Excesso legislativo

É inconstitucional proibir liberdade provisória, diz Celso de Mello

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26 de dezembro de 2008, 10h42

 

Mesmo com a Lei de Drogas (11.343/06) prevendo o contrário, o acusado de tráfico de entorpecentes tem direito a liberdade provisória. Proibir a concessão da liberdade, como fez o artigo 44 da lei, é ofender os princípios constitucionais da presunção de inocência, da dignidade da pessoa humana e da proporcionalidade. Por isso, o dispositivo é inconstitucional.

 

 

 

 

 

A conclusão é do ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, ao analisar pedido de liminar em Habeas Corpus ajuizado contra decisão do Superior Tribunal de Justiça, que manteve o decreto de prisão contra uma acusada de tráfico de drogas. O STJ afirmou que o inciso XLIII do artigo 5º da Constituição Federal estabelece que o tráfico de entorpecentes constitui crime inafiançável e não é possível dar liberdade para alguém acusado de um crime inafiançável.

 

 

 

 

 

O STJ também considerou que tráfico de drogas é considerado crime hediondo, o que justificaria, mais uma vez, o indeferimento da liberdade provisória. Além disso, a Lei 11.343/06 deixa claro que não há liberdade para o acusado de tráfico de entorpecentes.

 

 

 

 

 

No Supremo Tribunal Federal, o entendimento foi outro. O ministro Celso de Mello lembrou que a corte já considerou inconstitucional artigo de lei com conteúdo idêntico ao da Lei de Drogas. Trata-se do artigo 21 do Estatuto do Desarmamento, que proibia a liberdade provisória para os acusados de porte ou posse ilegal de arma de fogo de urso permitido ou restrito e para o acusado de disparo de arma de fogo. A norma foi declarada inconstitucional na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.112, relatada pelo ministro Ricardo Lewandowski.

 

 

 

 

 

“Essa vedação apriorística de concessão de liberdade provisória, reiterada no artigo 44 da Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas), tem sido repelida pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que a considera incompatível, independentemente da gravidade objetiva do delito, com a presunção de inocência e a garantia do due process, dentre outros princípios consagrados pela Constituição da República”, ressaltou Celso de Mello.

 

 

 

 

 

A mesma situação está registrada no artigo 7º da Lei do Crime Organizado (Lei 9.037/95). O artigo prevê que “não será concedida liberdade provisória, com ou sem fiança, aos agentes que tenham tido intensa e efetiva participação na organização criminosa”.

 

 

 

 

 

Para o ministro Celso de Mello, leis como estas mostram que o poder público, principalmente no processo penal, age “imoderadamente” por não observar o princípio da razoabilidade. “A exigência de razoabilidade traduz limitação material à ação normativa do Poder Legislativo. O exame da adequação de determinado ato estatal ao princípio da proporcionalidade, exatamente por viabilizar o controle de sua razoabilidade, inclui-se, por isso mesmo, no âmbito da própria fiscalização de constitucionalidade das prescrições normativas emanadas do poder público. Esse entendimento é prestigiado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, por mais de uma vez, já advertiu que o Legislativo não pode atuar de maneira imoderada, nem formular regras legais cujo conteúdo revele deliberação absolutamente divorciada dos padrões de razoabilidade.”


 

 

 

 

 

“O princípio da proporcionalidade visa a inibir e a neutralizar o abuso do poder público no exercício das funções que lhe são inerentes, notadamente no desempenho da atividade de caráter legislativo. Dentro dessa perspectiva, o postulado em questão, enquanto categoria fundamental de limitação dos excessos emanados do Estado, atua como verdadeiro parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais. Isso significa que o Estado não dispõe de competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal”, alertou Celso do Mello.

 

 

 

 

 

Segundo o ministro, o Supremo Tribunal Federal tem censurado a validade jurídica de atos estatais “que, desconsiderando as limitações que incidem sobre o poder normativo do Estado, veiculam prescrições que ofendem os padrões de razoabilidade e que se revelam destituídas de causa legítima, exteriorizando abusos inaceitáveis e institucionalizando agravos inúteis e nocivos aos direitos da pessoa”.

 

 

 

 

 

“Daí a advertência de que a interdição legal in abstracto, vedatória da concessão de liberdade provisória, como na hipótese prevista no artigo 44 da Lei 11.343/06, incide na mesma censura que o Plenário do Supremo Tribunal Federal estendeu ao artigo 21 do Estatuto do Desarmamento, considerados os múltiplos postulados constitucionais violados por semelhante regra legal, eis que o legislador não pode substituir-se ao juiz na aferição da existência, ou não, de situação configuradora da necessidade de utilização, em cada situação concreta, do instrumento de tutela cautelar penal”, concluiu o ministro.

