Interpretação do Direito

Decisão sobre desistência de recurso é inadequada

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24 de dezembro de 2008, 23h00

No dia 17 de dezembro de 2008, em julgamento por afetação ao plenário dos Resp 1.058.114 e 1.063.343, o Órgão Especial do Superior Tribunal de Justiça, por maioria de votos, decidiu que as partes não podem desistir do recurso especial depois de ele te sido afetado para julgamento por meio da Lei de Recursos Repetitivos, instruído e colocado na pauta do tribunal.

A matéria constante da decisão tem relação direta com o artigo 501 do Código de Processo Civil, que, ao contrário do decidido, assegura ao recorrente, a qualquer tempo, sem a anuência do recorrido ou dos litisconsortes, desistir do recurso. Eis o debate. Um dos argumentos vencedores pautou-se nos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, verbis: “não é razoável que se desista da ação nesse estágio, assim como não há direitos absolutos”. Na mesma linha, a maioria sustentou que, se o STJ acolhesse o pedido de desistência, em face da repercussão que cada julgamento afetado pela Lei dos Recursos Repetidos possui, estar-se-ia “fazendo o interesse particular prevalecer sobre o público”.

De ressaltar, desde logo, que a decisão do STJ nitidamente descaracteriza o instituto do recurso especial, ou seja, como forma de impugnação de decisões dando prolongamento ao processo, por disposição dos diretamente interessados, as partes, transformando-o, a partir da sua interposição, em um processo quase objetivo, no que diz respeito não apenas àquele processo mas aos efeitos nos outros. Ora, as partes não têm legitimidade para discutir algo como "a aplicação da lei em tese", ou seja, acerca de quais seriam as aplicações que, em princípio, uma lei teria para além do caso. Veja-se: as partes no recurso não representam nem substituem a sociedade; estão ali na defesa dos seus direitos, elas não foram eleitas por ninguém… E se aquela decisão pode vir a afetar outros processos em razão de uma suposta eficácia erga omnes, o que ocorre é a violação do devido processo, do contraditório, da ampla defesa em relação aos demais.

Em outras palavras, o que fica claro nessa decisão do STJ é que o Recurso Especial, agora, mais do que nunca, não "pertence" às partes; não "serve" às mesmas, mas apenas (ou quase tão somente) ao “interesse público”, que, convenhamos, não passa de uma expressão que sofre de “anemia significativa”, nela “cabendo qualquer coisa”, mormente se for a partir do “princípio” da razoabilidade, álibi para a prática de todo e qualquer pragmatismo. Assim decidindo, o STJ quis transmitir-nos o seguinte recado: se o recurso não serve às partes, mas a um interesse "maior", "transcendente", nada mais “natural” (sic) que o recorrente não possa dele desistir, já que (seu recurso) está sendo utilizado para um "bem maior" (mais uma vez aqui as velhas "razões de Estado"….). Em linha divergente, penso que o Tribunal se equivoca, pois se considerarmos que, com a figura da reunião de recursos "idênticos" o que se tem é um ‘litisconsórcio por afinidade’ (a expressão é de Fredie Didier), o que temos aí é mais um argumento para mostrar que a decisão fere, também por esse viés, o artigo 501 do CPC.

Reitere-se: a desistência do recurso, nos moldes do artigo 501, CPC, constitui ato unilateral do recorrente que independe da anuência da parte contrária ou do juízo, e sua realização constitui um fato impeditivo do poder de recorrer, requisito extrínseco de admissibilidade recursal. Seu exercício é uma clara manifestação da autonomia privada das partes no processo (princípio dispositivo), assegurada constitucionalmente. Frise-se: essa autonomia privada vem sendo flexibilizada pela tendência de ativismo judicial, mas que, ordinariamente, é fruto de uma autorização legal (v.g.: artigo 461, parágrafo 4º, CPC). Não podemos esquecer que a técnica de “abdução de processos” ( artigo 543 do CPC) não permite uma participação efetiva dos interessados, eis que os “recursos representativos da controvérsia” serão escolhidos (pinçados) pelo órgão a quo ou ad quem, sem qualquer garantia de que todos os argumentos relevantes para o deslinde da causa, suscitados por todos os interessados, sejam levados em conta no momento da decisão. A participação se limita às partes dos recursos afetados, que podem ou não ter apresentado uma argumentação idônea e técnica. Mais ainda – e isso parece mais grave – a partir dessa técnica de “abduzimento” os Tribunais Superiores já não julgam todos os recursos (quer dizer, causas); na verdade, examinam a pertinência de “temas”, uma vez que as causas são transformadas em “conceitos”.


