Retrospectiva 2008

Projeto de cibercrimes e CPI da Pedofilia marcaram o ano

Autor

  • Omar Kaminski

    é advogado e consultor gestor do Observatório do Marco Civil da Internet membro especialista da Câmara de Segurança e Direitos do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) e diretor de Internet da Comissão de Assuntos Culturais e Propriedade Intelectual da OAB-PR.

27 de dezembro de 2008, 23h00

Este texto sobre Direito e Tecnologia faz parte da Retrospectiva 2008, série de artigos em que são analisados os principais fatos e eventos nas diferentes áreas do direito e esferas da Justiça ocorridos no ano que termina.

O tema cibercrimes, ou crimes informáticos, dominou o noticiário no ano de 2008. O chamado Projeto Azeredo, que estabelece 14 novos tipos penais, foi aprovado no Senado em julho e encaminhado à Câmara para revisão, na qual foi realizada mais uma audiência pública bastante concorrida, sustentada por abaixo-assinados realizados por meio da internet, um deles com mais de 100 mil nomes. Segue tramitando em regime de urgência.

Sobre a questão, formaram-se duas correntes bem delimitadas. De um lado, aqueles que defendem a atualização do Código Penal, entendendo como indispensável a criação de novos tipos penais. De outro, os que entendem haver exageros, que pequenos ajustes seriam suficientes, além do potencial de invasão da privacidade, intenções controladoras e ameaças às garantias individuais.

Como nos anos anteriores, a legislação em vigor ocasionou a condenação de vários acusados por fraudes bancárias, por exemplo, que parece ser uma das maiores preocupações, além dos tradicionais crimes contra a honra. Mas ninguém foi preso pela disseminação e criação de vírus (agora chamados de “código malicioso”) ou por ataque DDoS, um ilustre desconhecido dos juristas mesmo diante de seu devastador potencial.

Enquanto isso, o Itamaraty ainda estuda a adesão do Brasil à Convenção de Budapeste do Conselho da Europa (2001) sobre cibercrimes. Formalmente, o país nem sequer foi convidado a integrá-la.

CPI da Pedofilia

No meio desse fogo cruzado, o senador capixaba Magno Malta conseguiu a criação de uma CPI da Pedofilia, que acabou por determinar, inicialmente, a abertura de 3.261 álbuns de fotos suspeitas no Orkut. Em seguida, intimou o Google a assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) por intermédio do Ministério Público Federal e culminou na apresentação de dois projetos de lei, um deles, aprovado como a Lei 11.829/08, deu nova redação a artigos específicos do Estatuto da Criança e do Adolescente. Sendo que alguns desses artigos já haviam sido modificados por meio da Lei 10.764/03.

Outro projeto da CPI, mais recente, pretende “disciplinar a forma, os prazos e os meios de preservação e transferência de dados informáticos mantidos por fornecedores de serviço a autoridades públicas, para fins de investigação de crimes praticados contra crianças e adolescentes, e dar outras providências”.

Também sob a égide da CPI da Pedofilia, empresas de telecomunicação e provedores foram instados a assinar recentemente um termo de cooperação para “dar maior celeridade” ao fornecimento de dados sobre pedófilos que atuam na internet, quando estes forem solicitados pela Justiça e autoridades policiais.

Conforme o acordo, as informações sobre pessoa investigada por crime praticado pela internet contra criança e adolescente deverão ser fornecidas em até três dias pelas empresas signatárias, mediante requisição feita por autoridade policial ou judicial. Esse prazo de transferência dos dados cai para 24 horas quando houver risco à vida dos menores e para duas horas quando se configurar risco iminente à vida de crianças e adolescentes.

Ao que parece, as redes acadêmicas foram esquecidas ou ignoradas e não se levou em consideração a possibilidade de armazenamento do material criminoso em servidores no exterior, com empresas sem sede no país. Mas o mais preocupante é a possível instituição de “grampos eletrônicos” dissonantes do devido processo legal.


Google, Orkut e YouTube

O Google Brasil, por meio de seus serviços bem como os seus Orkut e YouTube, foi alvo de inúmeras demandas judiciais: foi obrigado a tirar do ar as comunidades do Orkut que ofendiam Edir Macedo; foi processado por Preta Gil por associá-la ao termo atriz gorda; foi condenado a indenizar mulher chamada de caloteira no Orkut; também por permitir perfil falso no Orkut; o TJ paulista proibiu a exibição do vídeo de Cicarelli no YouTube; advogado de SC foi preso por falsificar perfil no Orkut; autora de ofensa no Orkut só foi localizada após três anos; pais foram condenados por ofensas feitas pelos filhos no Orkut; entre vários outros casos.

Em termos amplos, a problemática se instaura quando a prestação jurisdicional acaba por ameaçar todo um serviço ou esbarra em impossibilidades técnicas, como aconteceu com o serviço de hospedagem de blogs WordPress.com. Tal como o caso Cicarelli, um juiz de primeiro grau determinou que todos os provedores que atuam no país deveriam bloquear o wordpress.com por causa de apenas um blog específico, acusado de publicar mensagens criminosas. E ainda há o caso do site Twitter Brasil, tirado do ar “por engano” por ser homônimo do site de microblogs Twitter.

Eleições e internet

O artigo 18 da Resolução 22.718 do TSE previu que só seriam permitidas propagandas eleitorais na internet em página do candidato destinada exclusivamente à campanha eleitoral. Tal resolução foi alvo de Mandado de Segurança por parte de um dos grandes portais de internet brasileiros, que entendeu que “além de não permitir que os candidatos façam campanha com ferramentas como Orkut, YouTube, e-mails e mensagem de celular, proíbe a venda de espaços publicitários na internet”. O ministro relator entendeu não haver violação a direito líquido e certo e negou seguimento ao mandado.