 

 

 

 

 

Celso de Mello acolheu o pedido de liminar para colocar a acusado em liberdade, de acordo com a jurisprudência que o Supremo Tribunal Federal firmou em tema de prisão cautelar. A decisão vale até o resultado do julgamento do mérito do pedido de HC.

 

 

Leia o voto

 

MED. CAUT. EM HABEAS CORPUS 96.715-9 SÃO PAULO

 

 

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

 

 

PACIENTE(S): LIDIONICE ALVES DOS SANTOS

 

 

IMPETRANTE(S): WAGNER PAULO DA COSTA FRANCISCO E OUTRO(A/S)


 

 

COATOR(A/S)(ES): SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

 

 

 

 

 

EMENTA: “HABEAS CORPUS”. VEDAÇÃO LEGAL ABSOLUTA, EM CARÁTER APRIORÍSTICO, DA CONCESSÃO DE LIBERDADE PROVISÓRIA. LEI DE DROGAS (ART. 44). INCONSTITUCIONALIDADE. OFENSA AOS POSTULADOS CONSTITUCIONAIS DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA, DO “DUE PROCESS OF LAW”, DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA PROPORCIONALIDADE. O SIGNIFICADO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE, VISTO SOB A PERSPECTIVA DA “PROIBIÇÃO DO EXCESSO: FATOR DE CONTENÇÃO E CONFORMAÇÃO DA PRÓPRIA ATIVIDADE NORMATIVA DO ESTADO. PRECEDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: ADI 3.112/DF (ESTATUTO DO DESARMAMENTO, ART. 21). CARÁTER EXTRAORDINÁRIO DA PRIVAÇÃO CAUTELAR DA LIBERDADE INDIVIDUAL. NÃO SE DECRETA PRISÃO CAUTELAR, SEM QUE HAJA REAL NECESSIDADE DE SUA EFETIVAÇÃO, SOB PENA DE OFENSA AO “STATUS LIBERTATIS” DAQUELE QUE A SOFRE. EVASÃO DO DISTRITO DA CULPA: FATOR QUE, POR SI , NÃO AUTORIZA A PRISÃO PREVENTIVA. IRRELEVÂNCIA, PARA EFEITO DE CONTROLE DA LEGALIDADE DO DECRETO DE PRISÃO CAUTELAR, DE EVENTUAL REFORÇO DE ARGUMENTAÇÃO ACRESCIDO POR TRIBUNAIS DE JURISDIÇÃO SUPERIOR.  PRECEDENTES. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.

 

 

DECISÃO: Trata-se de “habeas corpus”, com pedido de medida liminar, impetrado contra decisão, que, emanada do E. Superior Tribunal de Justiça, restou consubstanciada em acórdão assim ementado (fls. 255):

 

 

PROCESSUAL PENAL. ‘HABEAS CORPUS’. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. PRISÃO EM FLAGRANTE. LIBERDADE PROVISÓRIA. VEDAÇÃO LEGAL. CONDIÇÕES PESSOAIS FAVORÁVEIS. IRRELEVÂNCIA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO-CONFIGURADO. ORDEM DENEGADA.

 

 

1. O inciso XLIII do art. 5º da Constituição Federal estabelece que o tráfico ilícito de entorpecentes constitui crime inafiançável.

 

 

2. Não sendo possível a concessão de liberdade provisória com fiança, com maior razão é a não-concessão de liberdade provisória sem fiança.


 

 

3. A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça consolidou o entendimento de que a vedação imposta pelo art. 2º, II, da Lei 8.072/90 é fundamento suficiente para o indeferimento da liberdade provisória (HC 76.779/MT, Rel. Min. FELIX FISCHER, DJ de 4/4/08).

 

 

4. A Lei 11.343/06, expressamente, fez constar que o delito de tráfico de drogas é insuscetível de liberdade provisória.

 

 

5. Conforme pacífico magistério jurisprudencial, eventuais condições pessoais favoráveis à paciente – tais como primariedade, bons antecedentes, endereço certo, família constituída ou profissão lícita – não garantem o direito à revogação da custódia cautelar, quando presentes os requisitos previstos no art. 312 do Código de Processo Penal.