Numa palavra: a decisão do STJ, negando validade ao artigo 501, somente demonstra a fragilidade da técnica do artigo 543C, do CPC, eis que obriga o Tribunal a restringir a autonomia privada do recorrente, em interpretação que altera o instituto da desistência, sob o argumento da aludida “superioridade do interesse público sobre o privado”. Cria-se uma exceção interpretativa, uma ficção jurídica, além de se aumentar o grau de complexidade normativa na utilização da sistemática processual, para se resolver um problema pragmático do Tribunal Superior na utilização da técnica.[1] Trata-se de discutir, fundamentalmente, qual é o papel das partes no processo em tempos de Estado Democrático de Direito e qual é o papel do Poder Judiciário. Processos servem para discutira interpretação da lei para o restante da sociedade? Está o Judiciário autorizado a praticar ativismos a ponto de se substituir ao legislador?

Tudo isso nos leva a um outro ponto que não pode deixar de ser assinalado, sob pena de esquecermos o valor da Constituição. Explico: em nenhum momento, a questão da jurisdição constitucional foi trazida à discussão no aludido julgamento. Sim, porque para que, in casu, o artigo 501 do CPC não fosse aplicado, haveria (e há) apenas uma solução: a sua nulificação, ou seja, a retirada de sua validade (no todo ou em parte), o que pode ser feito por intermédio de controle de constitucionalidade, nos termos do artigo 97 da CF (despiciendo lembrar que também o STJ faz controle difuso de constitucionalidade, devendo seguir as regras do artigo 97, como qualquer outro Tribunal da República). É só assim que, em uma democracia, um Tribunal pode deixar de aplicar uma lei.

Dito de outro modo: o acentuado grau de autonomia alcançado pelo direito e o respeito à produção democrática das normas faz com que se possa afirmar que o Poder Judiciário somente pode deixar de aplicar uma lei ou dispositivo de lei nas seguintes hipóteses: a) quando a lei (o ato normativo) for inconstitucional, vindo a violar uma norma ou princípio da Constituição, caso em que deixará de aplicá-la (controle difuso de constitucionalidade stricto sensu); b) quando for o caso de aplicação dos critérios de resolução de antinomias. Nesse caso, há que se ter cuidado com a questão constitucional, pois, v.g., a lex posterioris, que derroga a lex anterioris, pode ser inconstitucional, com o que as antinomias deixam de ser relevantes; c) quando aplicar a técnica da interpretação conforme à Constituição (verfassungskonforme Auslegung), ocasião em que se torna necessária uma adição de sentido ao artigo de lei para que haja plena conformidade da norma à Constituição. Neste caso, o texto de lei (entendido na sua “literalidade”) permanecerá intacto; o que muda é o seu sentido, alterado por intermédio de interpretação que o torne adequado a Constituição; d) quando aplicar a técnica da nulidade parcial sem redução de texto (Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung), pela qual permanece a literalidade do dispositivo, sendo alterada apenas a sua incidência, ou seja, ocorre a expressa exclusão, por inconstitucionalidade, de determinada(s) hipótese(s) de aplicação (Anwendungsfälle) do programa normativo sem que se produza alteração expressa do texto legal. Assim, enquanto na interpretação conforme há uma adição de sentido, na nulidade parcial sem redução de texto ocorre uma abdução de sentido; e) quando for o caso de declaração de inconstitucionalidade com redução de texto, ocasião em que a exclusão de uma palavra conduz à manutenção da constitucionalidade do dispositivo.

