Soberania peculiar

Entrevista: Fernando Grella, procurador-geral de Justiça de SP

Autor

20 de dezembro de 2008, 23h00

Fernando Grella - por SpaccaSpacca" data-GUID="fernando_grella.jpeg">Embora tenha autonomia própria de um poder, o Ministério Público não é e não age como o quarto poder. E se parece assim é porque, por determinação constitucional, lhe cabe a obrigação de fiscalizar Executivo, Legislativo e Judiciário. Ou porque a Constituição de 1988 o transformou numa das instituições mais poderosas e mais bem sucedidas da nova democracia brasileira.

A constatação é de Fernando Grella Vieira, procurador-geral de Justiça de São Paulo e chefe de um dos braços mais ativos da instituição no país. Com 202 procuradores (nesta semana foi aprovada lei que cria outros 98 vagas na carreira), 1.602 promotores e 2.900 funcionários, o Ministério Público de São Paulo pode se gabar de sua eficiência.

No comando da instituição desde março, Grella tem opinião clara sobre questões polêmicas, como a questão do poder investigatório do MP. Para ele não cabe ao MP presidir inquérito policial, mas o poder de investigar em matéria penal é atribuição explicitamente definida na Constituição. E acredita que isso é uma garantia a mais para a sociedade, especialmente quando os fatos investigados são passiveis de provocar maior impacto em termos sociais, econômicos e políticos.

Grella ressalta, porém, que seja da Polícia ou do MP, a investigação não pode avançar sobre os direitos fundamentais do investigado. “Eu não vejo condições para se fazer uma investigação sem respeitar os direitos e garantias individuais que estão expressos na Constituição”, esclarece.

Fernando Grella Vieira, 52 anos, é formado pela PUC de Campinas. Foi vice-presidente da Associação Paulista do Ministério Público. Atuou, nos últimos anos, dentro do Congresso Nacional, no acompanhamento das reformas constitucionais (administrativa, da Previdência e do Judiciário). Assumiu a Procuradoria-Geral de Justiça no dia 28 de março de 2008 para o mandato de dois anos. É ainda vice-presidente do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais de Justiça

Participaram também da entrevista os jornalistas Aline Pinheiro e Fernando Porfírio.

Leia a entrevista

ConJur — O Ministério Público pode comandar inquérito criminal?

Fernando Grella — São duas coisas diferentes. Não defendo que o Ministério Público conduza inquérito policial. Esta é uma atribuição da polícia civil. Mas defendo o poder investigatório do MP. Queremos ver respeitada uma função que, para nós, está prevista e autorizada na Constituição.

Conjur — O MP tem membros preparados para fazer investigação?

Fernando Grella — Temos. Até porque a intenção não é assumir toda investigação criminal ou todos os inquéritos. Queremos o reconhecimento de que é possível o MP investigar fatos criminosos. É indispensável que o Ministério Público esteja à frente da investigação de fatos graves, que podem exercer uma pressão econômica e política.

Conjur — A polícia sozinha não é capaz de investigar?

Fernando Grella — Não que não seja capaz. Mas, o MP é dotado de certas prerrogativas e garantias que permitem à instituição e aos seus membros enfrentar essas naturais tentativas de impedir as investigações, coisa que não acontece com a polícia. Não queremos, evidentemente, tomar a função da polícia. Ela tem a vocação de apurar, de elucidar os crimes em geral. Não é só aqui no Brasil, no mundo inteiro, o MP tem essa prerrogativa, de também investigar.

Conjur — Até onde o combate ao crime pode justificar o cerceamento de direitos fundamentais?

Fernando Grella —Toda a investigação tem que respeitar os direitos individuais. Seja pela polícia, seja pelo MP. É uma questão de coerência. A Constituição diz que somos um Estado Democrático de Direito e não um Estado de Direito Democrático. O Estado que quer ser democrático de Direito, tem de submeter os poderes e os órgãos do Estado ao balizamento da própria Constituição. Não vejo condições para se fazer uma investigação sem respeitar os direitos e garantias individuais que estão expressos na Carta.

Conjur — Nessas operações recentes da Polícia Federal esses direitos foram respeitados?

Fernando Grella — Sei que há reclamações de um lado contra possíveis abusos. Em contrapartida, posições defendendo iniciativas que foram adotadas pelas autoridades incumbidas da investigação. Emitir um juízo é difícil sem conhecer as circunstâncias que envolveram esses episódios. É possível que tenha havido abuso. As instituições são feitas de homens e pode haver excessos, pode haver equívocos. Mas, se ocorreram, precisam ser punidos.

