Lei de amparo

Limites da renda familiar e assistencialismo previsto por lei

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31 de janeiro de 2008, 23h00

O assistencialismo é tema em voga no momento atual e merece o exame dos operadores jurídicos. Não se trata propriamente de novidade, vez que desde a positivação dos direitos da fraternidade, qualificados pelos constitucionalistas de terceira vaga, geração ou dimensão, as legislações alhures e a cá consagram a necessidade de prover o mínimo aos desafortunados, aos que não tenha quem os assista, o que fizeram no esteio de uma gama de convenções internacionais firmadas sobre o assunto. Conveio-se, é certo, que a existência humana é um plano que se sustenta mediante socorro mútuo e tais diretivas são tão antigas quanto o mundo, permeando variadas culturas de espectro mais evoluído, seja na dimensão laica, seja mesmo na religiosa.

A Constituição trata, como não se conceberia diverso, da dignidade da pessoa a fundamento (artigo 1º), e enumera objetivos de mais pura solidariedade em seu terceiro artigo, delineando, no âmbito da seguridade social, as fincas de um sistema beneficente (artigo. 203/4). A desincumbir-se de tal elevado mister (artigo 6º da CRFB), o poder público, todas as suas órbitas (artigo 23, II, da Constituição Federal), deve observar uma diretiva básica no sentido do custeio do sistema assistencial, a saber, que o dinheiro da seguridade não pode ser imiscuído quando da elaboração das peças orçamentárias (CF, artigo 165, 5º parágrafo, inciso III, c/c a cabeça do artigo 195, seu 1º parágrafo, e artigo 204), devendo existir, inclusive, vinculação a fundo próprio das contribuições eventualmente criadas em lei.

Outrossim, e já na quadra da sociedade civil, o constituinte comprometeu empresas, equiparados, trabalhadores, apostadores em jogos autorizados, e importadores, o extrato gerador de riqueza, enfim, a cooperar para a viabilidade financeira da assistência (artigo 195), ao mesmo tempo em que imunizou as entidades benemerentes da incidência de quaisquer impostos (artigo 150, VI, ‘c’, regulamentado no CTN e na LCSS).

Para o interesse deste escrito, debruçamo-nos sobre um dos específicos modos de prover assistência[1], aquele de estatura constitucional e garantido no artigo 203, V, da CF, verbis[2]:

“Artigo 203: A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos V — a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei”.

À míngua da plena eficácia, aguardou-se até o ano de 1993[3], precisamente até 7 de dezembro daquele exercício, para que o legislador constituído regulamentasse a garantia do salário mínimo aos portadores de deficiência e aos anciãos, o que acabou por fazer com a edição da Lei 8.742/93 e depois do acertamento no novo regime previdenciário brasileiro (Leis 8.212/91 e 8.213/91), o qual, é bem verdade, já assegurava benefício assemelhado destinado a viger exatamente até o advento da regulamentação do artigo 203, V (Renda Mensal Vitalícia — artigo 139 da Lei 8.213/91, revogado pela Lei 9.528/97).

Assim é que, desde então, os não assistidos financeiramente, reunindo as condições de (a) portador de deficiência, ou de (b) maior de 65 anos (no comando atual do Estatuto do Idoso), fazem jus à percepção de um salário mínimo mensal, prestado pelo INSS, e suportado pelo orçamento da seguridade, contanto que não acumulem qualquer outra mercê de feição previdenciária, e que persistam na condição de necessitados (a lei determina a revisão da prestação a cada dois anos, a fim de avaliar-se a continuidade do quadro fático gerador — artigo 21 da Lei 8.742/93).

Pois bem, rendeu, e ainda rende as mais inflamadas discussões[4], justamente o trabalho franqueado à seara ordinária de regulamentar o que seja o alcance da necessidade para fins do artigo 203, V, e da Lei 8.742/03, é dizer, quem faz, e quem não faz jus, ao salário mínimo. Eis aqui o ponto de nossa indagação. No particular, e segundo a lei vigente, artigo 20, 3º parágrafo, considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa à família cuja renda mensal per capita seja inferior a um quarto do salário mínimo.

Tem-se, assim, que a representação popular eleita, na altaneira tarefa de aquilatar o público-alvo do benefício, definiu, dentre a pletora de critérios possíveis, que o necessitado economicamente seria o ancião e o portador de deficiência cuja família, em existindo a mesma, não percebesse, por cabeça, mais que a quarta parte do salário mínimo. Este fato, ao sentir de muitos, divorciou-se da real amplitude da assistência, tachando-se o trabalho de regulamentação de inconstitucional, o que não tardou a motivar a Procuradoria-Geral da República a ajuizar a ação direta de 1.232 perante o Supremo Tribunal Federal, julgada improcedente ainda no distante 27 de agosto de 1998.