 

 

6. Ordem denegada.

 

 

(HC 113.558/SP, Rel. Min. ARNALDO ESTEVES LIMA – grifei)

 

 

 

 

O E. Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o pedido de “habeas corpus”, justificou a medida excepcional da prisão cautelar ora questionada, dentre outros argumentos, sob o de que(…) a Lei 11.343/06, expressamente, fez constar que o delito de tráfico de drogas é insuscetível de liberdade provisória (…)” (grifei).

 

Sendo esse o contexto, passo a apreciar o pedido de medida liminar.

 

E, ao fazê-lo, observo que os elementos produzidos nesta sede processual revelam-se suficientes para justificar, na espécie, a meu juízo, o acolhimento da pretensão cautelar deduzida pelos ora impetrantes, eis que concorrem, no caso, os requisitos autorizadores da concessão da medida em causa.


 

 

 

 

Mostra-se importante ter presente, no caso, quanto à Lei nº 11.343/2006, que o seu art. 44 proíbe, de modo abstrato ea riori”, a concessão da liberdade provisória noscrimes previstos nos art. 33, ‘caput’ e § 1º e 34 a 37 desta Lei”.

 

 

 

 

 

Cabe assinalar que eminentes penalistas, examinando o art. 44 da Lei nº 11.343/2006, sustentam a inconstitucionalidade da vedação legal à liberdade provisória prevista em mencionado dispositivo legal (ROGÉRIO SANCHES CUNHA, “Da Repressão à Produção Não Autorizada e ao Tráfico Ilícito de Drogas”, “in” LUIZ FLÁVIO GOMES (Coord.), “Lei de Drogas Comentada”, p. 232/233, item n. 5, 2ª ed., 2007, RT”; FLÁVIO OLIVEIRA LUCAS, “Crimes de Uso Indevido, Produção Não Autorizada e Tráfico Ilícito de Drogas – Comentários à Parte Penal da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, “in” MARCELLO GRANADO (Coord.), “A Nova Lei Antidrogas: Teoria, Crítica e Comentários à Lei nº 11.343/06”, p. 113/114, 2006, Editora Impetus”; FRANCIS RAFAEL BECK, “A Lei de Drogas e o Surgimento de Crimes ‘Supra-hediondos’: uma necessária análise acerca da aplicabilidade do artigo 44 da Lei nº 11.343/06”, “in” ANDRÉ LUÍS CALLEGARI e MIGUEL TEDESCO WEDY (Org.), “Lei de Drogas: aspectos polêmicos à luz da dogmática penal e da política criminal”, p. 161/168, item n. 3, 2008, Livraria do Advogado Editora”, v.g.).

 

 

 

 

 

Cumpre observar, ainda, por necessário, que regra legal, de conteúdo material virtualmente idêntico ao do preceito em exame, consubstanciada no art. 21 da Lei nº 10.826/2003, foi declarada inconstitucional por esta Suprema Corte.

 

 

 

 

 

A regra legal ora mencionada, cuja inconstitucionalidade foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, inscrita no Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/2003), tinha a seguinte redação:

 

 

 

 

 

Art. 21. Os crimes previstos nos arts. 16, 17 e 18 são insuscetíveis de liberdade provisória.” (grifei)

 

 

 

 

 

Essa vedação apriorística de concessão de liberdade provisória, reiterada no art. 44 da Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas), tem sido repelida pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que a considera incompatível, independentemente da gravidade objetiva do delito, com a presunção de inocência e a garantia do “due process”, dentre outros princípios consagrados pela Constituição da República.


 

 

 

 

 

Foi por tal razão, como precedentemente referido, que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI 3.112/DF, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, declarou a inconstitucionalidade do art. 21 da Lei nº 10.826/2003, (Estatuto do Desarmamento), em decisão que, no ponto, está assim ementada:

 

 

 

 

 

(…) VInsusceptibilidade de liberdade provisória quanto aos delitos elencados nos arts. 16, 17 e 18. Inconstitucionalidade reconhecida, visto que o texto magno não autoriza a prisão ‘ex lege’, em face dos princípios da presunção de inocência e da obrigatoriedade de fundamentação dos mandados de prisão pela autoridade judiciária competente.” (grifei)

 

 

 

 

 

Essa mesma situação registra-se em relação ao art. 7º da Lei do Crime Organizado (Lei nº 9.034/95), cujo teor normativo também reproduz a mesma proibição que o art. 44 da Lei de Drogas estabeleceu, “a priori”, em caráter abstrato, a impedir, desse modo, que o magistrado atue, com autonomia, no exame da pretensão de deferimento da liberdade provisória.

