Justiça para todos

Não há direitos humanos sem assistência jurídica gratuita

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19 de dezembro de 2008, 23h00

Neste ano comemoramos os 20 anos da promulgação da Constituição Federal e os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Trata-se de importantes instrumentos para a efetivação dos direitos fundamentais da pessoa humana, em especial num país como o nosso, marcado por um processo histórico de propagação de desigualdade social, enraizador de um abismo entre aqueles que têm e podem e aqueles que não têm e não podem.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, marco divisório, pelo menos formal, de um período de discriminação e atrocidades entre os povos e a Constituição Federal de 1988, do período de ditadura militar para uma dita democracia, demonstram o compromisso do Estado na proteção de direitos indispensáveis para o pleno desenvolvimento do ser humano, centro de todo o nosso sistema.

O conjunto de direitos humanos fundamentais é formado, de forma simplista, por direitos e garantias individuais/coletivos (vida, liberdade, propriedade, igualdade, etc) e sociais (saúde, educação, moradia, assistência social, trabalho, meio ambiente, acesso à justiça, etc). Todos esses direitos são interdependentes, o que demonstra que sua implementação deve ser feita de forma conjunta e não dissociada, sob pena de inalcançabilidade da classe excluída, haja vista ser esta a maior beneficiária com a efetivação dos direitos sociais. Não há como se proteger a vida, a liberdade e a propriedade sem garantir saúde, educação e moradia.

Nesse sentido, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e, em especial, a Constituição Federal vigente, são instrumentos hábeis para o Estado garantir a dignidade da pessoa humana, a erradicação da pobreza, da marginalização e a redução das desigualdades sociais, criando, dessa forma, uma sociedade mais justa, livre e solidária.

Embora tenhamos avançado no reconhecimento de direitos de proteção da pessoa humana, ainda estamos muito longe da possibilidade de se proteger o mínimo para sua existência digna.

Toda pessoa deve ter acesso aos direitos fundamentais. Todavia, a dimensão do Estado, sua complexidade e problemas de licitude administrativa, somados ao gigantesco problema social — diga-se de passagem, gerado por ação e omissão do próprio Estado —, tem sido um entrave para a implementação dos direitos contidos nestes instrumentos jurídicos que este ano aniversariam.

No entanto, dentro de toda essa problemática — ou hipocrisia —, o Estado tem o dever de garantir o mínimo existencial para que a pessoa humana viva, dentro desse pacto social, com um mínimo de dignidade e, com isso, tenha direito a ter acesso aos demais direitos. O mínimo existencial está ligado à pobreza ou a própria miserabilidade, alvos que o país deve combater e erradicar. O artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, se refere ao mínimo existencial: “Toda pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para assegurar a sua saúde, o seu bem-estar e o de sua família, especialmente para a alimentação, o vestuário, a moradia, a assistência médica e para os serviços sociais necessários”.

Infelizmente, no Brasil, o Estado não consegue garantir nem o mínimo existencial ao seu povo. Com a incumbência de proteger direitos humanos, o Estado é seu maior violador.

Nosso mundo, dito neoliberal e globalizado, não vê com bons olhos o investimento (isso mesmo, investimento) em direitos sociais. Aliás, esse mesmo mundo que pregava o Estado mínimo, que desprezava os Estados que se resumiam ao papel de agentes secundários diante das maravilhosas multinacionais, hoje nem esse papel mínimo prega. Ou seja, os recursos estatais que serviriam para promoção de direitos sociais hoje estão na mira das multinacionais em crise.

Aliás, nesse contexto, pode-se questionar o seguinte: será que a maravilhosa e inevitável globalização econômica falhou? O mais importante é constatar que, seja qual for a resposta, com essa ou aquela economia, com ou sem crise, continuamos todos humanos e merecedores de respeito e dignidade. Será que nosso país, ou, por exemplo, nosso estado de São Paulo, apresentam tamanha miserabilidade orçamentária a ponto de não conseguirem promover o respeito à Constituição da República?

