Efeito inverso

Justiça beneficia classe média se manda estado fornecer remédio

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2 de fevereiro de 2008, 23h01

É cada vez mais comum a primeira e segunda instâncias obrigarem a União, os estados e os municípios a fornecer remédios que não estão incluídos na lista do Sistema Único de Saúde (SUS). O argumento utilizado é o de que o direito à saúde é dever do poder público. Se o Estado se omite, a Justiça age.

A conseqüência dessas decisões é a de que o governo fica obrigado a destinar parte dos recursos reservados à saúde a solicitações individuais, o que compromete o funcionamento do Estado. O poder público se vê no dilema de retirar o remédio de um para garantir o de outro. No Rio de Janeiro, por exemplo, o Executivo chega a usar 20% do dinheiro da Saúde para cumprir liminares.

Por conta deste quadro, a Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro pediu ao advogado constitucionalista Luís Roberto Barroso a elaboração de um estudo sobre o tema. A PGE quer usar os argumentos de Barroso para contestar as decisões da Justiça fluminense. A conclusão é simples. Este tipo de decisão não garante Justiça. Ao contrário: provoca o que Barroso chama de “judicialização excessiva” e “falta de efetividade”.

De acordo com o estudo (clique aqui para ler), quando o juiz determina o fornecimento de um remédio, assume o papel de protagonista na implementação de políticas públicas. E, ao contrário do que se imagina, privilegia os que têm acesso à Justiça por conhecer seus direitos ou por poder arcar com os custos do processo judicial. Assim, a decisão serve mais à classe média que aos pobres. E a exclusão da população carente se aprofunda quando o governo transfere os recursos que usaria em programas institucionalizados para o cumprimento de decisões judiciais, em benefício da classe média.

Barroso explica que o artigo 196 da Constituição Federal deixa claro que a garantia do direito à saúde se dará por políticas sociais e econômicas e não por decisões judiciais. Outro argumento é o de que as decisões “alteram o arranjo institucional concebido pela Constituição Federal” porque mexem com o “desenho institucional” do Estado. Pelo desenho, é o Poder Executivo quem toma decisões nesse campo. Motivo: tem visão global dos recursos disponíveis e das necessidades que precisam ser cumpridas. “Esta foi a opção do constituinte originário ao determinar que o direito à saúde fosse garantido através de políticas sociais e econômicas”, ensina Barroso.

O advogado também afirma que há interferência na “legitimidade democrática”. Neste sistema, a prerrogativa de decidir de que modo os recursos públicos devem ser gastos é do povo, por meio do voto. Os recursos são obtidos por meio de impostos. O povo é quem paga o imposto. Logo, o povo pode, por exemplo, preferir priorizar medidas preventivas de proteção da saúde ou concentrar o dinheiro na educação. “Essas decisões são razoáveis e caberia ao povo tomá-las, diretamente ou por meio de seus representantes eleitos”.

Por fim, Luís Roberto Barroso diz que os juízes não têm conhecimento técnico para instituir políticas de saúde nem para avaliar se determinado medicamento é efetivamente necessário para garantir a saúde e a vida. “Mesmo que instruído por laudos técnicos, seu ponto de vista nunca seria capaz de rivalizar com o a Administração Pública. O juiz é um ator social que observa apenas os casos concretos”, concluiu.

Também não se deve falar de omissão. O advogado explica no estudo que as listas de medicamentos são criadas por estado de acordo com as necessidades e com a possibilidade financeira existente. “Acrescenta-se ainda que os governos têm programas de assistência farmacêutica, que fornece remédios à população a preços módicos”, esclarece.

Doutrina e jurisprudência

Existem poucas decisões judiciais contra o fornecimento de remédios, mas elas servem para elucidar a tese defendida por Barroso. Em 1994, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro negou o pedido de uma paciente com insuficiência renal. O fundamento foi o do alto custo do medicamento e a impossibilidade de privilegiar um doente em detrimento dos outros, bem como a impossibilidade de o Judiciário “imiscuir-se na política de administração pública”.

A ministra Ellen Gracie, presidente do Supremo Tribunal Federal, também já considerou inadequado o fornecimento de medicamento fora da lista do SUS. O entendimento foi firmado em um pedido de Suspensão de Segurança do estado do Rio Grande do Norte. A ministra enfatizou que o governo potiguar não estava se negando à prestar os serviços à saúde e que decisões casuísticas desorganizam a Administração Pública e compromete as políticas de saúde.

Em outra decisão, Ellen Gracie considerou que não se deve confundir direito à saúde com direito a remédio. Ela afirmou que o artigo 196 da Constituição Federal, ao assegurar o direito à saúde, se refere, em princípio, à efetivação de políticas públicas que alcancem a população como um todo, assegurando o acesso universal e igualitário. Não garante situações individualizadas, como o fornecimento de remédios excepcionais e de alto custo que estão fora da lista do SUS.

A mesma orientação existe no Superior Tribunal de Justiça. O ministro Nilson Naves entendeu que se há política nacional de distribuição de remédios, a decisão que obriga a fornecer qualquer espécie de substância fere a independência entre os Poderes e não atende a critérios técnico-científicos.

O caminho

Luís Roberto Barroso disse no estudo que o Judiciário pode ser provocado, por ação coletiva, a rever as listas de medicamentos fornecidos. Se entender que há desvio na avaliação do Poder Público, o juiz pode determinar a inclusão de determinado medicamento na lista.

A revisão, no entanto, tem de ser feita no âmbito das ações coletivas — para defesa de direitos difusos ou coletivos e cuja decisão produza efeitos erga omnes, ou por ações abstratas de constitucionalidade, que discutam a validade das alocações orçamentárias.

Com a ação certa, o Judiciário só poderá determinar a inclusão na lista de medicamentos de eficácia comprovada, excluindo os experimentais e os alternativos. Barroso lembra que o STJ suspendeu liminar em Ação Civil Pública que obrigava o estado de São Paulo a distribuir Interferon Perguilado em vez de Interferon Comum, já fornecido gratuitamente para o tratamento de hepatite.

O STJ entendeu que o novo medicamento, além de custar mais caro, não tinha eficácia comprovada. Afirmou, ainda, que o Judiciário não pode se basear em opiniões médicas minoritárias ou em casos isolados de eficácia do tratamento. “No mesmo sentido, não se justifica decisão que determina a entrega de substâncias como o composto vitamínico cogumelo do sol, que se insiram em terapias alternativas de discutível eficácia”, afirma Barroso.

Ele também sugere que o Judiciário opte por substâncias disponíveis no Brasil e, de preferência, que escolha medicamentos genéricos. E ainda: que considere se o medicamento é indispensável para a manutenção da vida. Por último, Barroso ensina que o ente federativo que deve figurar no pólo passivo da ação judicial é o responsável pela lista da qual consta o medicamento.

“O Judiciário não pode ser menos do que deve ser, deixando de tutelar direitos fundamentais que podem ser promovidos com a sua atuação. De outra parte, não deve querer ser mais do que pode ser, presumindo demais de si mesmo e, a pretexto de promover os direitos fundamentais de uns, causar grave lesão a direitos da mesma natureza de outros tantos. Na frase inspirada de Gilberto Amando, ‘querer ser mais do que se é, é ser menos’”, ensina o advogado.

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