 

 

 

 

 

Essa repulsa a preceitos legais, como esses que venho de referir, encontra apoio em autorizado magistério doutrinário (LUIZ FLÁVIO GOMES, em obra escrita com Raúl Cervini, “Crime Organizado”, p. 171/178, item n. 4, 2ª ed., 1997, RT; GERALDO PRADO e WILLIAM DOUGLAS, “Comentários à Lei contra o Crime Organizado”, p. 87/91, 1995, Del Rey; ROBERTO DELMANTO JUNIOR, “As modalidades de prisão provisória e seu prazo de duração”, p. 142/150, item n. 2, “c”, 2ª ed., 2001, Renovar e ALBERTO SILVA FRANCO, “Crimes Hediondos”, p. 489/500, item n. 3.00, 5ª ed., 2005, RT, v.g.).

 

 

 

 

 

Vê-se, portanto, que o Poder Público, especialmente em sede processual penal, não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal, ainda mais em tema de liberdade individual, acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade.

 

 

 

 

 

Como se sabe, a exigência de razoabilidade traduz limitação material à ação normativa do Poder Legislativo.


 

 

 

 

 

O exame da adequação de determinado ato estatal ao princípio da proporcionalidade, exatamente por viabilizar o controle de sua razoabilidade, com fundamento no art. 5º, LV, da Carta Política, inclui-se, por isso mesmo, no âmbito da própria fiscalização de constitucionalidade das prescrições normativas emanadas do Poder Público.

 

 

 

 

 

Esse entendimento é prestigiado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, por mais de uma vez, já advertiu que o Legislativo não pode atuar de maneira imoderada, nem formular regras legais cujo conteúdo revele deliberação absolutamente divorciada dos padrões de razoabilidade.

 

 

 

 

Coloca-se em evidência, neste ponto, o tema concernente ao princípio da proporcionalidade, que se qualifica – enquanto coeficiente de aferição da razoabilidade dos atos estatais (CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, “Curso de Direito Administrativo”, p. 56/57, itens ns. 18/19, 4ª ed., 1993, Malheiros; LÚCIA VALLE FIGUEIREDO, “Curso de Direito Administrativo”, p. 46, item n. 3.3, 2ª ed., 1995, Malheiros) – como postulado básico de contenção dos excessos do Poder Público.

 

Essa é a razão pela qual a doutrina, após destacar a ampla incidência desse postulado sobre os múltiplos aspectos em que se desenvolve a atuação do Estado – inclusive sobre a atividade estatal de produção normativaadverte que o princípio da proporcionalidade, essencial à racionalidade do Estado Democrático de Direito e imprescindível à tutela mesma das liberdades fundamentais, proíbe o excesso e veda o arbítrio do Poder, extraindo a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula, em sua dimensão substantiva ou material, a garantia do “due process of law” (RAQUEL DENIZE STUMM, “Princípio da Proporcionalidade no Direito Constitucional Brasileiro”, p. 159/170, 1995, Livraria do Advogado Editora; MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, “Direitos Humanos Fundamentais”, p. 111/112, item n. 14, 1995, Saraiva; PAULO BONAVIDES, “Curso de Direito Constitucional”, p. 352/355, item n. 11, 4ª ed., 1993, Malheiros).

 

Como precedentemente enfatizado, o princípio da proporcionalidade visa a inibir e a neutralizar o abuso do Poder Público no exercício das funções que lhe são inerentes, notadamente no desempenho da atividade de caráter legislativo. Dentro dessa perspectiva, o postulado em questão, enquanto categoria fundamental de limitação dos excessos emanados do Estado, atua como verdadeiro parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais.


 

Isso significa, dentro da perspectiva da extensão da teoria do desvio de poder ao plano das atividades legislativas do Estado, que este não dispõe de competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal.

 

A jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal, bem por isso, tem censurado a validade jurídica de atos estatais, que, desconsiderando as limitações que incidem sobre o poder normativo do Estado, veiculam prescrições que ofendem os padrões de razoabilidade e que se revelam destituídas de causa legítima, exteriorizando abusos inaceitáveis e institucionalizando agravos inúteis e nocivos aos direitos das pessoas (RTJ 160/140-141, Rel. Min. CELSO DE MELLO – RTJ 176/578-579, Rel. Min. CELSO DE MELLO – ADI 1.063/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).

