até chefes de Estado declaram abertamente o ódio e o desejo de aniquilá-lo enquanto inimigo, sobretudo quando se constata a crueldade com que são praticados os atentados?

Parece ser nesse contexto que a razão de Estado ressurge como embasamento teórico para legitimar alguns atos que violam a ordem jurídica internacional. Algumas práticas observadas nos últimos anos jamais podem ser justificadas à luz do Direito Internacional, mas parecem fazer algum sentido se analisadas sob a ótica da razão de Estado. Em outras palavras, é a necessidade de preservação do Estado que pretende justificar o descumprimento da lei.

Outrossim, o caráter de cooperação que prepondera nas relações internacionais agrava o problema, uma vez que são normalmente as potências vítimas de atentados que violam as regras internacionais e regular seus atos coercitivamente é tarefa difícil.

De todo modo, embora algumas práticas contrárias a normas internacionais parecem encontrar respaldo na aludida necessidade de preservação, é preciso que o Estado atue com bom-senso, tendo sempre em mente o princípio da proporcionalidade. Afinal, “é melhor dez criminosos à solta que um inocente preso”.

No mais, é preciso aguardar resoluções e decisões dos órgãos internacionais competentes (Conselho de Segurança das Nações Unidas e Tribunal Internacional de Justiça) a respeito das mencionadas práticas, para que então se possa afirmar que a teoria da razão de Estado é reconhecida pela comunidade internacional como motivo de justificação de determinados atos ilícitos, ao menos em relação aos casos que envolvam o terrorismo.

Nota de rodapé:

1. BARBAS HOMEM, António Pedro. História das Relações Internacionais – O Direito e as concepções políticas na Idade Moderna. 1. ed. Lisboa: Almedina, 2003.

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