A norma, na abstração que lhe é imanente, elegeu um dado parâmetro haurido do mundo fático para caracterizar a necessidade, e nisso não houve maneira de o STF, em sua maioria, entender inconstitucional a limitação à quarta parte do salário por cabeça[5]. Como corolário, não há de ser qualificado de irregular o exame que a autarquia concedente faz dos requerimentos administrativos, negando-os sempre que constata a superação do critério legal. Tal é o que dimana das insistidas reclamações a que o STF dá procedência contra decisões que recusam autoridade ao julgado da ADI 1.232. Veja-se:

“Previdência Social. Benefício assistencial. Lei 8.742/93. Necessitado. Deficiente físico. Renda familiar mensal per capita. Valor superior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo. Concessão da verba. Inadmissibilidade. Ofensa à autoridade da decisão proferida na ADI 1.232. Liminar deferida em reclamação. Agravo improvido. Ofende a autoridade do acórdão do Supremo na ADI 1.232, a decisão que concede benefício assistencial a necessitado, cuja renda mensal familiar per capita supere o limite estabelecido pelo 3º parágrafo do artigo 20 da Lei Federal 8.742/93." (Rcl 4.427-MC-AgR, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 6-6-07, DJ de 29-6-07)”.

Todavia, o certo é que não se resignaram instâncias judiciárias locais, e isto claramente se extrai do repositório de decisões que dão pela possibilidade de examinar-se em juízo a necessidade no caso concreto, especialmente à luz da proporcionalidade/razoabilidade. Cito recente julgado do STJ:

A Turma deu provimento ao recurso para conceder ao autor, a partir da citação, o benefício de prestação continuada. Note-se que a 3ª Seção deste Superior Tribunal consolidou o entendimento de que o critério de aferição da renda mensal previsto no 3º parágrafo do artigo 20 da Lei 8.742/93 deve ser tido como um limite mínimo, um quantum considerado insatisfatório à subsistência da pessoa portadora de deficiência ou idosa, não impedindo, contudo, que o julgador faça uso de outros elementos probatórios, desde que aptos a comprovar a condição de miserabilidade da parte e de sua família.

Precedentes citados do STF: AgRg no Ag 470.975-SP, DJ 18/12/2006; Rcl 4.374-PE, DJ 6/2/2007; do STJ: AgRg no REsp 868.590-SP, DJ 5/2/2007; AgRg no REsp 835.439-SP, DJ 9/10/2006, e REsp 756.119-MS, DJ 14/11/2005. REsp 841.060-SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 12 de junho de 2007.

Instaurou-se, assim, uma clara dissonância entre a Suprema Corte e as Instâncias Judiciárias a quo: a primeira, irredutível em que a proporcionalidade não se aplica ao caso, dando procedência às reclamações formuladas pelo instituto securitário (CF, artigo 102, I, ‘l’); as segundas, fortes em técnicas modernas do constitucionalismo, examinando a necessidade no amiúde, mesmo pós o julgamento da constitucionalidade do artigo 20, 3º parágrafo, da Lei 8.742/93.

Com efeito, ensina a doutrina especializada que (1) uma lei pode ser abstratamente constitucional, mas, no caso concreto, pode ser tida como inconstitucional; (2) que a lei pode ser constitucional no presente (quando submetida ao julgamento, entenda-se), e no futuro pode ser tida por inconstitucional, bem assim que (3) é possível reconhecer-se a dupla revisão judicial, possibilitando às instâncias inferiores, mesmo depois do pronunciamento do tribunal constitucional, conhecer da norma no caso concreto (via difusa), calcada no princípio da proporcionalidade.

Este, portanto, o intrincado panorama atual da questão. Pensamos, e isto há de ficar claro, que todos os agentes envolvidos atuam com acerto. Justifico.

O legislador, a quem foi dada à incumbência de concretizar a diretriz constitucional, produziu norma hígida e consentânea com o arcabouço legal vigente. Com efeito, ao tomar por parâmetros a expressão do salário de subsistência (artigo 7º, IV, CRFB), e a realidade familiar brasileira que indica a composição do casal e dois filhos, editou lei em atenção aos dogmas da abstração e da generalidade, sendo, nisto, imune a reprovas. Não incidiremos no equívoco, perceba-se, de sugerir que o critério legal foi inadequado; opinião é dado a todos ter, e é exatamente como catalisador das mesmas que funciona o parlamento, devendo no bojo deste, portanto, processarem-se discussões que tais, seja para aumento do critério abstrato, seja para a sua restrição, em que pese a dificuldade de conceber-se a última hipótese (retrocesso). Debatemos aqui tão-somente critérios de validade jurídica.

Outrossim, o e. STF, ao desatar provocação originada na PGR, igualmente jungiu-se a examinar o diploma inquinado à luz da supremacia da Carta, nada tendo a objetar quanto à regulamentação providenciada pelo legislador ordinário. Suponhamos, para lucubrar, que a augusta corte tivesse extirpado do ordenamento o parágrafo 3º, do art. 20, da Lei 8.742/93 (ou mesmo que fosse hoje revogado), deixando a cargo da cabeça do artigo a regência do tema, hipótese em que haveria a pura repetição do texto do art. 203, V, da CF.