 

 

 

 

Daí a advertência de que a interdição legal “in abstracto”, vedatória da concessão de liberdade provisória, como na hipótese prevista no art. 44 da Lei nº 11.343/2006, incide na mesma censura que o Plenário do Supremo Tribunal Federal estendeu ao art. 21 do Estatuto do Desarmamento, considerados os múltiplos postulados constitucionais violados por semelhante regra legal, eis que o legislador não pode substituir-se ao juiz na aferição da existência, ou não, de situação configuradora da necessidade de utilização, em cada situação concreta, do instrumento de tutela cautelar penal.

 

 

 

 

 

Igual objeção pode ser oposta ao E. Superior Tribunal de Justiça, cujo entendimento, fundado em juízo meramente conjectural (sem qualquer referência a situações concretas) – no sentido de que(…) a vedação imposta pelo art. 2º, II, da Lei 8.072/90 é (…) fundamento idôneo para a não concessão da liberdade provisória nos casos de crimes hediondos ou a ele equiparados, dispensando, dessa forma, o exame dos pressupostos de que trata o art. 312 do CPP” (fls. 257 – grifei) -, constitui, por ser destituído de base empírica, presunção arbitrária que não pode legitimar a privação cautelar da liberdade individual.

 

 

 


 

 

O Supremo Tribunal Federal, de outro lado, tem advertido que a natureza da infração penal não se revela circunstância apta a justificar, só por si, a privação cautelar do “status libertatisdaquele que sofre a persecução criminal instaurada pelo Estado.

 

 

 

 

 

Esse entendimento vem sendo observado em sucessivos julgamentos proferidos no âmbito desta Corte, mesmo que se trate de réu processado por suposta prática de crimes hediondos ou de delitos a estes equiparados (HC 80.064/SP, Rel. p/ o acórdão Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – HC 92.299/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – HC 93.427/PB, Rel. Min. EROS GRAU – RHC 71.954/PA, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – RHC 79.200/BA, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, v.g.):

 

 

 

 

 

A gravidade do crime imputado, um dos malsinados ‘crimes hediondos’ (Lei 8.072/90), não basta à justificação da prisão preventiva, que tem natureza cautelar, no interesse do desenvolvimento e do resultado do processo, e só se legitima quando a tanto se mostrar necessária: não serve a prisão preventiva, nem a Constituição permitiria que para isso fosse utilizada, a punir sem processo, em atenção à gravidade do crime imputado, do qual, entretanto, ‘ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória’ (CF, art. 5º, LVII).

 

 

(RTJ 137/287, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – grifei)

 

 

 

 

 

A ACUSAÇÃO PENAL POR CRIME HEDIONDO NÃO JUSTIFICA A PRIVAÇÃO ARBITRÁRIA DA LIBERDADE DO RÉU.

 

 

A prerrogativa jurídica da liberdadeque possui extração constitucional (CF, art. 5º, LXI e LXV) – não pode ser ofendida por atos arbitrários do Poder Público, mesmo que se trate de pessoa acusada da suposta prática de crime hediondo, eis que, até que sobrevenha sentença condenatória irrecorrível (CF, art. 5º, LVII), não se revela possível presumir a culpabilidade do réu, qualquer que seja a natureza da infração penal que lhe tenha sido imputada.

 

 


(RTJ 187/933, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

 

 

 

 

 

Tenho por inadequada, desse modo, para efeito de se justificar a decretação da prisão cautelar da ora paciente, a invocação feita pelas instâncias judiciárias inferiores – do art. 44 da Lei nº 11.343/2006 ou do art. 2º, inciso II, da Lei nº 8.072/90, especialmente depois de editada a Lei nº 11.464/2007, que excluiu, da vedação legal de concessão de liberdade provisória, todos os crimes hediondos e os delitos a eles equiparados, como o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins.

 

 

 

 

 

Vale referir, também, que não se reveste de idoneidade jurídica, para efeito de justificação do ato excepcional de privação cautelar da liberdade individual, a alegação de “evasão do distrito da culpa” (fls. 258).

 

 

 

 

É que, ainda que se tratasse, no caso em exame, de evasão (o que não se presume), mesmo assim tal circunstância não justificaria, só por si, na linha do magistério jurisprudencial desta Suprema Corte (RTJ 175/715 – RTJ 180/262, v.g.), a utilização, contra a ora paciente, do instituto da tutela cautelar penal, como resulta claro de decisão emanada do Supremo Tribunal Federal:

 

 

 

 

PRISÃO CAUTELAR E EVASÃO DO DISTRITO DA CULPA.