ConJur — Como é a relação do MP-SP com a imprensa?


Fernando Grella — Muito boa. A instituição tem recebido todos órgãos de imprensa. Existem dois segmentos importantes que foram fortalecidos com a Constituição de 1988: a imprensa e o Ministério Público. Jornalistas e promotores têm um papel importante em favor da sociedade. Ambos acreditam que a transparência é o melhor instrumento de controle social das ações do estado, das iniciativas oficiais. A imprensa exerce um papel fundamental ao divulgar as medidas, veicular as reclamações, as deficiências.

Conjur — O que o senhor tem a dizer de casos, que para a opinião pública configuram típicos de corporativismo do MP: Thales Schoedl e Marcelo Mendroni.

Fernando Grella — No caso do Thales, a decisão que o vitaliciou foi uma questão polêmica. Depois a decisão foi para discussão no Conselho Superior do Ministério Público, que a reviu, a invalidou e cassou o vitaliciamento. O conselho pediu que eu o exonerasse, eu exonerei. Não há sinal de corporativismo nisso. O vitaliciamento, a rigor, independe da questão criminal. Mas leva em conta a conduta funcional, a conduta social independentemente da prática de crime. Tínhamos depois essa questão do processo criminal que, de fato, acaba repercutindo na instituição. O Tribunal de Justiça, por unanimidade, o absolveu reconhecendo a legítima defesa.

Conjur — O que tem a dizer dessa decisão?

Fernando Grella — A instituição ainda não foi intimada e não sabemos se entraremos com recurso. Adianto, no entanto, que há uma questão prejudicial que certamente vai gerar polêmica. A grande questão é se o TJ deveria ou não ter suspendido o julgamento da ação penal até o julgamento de mérito de liminar já concedida pelo Supremo Tribunal Federal. Com a liminar, a corte suprema garantiu o vínculo profissional do promotor. Se o Supremo confirmar a liminar e disser que o promotor está vitaliciado, o julgamento do TJ foi válido. Mas, se o STF denegar o pedido e cassar a liminar, essa cassação tem efeito retroativo. Então, o julgamento daqui não terá sido válido por ofensa ao princípio do promotor natural. Porque neste caso o juízo natural não seria o TJ e sim o Tribunal do Júri.

Conjur — E no caso do promotor Marcelo Mendroni?

Fernando Grella — O caso também é peculiar. O Conselho Superior deu autorização para ele fazer o curso de pós-doutorado e não cassou essa autorização. A divergência surgiu depois que ele voltou e consistia em saber se ele tinha que comunicar o Conselho Superior de que não havia matrícula e nem avaliação. O Conselho, quando deu a autorização, sabia que era para pós-doutoramento e sabia que, portanto, não teria o mesmo tratamento que um doutoramento ou que um mestrado. Entendo, num primeiro momento, que o comportamento dele pode ter tido irregularidade de caráter disciplinar, mas que não chega a configurar improbidade administrativa.

Conjur — Os promotores podem portar armas de uso exclusivo das Forças Armadas? O senhor acha que os membros do Ministério Público não são atingidos pela restrição feita pelo Estatuto do Desarmamento?

Fernando Grella —A lei não faz distinção. A Lei Orgânica da Magistratura, por exemplo, dá porte legal de arma para o juiz e para o promotor, sem distinção. E se a lei não faz, eu não posso fazer.

Conjur — Criaram esse entendimento ou já existia na magistratura?

Fernando Grella — Não. Há divergências. Mas, adotamos um entendimento que nos parece muito forte no sentido de dar eficácia a essa prerrogativa.

ConJur — Esse foi o motivo pelo qual o senhor não ofereceu denúncia contra o promotor Pedro Baracat, que matou um motoqueiro com uma pistola calibre 9 milímetros, de uso restrito das Forças Armadas?

Fernando Grella — Sim. Em termos fáticos, uma arma ponto 40 que seria, em tese, passível, é muito mais letal do que uma nove milímetros. Então, até em termos fáticos, não há razão para essa discussão. Mas o fato é que a lei não restringe. A lei diz ‘porte legal de arma’ e nessa linha há entendimentos muito sólidos que defendem que não se pode amesquinhar o sentido da lei”.

ConJur — Há entendimento dos tribunais superiores nesse sentido?