Ainda que haja resistências no pensamento jurídico majoritário, afirmo, sem maiores dúvidas, que, a um só tempo, tanto a atividade do instituto concessor seria inviabilizada (não dispõe de estrutura e contingente de serviço social para examinar a necessidade de todos os que lhe requeressem a mercê), como estaria aberta uma via confortável para o desvirtuamento, pois o casuísmo tem mais difícil controle. Perfilho-me, assim, dentre aqueles que concordam com a constitucionalidade da norma, e, mais que isso, reconhecem-lhe, inteiro acerto factual, repetindo o que disse acima: se há alguma mudança a ser operada no critério, por força da mutação das condições sociais, que seja feita na via legislativa, adequada a tanto.

Quanto ao INSS, e por simples decorrência, nenhuma pecha de ilegalidade há de ser afligida nos casos em que recusa a prestação quando constata o extravasamento da renda per capita qualificada em lei.

Por fim, o judiciário federal identicamente age com acerto ao reconhecer que a necessidade é algo que o demandante pode comprovar no caso concreto, mesmo em se tratando de um núcleo de viventes cuja renda não se enquadre no permissivo do artigo 20, 3º parágrafo, da LOAS. Para que assim o faça, realmente não precisa desrespeitar a autoridade da decisão do Supremo Tribunal, pois este, como pretendemos já ter deixado claro, pronunciou-se em controle abstrato de constitucionalidade, e a norma realmente não apresentava qualquer de sintonia com o ordenamento. Situação muito diversa seria aquela em que a lei, julgada inconstitucional e aniquilada do sistema, ainda fosse aplicada por eventual recalcitrante.

Não vemos nisso, com a vênia de quem pensa o contrário, qualquer julgamento contrário à lei, pois casos há em que um núcleo familiar percebe mais que o salário mínimo, e despende, contudo, a majoritária parte dos ganhos com a provisão de criança deficiente. Basta atentar às máximas do mundo como ele é para saber-se que, não fosse suficiente a própria condição debilitada dos destinatários do texto constitucional (artigo 203, V), ainda são requeridos gastos de vulto para com essas pessoas.

Pergunta-se, então, qual seria a solução para o paradoxo estabelecido. Esta é uma resposta, tenho muito comigo, que cabe à representação popular apresentar, em percepção dos anseios do extrato social (para tanto foi investida no mandato democrático), e em vista do quadro instaurado nos meios administrativos e nos judiciários. Não há pensar-se que estes últimos agentes, por mais vontade de que disponham, estão habilitados a medidas gerais e eficientes na seara assistencial, pois as dimensões da empreitada o desaconselham. É o caso de debater-se, da forma mais ampla possível, se o benefício, como posto, cumpre as finalidades beneficentes propostas pela Constituição.

Neste particular, bem se atente, poderá haver todo tipo de opiniões, dentre elas, e como antípodas, (a) as que julgam a mercê sobreposta a outras prestações da assistência, (b) confrontando aquelas que clamam pela ampliação do benefício. Particularmente, fiel aos ensinamentos aristotélicos sobre o meio-termo, temos que a virtude deva estar em algum lugar entre esses extremos, e a paulatina marcha da civilidade há de indicar as futuras feições do benefício assistencial em comento.


[1] Há inúmeros outros. Exemplifico: Programas do Bolsa-Família (Lei 10.836/04) , Benefício de Renda Mínima da Cidadania, Auxílios-Funeral e Natalidade prestados por Estados e Municípios (Lei 8.742/93), et alii.

[2] Por razões didáticas, não integrará o objeto deste trabalho tratar da possível superposição de benefícios financeiros, bastando, neste particular, deixar claro que a legislação a permite expressamente, inclusive determina que a percepção de uns não seja considerada para o cálculo de outros (cf. Lei 10.741/03)

[3] "Embargos recebidos para explicitar que o inc. V do art. 203 da CF tornou-se de eficácia plena com o advento da Lei 8.742/93." (RE 214.427-AgR-ED-ED, Rel. Min. Nelson Jobim, julgamento em 21-8-01, DJ de 5-10-01) "Previdenciário. Renda Mensal Vitalícia. Art. 203, V, da Constituição Federal. Dispositivo não auto-aplicável, eficácia após edição da Lei 8.742, de 7-12-93." (RE 401.127-ED, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 30-11-04, DJ de 17-12-04)

[4] Inclusive no âmbito da Corte Suprema. Atente-se para aresto recente: "É constitucional a insuficiência tarifada do § 3º do artigo 20 da Lei n. 8.742/93 — visão da ilustrada maioria, em relação a qual guardo reserva, proclamada no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.232-1/DF." (AI 473.378-AgR, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 26-4-07, DJ de 24-8-07)

[5] "Impugna dispositivo de lei federal que estabelece o critério para receber o benefício do inciso V do art. 203, da CF. Inexiste a restrição alegada em face ao próprio dispositivo constitucional que reporta à lei para fixar os critérios de garantia do benefício de salário mínimo à pessoa portadora de deficiência física e ao idoso. Esta lei traz hipótese objetiva de prestação assistencial do Estado." (ADI 1.232, Rel. p/ o ac. Min. Nelson Jobim, julgamento em 27-8-98, DJ de 1-6-01)

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