 

 

A mera evasão do distrito da culpa – seja para evitar a configuração do estado de flagrância, seja, ainda, para questionar a legalidade e/ou a validade da própria decisão de custódia cautelar – não basta, só por si, para justificar a decretação ou a manutenção da medida excepcional de privação cautelar da liberdade individual do indiciado ou do réu.

 

 

A prisão cautelarqualquer que seja a modalidade que ostente no ordenamento positivo brasileiro (prisão em flagrante, prisão temporária, prisão preventiva, prisão decorrente de sentença de pronúncia ou prisão motivada por condenação penal recorrível) – somente se legitima, se se comprovar, com apoio em base empírica idônea, a real necessidade da adoção, pelo Estado, dessa extraordinária medida de constrição do ‘status libertatis’ do indiciado ou do réu. Precedentes. (…).


 

 

(HC 89.501/GO, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

 

 

 

Nem se diga que a decisão de primeira instância teria sido reforçada, em sua fundamentação, pelos julgamentos emanados do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (HC 1.217.026-3/9-00) e do E. Superior Tribunal de Justiça (HC 113.558/SP), nos quais se denegou a ordem de “habeas corpusentão postulada em favor da ora paciente.

 

 

 

 

 

Cabe ter presente, neste ponto, na linha da orientação jurisprudencial que o Supremo Tribunal Federal firmou na matéria, que a legalidade da decisão que decreta a prisão cautelar ou que denega liberdade provisória deverá ser aferida em função dos fundamentos que lhe dão suporte, e não em face de eventual reforço advindo dos julgamentos emanados das instâncias judiciárias superiores (HC 90.313/PR, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.):

 

 

 

 

 

(…) Às instâncias subseqüentes não é dado suprir o decreto de prisão cautelar, de modo que não pode ser considerada a assertiva de que a fuga do paciente constitui fundamento bastante para enclausurá-lo preventivamente (…).

 

 

(RTJ 194/947-948, Rel. p/ o acórdão Min. EROS GRAU – grifei)

 

 

 

 

 

A motivação, portanto, há de ser própria, inerente e contemporânea à decisão que decreta o ato excepcional de privação cautelar da liberdade, poisinsista-se a ausência ou a deficiência de fundamentação não podem ser supridas “a posteriori” (RTJ 59/31 – RTJ 172/191-192 – RT 543/472 – RT 639/381, v.g.):

 

 

 

 

 

Prisão preventiva: análise dos critérios de idoneidade de sua motivação à luz de jurisprudência do Supremo Tribunal.

 

 

1. A fundamentação idônea é requisito de validade do decreto de prisão preventiva: no julgamento do hábeas-corpus que o impugna não cabe às sucessivas instâncias, para denegar a ordem, suprir a sua deficiência originária, mediante achegas de novos motivos por ele não aventados: precedentes.


 

 

(RTJ 179/1135-1136, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – grifei)

 

 

 

 

 

Em suma: a análise dos fundamentos invocados pela parte ora impetrante leva-me a entender que a decisão judicial de primeira instância não observou os critérios que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou em tema de prisão cautelar.

 

 

 

 

Sendo assim, tendo presentes as razões expostas, defiro o pedido de medida liminar, para, até final julgamento desta ação de “habeas corpus”, suspender, cautelarmente, a eficácia do decreto de prisão preventiva da ora paciente, referentemente ao Processo nº 122/08 (1ª Vara Criminal da comarca de Peruíbe/SP).

 

 

Caso a paciente tenha sofrido prisão cautelar em decorrência da decisão proferida no caso em exame (Processo nº 122/08), deverá ser posta, imediatamente, em liberdade, se por al não estiver presa.

 

 

 

 

 

Comunique-se, com urgência, transmitindo-se cópia da presente decisão ao E. Superior Tribunal de Justiça (HC 113.558/SP), ao E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (HC 1.217.026-3/9-00) e à MM. Juíza de Direito da 1ª Vara Criminal da comarca de Peruíbe/SP (Processo 122/08).

 

 

 

 

 

Publique-se.

 

 

 

 

 

Brasília, 19 de dezembro de 2008.

 

 

 

 

 

Ministro CELSO DE MELLO

 

 

Relator

 

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