Canto da sereia

País precisa da criação de um marco regulatório contábil

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22 de dezembro de 2008, 14h58

Em janeiro de 2008 entrou em vigor a Lei 11.638, que alterou e revogou dispositivos da Lei 6.404/76, das Sociedades por Ações; e da Lei 6.385/76, do Mercado de Valores Mobiliários. Em especial, a nova lei alterou dispositivos que tratam das demonstrações financeiras das companhias. Nos termos da respectiva Exposição de Motivos (Mensagem 1.657, de 07/11/2000), a Lei 11.638 teve “por finalidade modernizar e harmonizar as disposições da lei societária em vigor com os princípios fundamentais e melhores práticas contábeis internacionais”.

O período que divide a exposição de motivos até a data da publicação desta nova lei coincide com o arriscado e altamente questionável namoro que o mundo capitalista, incluindo o Brasil, manteve com as “bolhas” criadas no mercado de capitais. Com a propaganda da imperiosa necessidade de adequar e viabilizar os demonstrativos financeiros dos players da bolsa de valores até as normas contábeis internacionais. Este verdadeiro “canto da sereia” na verdade “empurrou goela abaixo” do povo brasileiro a armadilha do subjetivismo na avaliação do patrimônio das grandes empresas.

Com efeito, os mais sólidos e tradicionais princípios de contabilidade, que primam por critérios objetivos na avaliação do valor das empresas — que impedem ou dificultam avaliações nos valores das ações — cederam espaço para a possibilidade de se atribuir o subjetivismo do “valor de mercado”, especialmente a ativos financeiros. Derivativos. Esta é a conclusão que se chega após simples leitura da nova redação dada ao artigo 183 da Lei das Sociedades Anônimas.

Ao leitor ou investidor que não está habituado a este tipo de informação técnica, explica-se: no momento da análise financeira e patrimonial dos demonstrativos contábeis de uma empresa, para fins de decisão em aplicar ou não em suas ações, saibam que os valores encontrados nos respectivos balanços podem estar “inchados”, resultado de casuísmos encobertados pela aplicação do “valor de mercado”. Um exemplo do perigo que isso ilustra são os créditos “podres” das hipotecas imobiliárias que inchavam os balanços dos bancos americanos, os sub-primes, certamente estavam avaliados dessa forma.

Conforme se verifica das centenas de artigos publicados na internet, a comunidade jurídica e contábil está mais preocupada com a neutralidade fiscal da Lei 11.638, em que pesa a nova redação dada ao parágrafo 7º do artigo 177 da Lei das Sociedades Anônimas, pela qual os ajustes contábeis necessários “não poderão ser base de incidência de impostos e contribuições nem ter quaisquer outros efeitos tributários”. Esta inquietação, no entanto, já foi afastada com a edição da Medida Provisória 449/2008, que institui em seu artigo 15 o Regime Tributário de Transição (RTT) para os novos métodos contábeis, afirmando que este regime busca a neutralidade tributária.

Como advogado e não contador, procuro aprimorar minhas conclusões sobre este tema com profissionais de notória qualificação científica. Neste sentido, é preciso dar o devido crédito desse artigo às advertências que têm sido feitas há muito tempo pelo ilustre professor Antonio Lopes de Sá, um dos maiores expoentes da contabilidade brasileira, conforme se verifica em vários de seus artigos publicados em seu sítio na internet 1.

A inegável importância do aspecto tributário para as empresas sujeitas à nova lei é hora de atentar para uma devida análise desta nova lei sob o prisma do investidor, haja vista que até mesmo o próprio governo federal há tempos vem incentivando o cidadão comum a investir na bolsa de valores.

No entanto, o mínimo que se pode esperar de um Estado de Direito que se diz social-democrático é que seja criado um marco regulatório contábil pelo qual sejam seguras e transparentes as informações financeiras e patrimoniais das empresas que captam recursos dos cidadãos. Para tanto, me parece ser incompatível com essa premissa a possibilidade de se atribuir o subjetivismo do valor de mercado a certos ativos financeiros.

E por último, a legislação brasileira não deveria ceder aos falsos encantos do estímulo ao capitalismo especulativo. Antes, é preciso que Governo e setor privado entabulem uma volta ao único fundamento legítimo de qualquer economia de mercado: o empreendedorismo.

Nota de Rodapé

1— Recomendada a leitura do excelente artigo “Efeitos perversos das Normas Contábeis” — www.lopesdesa.com.br.

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