A um mês das eleições, um levantamento demonstrou que os TREs têm adotado entendimentos distintos sobre o que é permitido ou não na rede, e o TSE, por sua vez, resolveu se manifestar apenas nos casos concretos que lhe chegarem.

E sob a justificativa de maior transparência (esperamos), o software proprietário Microsoft Windows foi substituído por software livre nas urnas eletrônicas.

Videoconferência

Em maio, a 6ª Turma do STJ anulou um tele-interrogatório já realizado, por entender que não é possível preterir a presença de juiz e acusado frente a frente.

No mês seguinte, foi promulgada a Lei 11.690/08, que alterou dispositivos relativos à prova no Código de Processo Penal, prevendo em seu artigo 217 que, “se o juiz verificar que a presença do réu poderá causar humilhação, temor, ou sério constrangimento à testemunha ou ao ofendido, de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará a inquirição por videoconferência (…)”.

Em outubro, o STF julgou inconstitucional a Lei estadual 11.819/05, de São Paulo, que autorizava o interrogatório de réus por videoconferência. Por maioria de votos, a corte entendeu que a lei afronta a Constituição ao disciplinar matéria de processo penal, de competência federal. A OAB-SP comemorou a decisão, estimulando os advogados de réus que passaram pelo interrogatório à distância a pedirem a anulação dos julgamentos.

Apesar disso, uma lei federal específica para regulamentar a questão está prestes a ser sancionada. A videoconferência só poderá ser utilizada em casos excepcionais: quando houver risco à segurança pública, no caso de réu que comprovadamente integre organização criminosa, por exemplo; ou quando houver dificuldade para que o réu compareça em juízo. A proposta também preserva o direito de o réu conversar previamente com seu defensor por canais reservados de comunicação.


Outras questões

A questão da violência nos videogames foi também bastante discutida, culminando na proibição de comercialização e apreensão de jogos famosos (e antigos em termos de internet) como o Counter-Strike e Everquest, e mais novos, como o Bully, praticamente desconhecido no Brasil.

O uso indevido de email corporativo continua sendo motivo para justa causa, conforme demonstraram algumas decisões também em 2008.

Pessoa física poderá usar registro de domínio com.br, até então limitado a pessoas jurídicas portadoras de CNPJ. O Brasil vai fechar o ano com mais de 1,5 milhão de domínios .br. Além disso, a arbitragem vem sendo estudada para a resolução de disputas de domínios nacionais, buscando estabelecer um procedimento padrão para os casos em que duas entidades apresentam interesse em um mesmo domínio.

Os novos rumos dos direitos autorais foram debatidos em um fórum nacional promovido pelo Ministério da Cultura, com eventos em diversos estados. Discussões sobre cópia privada, plágio, pirataria e mecanismos anticópia, entre outras, tiveram lugar.

A TV digital completou um ano de atividades no Brasil ainda sem dizer a que veio. Atingiu, por enquanto, menos de 1% dos lares. A promessa de interatividade continua sendo apenas uma promessa.

Informática jurídica

No âmbito da informática jurídica, os tribunais vêm aperfeiçoando seus sistemas em busca de padronização. O CNJ determina a adoção do domínio jus.br, que irá substituir o gov.br no âmbito do Judiciário; pedidos de sustentação oral no TST podem ser feitos pela internet; a Justiça do Trabalho anuncia mais de 90% de informatização e começa a unificar seus sistemas de informática; o Diário da Justiça Eletrônico será o único veículo oficial do STJ; TRF-2 já pode enviar Recurso Extraordinário digital; TST regulamenta depósitos judiciais pela internet; Justiça Federal adota processo virtual em mais de 25% da demanda; OAB e CNJ firmam parceria para processo eletrônico; pane informática força a suspensão de prazos por tribunais de SP; CNJ define metas para informatização integral da Justiça; CJF consolida Resolução sobre intimação eletrônica; acordo entre CNJ e Banco Central evita uso de papel por juízes; entre outras situações.

Advocacia online

Com tantas discussões sobre grampo em 2008, importante citar também a sanção da Lei 11.767/08, que coloca como direito dos advogados a “inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia”.

Ferramenta do processo eletrônico, a certificação digital dos advogados, então uma promessa enquanto houve insistência na manutenção de uma Infra-Estrutura de Chaves Públicas própria (a ICP-OAB), enfim tomou corpo por meio da Autoridade Certificadora da OAB (AC-OAB), vinculada a Autoridade de Registro (AR) Certisign.

Uma das questões que ainda permanecem em aberto diz respeito ao uso da assinatura digital aliada à criptografia para o contato com clientes. Não fosse só isso, as seccionais da OAB terão um árduo trabalho para catequizar os causídicos no uso da novidade, que será gravada no chip da nova carteira de identificação e custará R$ 80 para os primeiros 2 mil advogados interessados, fora o custo do leitor.

Por fim, considerando que a tecnologia e a internet estão cada vez mais envolvidas com o Direito, num casamento praticamente indissolúvel — queira-se ou não a certificação digital será a cereja do bolo para a justiça 2.0, mais célere e com menos papel. E nesse ritmo, em poucos anos talvez possamos até votar pela internet. Quem viver verá.

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    é advogado, diretor de Internet do Instituto Brasileiro de Política e Direito da Informática (IBDI) e membro suplente do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).

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