Números e argumentos não faltam para elucidar a mora do Estado na proteção dos direitos humanos por meio das prestações positivas de sua incumbência. A educação, por exemplo, é um direito fundamental da pessoa e tem como objetivo a garantia ao pleno desenvolvimento, à preparação para a cidadania e sua qualificação para o trabalho (artigo 205 da Constituição Federal). Entretanto, somente em São Paulo, segundo dados da Secretaria Municipal de Educação, 110 mil crianças pobres se encontram fora da educação infantil e 46 mil carentes, fora da educação fundamental. Além desse déficit, o estado não investe o suficiente em seus professores, sendo hoje, infelizmente, uma profissão subsidiária. Não existe uma pedagogia (no serviço público) que garanta a autonomia dos educandos e o pleno exercício da cidadania, com um olhar crítico e real para o social.

A saúde, por sua vez, é decadente. Pessoas pobres morrem nas filas dos hospitais e, quando assim não acontece, são submetidas a filas indignas e prazos infindáveis para um atendimento. Falta estrutura e materiais aos equipamentos públicos e os profissionais são desvalorizados. No ano passado, em plena epidemia de dengue na cidade do Rio de Janeiro, a Defensoria Pública se viu obrigada a ingressar com ação para que hospitais permanecessem abertos aos finais de semana. São milhares de ações propostas para se pleitear medicamentos básicos indispensáveis para a vida. Como garantir o direito à vida se o pobre não tem o mínimo de serviço público à saúde?

O direito à moradia é uma vergonha no Brasil desde a época de sua descoberta. O sistema de distribuição de terras que gera uma exclusão sócio-territorial; a especulação imobiliária, que expulsa o pobre dos centros para a periferia, sem infra-estrutura básica (periferização); uma falida política habitacional de interesse social, que não respeita os dizeres do plano diretor, o instrumento mais importante para um desenvolvimento sustentável das cidades, e que não consegue atender a uma parcela de pessoas abaixo da pobreza (o miserável); a colocação do excluído em conflito ao meio ambiente, haja vista ser este lugar a única opção daquele que sofre com o poderio econômico especulativo; o Judiciário, que muitas vezes ignora o sistema constitucional que alterou, há 20 anos, o modelo privatista de propriedade para outro que só protege este direito se atendida sua função social. Não há como proteger o meio ambiente natural (córregos, beiras de rios, morros, mangues, etc) se não for dada ao excluído da cidade legal uma política habitacional capaz de inseri-lo no pacto social. Como se garantir o direito à vida e, consequentemente, à saúde, sem uma moradia digna? Como garantir uma educação, sem um teto digno para se estudar?

Por fim, além de o Estado não garantir o mínimo existencial do ser humano, também não garante os instrumentos para sua efetivação. Diz a Constituição Federal que o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados. Pela Constituição, é a Defensoria Pública que prestará esse serviço público. Entretanto, trata-se de um de órgão que não possui estrutura e valorização para a consecução de seus objetivos.

Em São Paulo, por exemplo, a Defensoria Pública foi criada com 17 anos de atraso. Todavia, sua criação não pressupõe que o serviço será efetivamente prestado. Existem somente 400 cargos de Defensores Públicos, o que gera uma média de 1 Defensor para cada 58 mil potenciais usuários do serviço e mais de 100 mil na relação absoluta defensor por habitante. Além do número insuficiente, sua remuneração é a mais baixa dentro do sistema de Justiça, o que gera uma evasão muito grande de seus quadros para outras carreiras, tornando-se desigual a distribuição de justiça. As portas dos tribunais ainda estão fechadas para os pobres.

A Declaração Universal de Direitos Humanos e a Constituição Federal são marcos históricos na proteção do ser humano, o que deve, sem dúvida, do ponto de vista da Declaração de Direitos, ser comemorado. Entretanto, quanto à sua implementação, ainda estamos muito longe de alcançar uma proteção mínima para a garantia da existência digna da pessoa que nos faça comemorar. Enquanto o Estado não garantir aos milhões de condenados da terra uma vida com um mínimo de dignidade, a comemoração só poderá ser feita por aqueles que possuem acesso aos seus direitos, que por sinal, no Brasil, é a minoria.

De qualquer maneira, como única forma de resgate de nossa digna luta por um patamar mínimo de civilidade, respeito aos direitos e à cidadania, não podemos nos esquecer de comemorar a existência daqueles que buscam esse desenvolvimento maior, esse desenvolvimento que não se resume a belas pontes, trens, avenidas e construções. Comemoremos, assim, a existência dos concretos defensores dos Direitos Humanos, pois nesse universo jurídico de tecnicismo repetitivo e sem vitalidade, “eles têm sido e são o sal da terra”.

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