Fora dessas hipóteses, o Poder Judiciário não pode se sobrepor à legislação produzida de acordo com a democracia representativa. Assim, para negar validade a um dispositivo do CPC – e, reconheçamos, foi o que, efetivamente, o órgão Especial do STJ fez – o Poder Judiciário deve fundamentar essa nulificação constitucionalmente (afinal, quantos princípios constitucionais foram afetados por essa decisão?). Dizendo de outra forma: ou a lei vale ou não vale, no todo em parte; ou, ainda, a lei só vale no (novo) sentido que lhe é dado em conformidade com a Constituição (seja por um maius, seja por um minus de sentido); ou, por último, sua validade é alterada em face de outra lei, que lhe é superior, aplicando-se, então, os critérios para a resolução de antinomias ( de todo modo – e temos que nos acostumar com isso – sempre se estará, de um modo ou de outro, em face de um ato de jurisdição constitucional). Ou isso, ou teremos que admitir que a) o Judiciário constrói leis; b) a elas se sobrepõe e c) as revoga.


Mas, acrescente-se, não se está aqui a fazer uma ode formalista em favor de uma lei (no caso, o CPC). A questão é bem mais complexa, porque diz respeito ao debate contemporâneo entre democracia e constitucionalismo e ao dilema que dele se extrai: como controlar o poder de quem decide, para, com isso, evitar que o Judiciário atropele as decisões da vontade geral. Isso significa dizer que não é apenas a lei que “segura” o direito de as partes desistirem do recurso; é o papel do processo civil (e das partes) no Estado Democrático de Direito que aponta na direção dessa autonomia de desistir a qualquer momento. Ou seja, mesmo que se faça uma lei “incorporando” a nova decisão do STJ, ainda assim será difícil compatibilizá-la com a Constituição. “Legalidade” significa, assim, nesse caso, “constitucionalidade.

Dito de outra maneira, motivações teleológicas (e pragmatistas) surgirão para justificar a decisão sob comento. Talvez até se diga que houve “mutação legal” (sic) ou que não é razoável que as partes “disponham” do recurso (que elas interpuseram…). O que não se pode fazer é solapar a lei mediante a utilização de argumentos que, nem de longe, aproximam-se daquilo que Dworkin denomina de “argumentos de princípio”. E é por tais razões que a posição assumida pelo Superior Tribunal de Justiça, negando validade e/ou alterando o artigo 501 do CPC, deve – e deve – ser epitetada de incorreta ou constitucionalmente inadequada.

Mas, apesar de tudo isso, penso que a decisão em tela assume ainda maior relevância em face de seu conteúdo simbólico (no sentido de Castoriadis e Lacan). A pergunta que fica é: quais são os limites da interpretação do direito? E quais são os limites dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade? Seriam tais princípios álibis para o exercício de arbitrariedades hermenêuticas?


[1] Sobre os novos contornos do processo no Estado Democrático de Direito, permito-me remeter os leitores às seguintes obras, indispensáveis para uma adequada compreensão dessa fenomenologia: BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Os Recursos Extraordinários e a Co-originalidade dos Interesses Público e Privado no interior do processo: reformas, crises e desafios à jurisdição desde uma compreensão procedimental do estado democrático de direito. In: CATTONI, Marcelo A.; MACHADO, Felipe (coord.). Constituição e Processo: a contribuição do processo no constitucionalismo democrático brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 366; NUNES, Dierle, Processo Jurisdicional Democrático, op.cit. e CATTONI, Marcelo. Jurisdição e hermenêutica constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004; CORDEIRO LEAL, André. Instrumentalidade do processo em crise. BH, Mandamentos, 2008.

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