Fernando Grella — Esse assunto ainda não chegou aos tribunais. A discussão talvez comece a partir do caso do promotor Pedro. Em termos de doutrina, existe entendimento na instituição, trabalhos publicados internamente e em outras instituições também do MP.Eu defendo que é um menosprezo à lei, à prerrogativa do promotor, fazer uma distinção que a lei não faz. Se a lei dá o porte legal de arma, não tem importância se é calibre 38, ponto 40 ou 9 milímetros. A questão é o uso responsável da arma. O disciplinamento é exigir curso, a preparação para aqueles que querem usar arma. Eu, particularmente, não uso arma. Mas há colegas que, pela função, usam e precisam usar arma.


ConJur — O que mudou para o Ministério Público a partir da Constituição de 1988?

Fernando Grella — Com novas atribuições na defesa da cidadania, a instituição ganhou uma dimensão completamente diferente. Na área do Direito Positivo, a Constituição ampliou a atuação do Ministério Público na defesa dos interesses difusos. Antes da nova Carta, a instituição atuava apenas em três campos: Consumidor, Meio Ambiente e Defesa do Patrimônio Histórico. Agora, é responsável pela da defesa dos interesses difusos em geral, sem limitações. O MP conseguiu também autonomia financeira, administrativa e orçamentária, a exemplo do que acontece no Judiciário. Ou seja, houve uma simetria entre magistrados e membros do MP.

ConJur — Quais outras mudanças a CF trouxe para o MP?

Fernando Grella — Uma pontual diz respeito às funções principais da instituição. Antes, elas eram tratadas somente nas normas infraconstitucionais e, agora, constam do texto constitucional. Além disso, a Carta deixou claro que caberia ao MP a defesa do patrimônio público social, a defesa dos povos indígenas, tornou exclusivo também o exercício da Ação Penal Pública, coisa que antes só constava da Lei Ordinária.

ConJur — É possível traduzir em números o crescimento da demanda do MP desde a Constituição?

Fernando Grella — Na área de improbidade administrativa, por exemplo, o MP já ingressou com um número grande de ações. Hoje temos mais de 20 mil inquéritos civis em andamento em todo o estado de São Paulo. De todas as ações civis de improbidade administrativa, 70% desses casos que chegam ao TJ paulista são confirmados em favor da postulação do MP. Antes da Constituição, existia a Lei Bilac Pinto (Lei 3.502/58), que combatia o enriquecimento ilícito, mas dava legitimidade apenas ao Poder Público para que promovesse as medidas judiciais. Em 1988, essa atribuição deixou de ser exclusiva e passou a ser também do MP. E em 1992, com a Lei 8.429/92, que regulamentou os atos de improbidade, o MP ganhou legitimidade para combater a corrupção através das ações civis públicas. Esse crescimento se nota pelo número de iniciativas, de inquéritos civis e de ações já propostas pelo MP.

ConJur — Essas novas atribuições contribuiu para alguma mudança significativa, além da defesa da cidadania?

Fernando Grella — Com a redução, por exemplo, do número de vereadores nas câmaras municipais. A interpretação que chegou ao Supremo Tribunal Federal foi iniciativa e obra do Ministério Público de São Paulo. Isso começou numa comarca em Estrela D’Oeste. Um promotor construiu a tese da proporcionalidade, do número de vereadores em relação ao número de eleitores, e esse assunto foi parar no Supremo que convalidou a tese e a estendeu para todo o país.

ConJur — Quais áreas do MP o senhor destacaria?

Fernando Grella —Todas as áreas têm o seu devido valor e digo isto porque São Paulo é a maior cidade do país. É uma cidade rica, mas com muitos problemas. Então seria difícil afirmar que uma área teria papel de destaque em relação às outras. A área de habitação e urbanismo, numa cidade como a nossa, num estado como o nosso, tem muita relevância. A saúde pública também. A inclusão social, no que diz respeito à moradia, ainda mais. Sem falar da probidade administrativa.

Conjur — É possível afirmar que a atuação do MP tem mais visibilidade na esfera criminal?

Fernando Grella — A população tem essa impressão por causa da natureza dos crimes. Os bárbaros chamam mais a atenção. Por isso, os olhos são voltados para a atuação da instituição. Essa atuação também tem grande importância nas outras áreas. Recentemente, depois de mais um ano de trabalho, um colega do MP de São Paulo juntamente com colegas de outros estados, viabilizou a celebração de um TAC com a Febraban. O acordo vai possibilitar que os bancos, num determinado prazo estabelecido, procedam a adaptação das agências às condições necessárias para o atendimento das pessoas com deficiência. A iniciativa vai abranger 28 mil agências no país. A medida é de extrema relevância, mas às vezes não ganha a mesma visibilidade quando acontece um crime, uma desgraça.

Conjur — O combate à corrupção é a principal bandeira do MP?

Fernando Grella — Existe prioridade nesse combate, mas não é a bandeira principal da instituição. O Ministério Público de São Paulo tem uma promotoria estruturada e diversas iniciativas para combater a corrupção. Contudo, é importante destacar que não adianta só combater a corrupção e deixar de lado infância e juventude, as pessoas com deficiência e os idosos. Não podemos dizer que essas áreas são menos importantes que o combate à corrupção.


Conjur — A corrupção diminuiu?

Fernando Grella — Sim. As ações do Ministério Público têm sido fortes, eficazes nessa linha. Estamos montando um laboratório de lavagem de dinheiro (Grupo de Recuperação de Arquivos e de Lavagem de Dinheiro). Temos funcionários treinados e foi firmado um convênio com o Ministério da Justiça, na gestão passada do Rodrigo Pinho. Nós apresentamos o plano de trabalho quando assumi a gestão e agora esse laboratório vem com uma última parte, que é o equipamento, um programa especial de computador. O MP também criou o Gedec, que é o grupo anticartel.

Conjur — O senhor acha que se o Ministério Público denunciar uma pessoa, num crime de grande repercussão, e esta não for condenada, prejudica a imagem da instituição?

Fernando Grella — Depende da forma que for divulgada. A instituição cumpre o seu papel e se for o caso, leva uma postulação a juízo. Agora o desfecho final cabe ao judiciário. É preciso que a ação tenha fundamento, mas não há necessidade que seja julgada procedente, porque esse papel cabe ao Judiciário. O MP tem o seu papel, como órgão de defesa da sociedade, de ter o mínimo de elementos, que permita o exercício responsável da ação — o que não significa compromisso de procedência.

ConJur — Qual é o quadro de membros do Ministério Público?

Fernando Grella — Temos aproximadamente 1.804 colegas, de segunda e de primeira instância. São 202 procuradores e 1.602 promotores. Temos, ainda, cerca de 2.900 funcionários.

ConJur —É suficiente?

Fernando Grella — A instituição entende que o quadro é suficiente. É preciso apenas estruturá-lo em termos de serviço de apoio. Somos carentes de assistente jurídico e não de membros. Vejo a necessidade de dotar as promotorias de um número maior de funcionários e de assistentes que possam auxiliar o promotor em pesquisas, separação e análise de documentos. Essas são atividades que não precisam de um promotor a mais, mas de um profissional que tenha conhecimento jurídico para auxiliar o promotor.

ConJur — Existem quantos técnicos para cada membro?

Fernando Grella —Nenhum técnico. Eles têm oficiais de promotoria e procuradoria. Constatamos através de um levantamento que há distorções de promotoria para promotoria. Há promotorias que têm dois oficiais ou dois funcionários por promotor. Outras que têm meio funcionário por promotor. Já existe, contudo, um diagnóstico para corrigir essa situação no curso do tempo.

ConJur — Quais as medidas para resolver esse problema?

Fernando Grella — A criação de 900 cargos de assistente jurídico. O governador, inclusive, já destinou verba para prover 300 desses 900 cargos em 2009.

ConJur — A prioridade é na procuradoria?

Fernando Grella — Os cargos serão para procuradorias e promotorias. Temos de pegar no universo das procuradorias os setores cruciais. São eles: o setor de mutirão, na área criminal, setor de prefeitos, que são setores que têm uma demanda grande e que reclamam este apoio de pessoal que vai auxiliar na separação de processos e na pesquisa. As promotorias beneficiadas serão aquelas de locais mais distantes da capital que não têm sequer um estagiário.

ConJur — A idéia é colocar os melhores quadros de funcionários nas menores comarcas?

Fernando Grella — Não. Todas terão o assistente jurídico. Mas se eu tenho 300 assistentes para distribuir para um universo de 1.800, eu preciso ter critérios. A prioridade é para as comarcas que vivem situações mais angustiantes, que são dessas promotorias que em razão da localização geográfica, estão desprotegidas, desguarnecidas.

ConJur — Qual o orçamento do MP para 2009?

Fernando Grella — Deve ser um pouco mais de R$ 1,2 bilhão. A proposta da procuradoria era de R$ 1,7 bilhão. Ela foi reduzida, como acontece também todo ano com o Judiciário. Existe sempre uma adequação tento em vista a projeção da receita. Para o próximo ano, penso que levaram em conta a crise internacional. Estamos tentando melhorar este valor, que partiu da iniciativa do governo por meio de emendas que nós apresentamos na Assembléia Legislativa através de parlamentares, de lideranças, para tentar amenizar esse ajuste. Esse orçamento não é suficiente.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!