Políticas e ideológicas

Falta de autonomia deixa Polícia à mercê de ingerências

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19 de dezembro de 2008, 11h03

O aperfeiçoamento das instituições públicas tornou-se um dos principais vetores rumo à consolidação de uma sociedade democrática. Um país não se governa tão-somente com leis, decretos, regulamentações e burocracias (muitas vezes incompatíveis com a realidade social na qual se inserem). Uma nação, ao contrário, se faz a partir de instituições fortes e ações públicas eficientes, que aumentam a legitimidade dos poderes constituídos e, ao mesmo tempo, pela sua eficácia e abrangência, proporcionam à coletividade uma sensação mínima de cidadania e inclusão social. Essa é a contraparte imprescindível que o Estado, dentro das funções que lhe cabem, precisa dispor para viabilizar um nível razoável de coesão social.

Um dos caminhos para se garantir o fortalecimento das instituições e a conseqüente eficácia das ações governamentais, passa pela criação de políticas públicas nas quais os agentes do Estado sejam devidamente considerados. A competente gestão de pessoal é uma estratégia que podemos tomar emprestada às instituições privadas, uma vez que todas elas já se deram conta de que seu maior patrimônio reside precisamente na capacitação e valorização de seus colaboradores. Esse, aliás, é um dos princípios basilares da administração moderna, que não pode ser mais ignorado pelos gestores da coisa pública.

Em outra direção, podemos também apontar como fator estratégico na modernização do setor público medidas que impliquem na consolidação definitiva de princípios administrativos constitucionais, tais como a impessoalidade, moralidade, eficiência e, sobretudo, os princípios republicanos da independência institucional e da supremacia do interesse coletivo.

É dentro dessa ótica que reclamamos atenção especial para os seguimentos da segurança pública. Eles compõem, dentro do aparato estatal, um conjunto de instituições cujas atribuições concorrem para a garantia daquilo que a tradição anglo-saxônica chama de rule of law (domínio da lei), tão caro aos regimes democráticos. As forças policiais, nesse particular, são instituições implicadas diretamente na manutenção da ordem pública, sendo esta um requisito indispensável ao livre exercício dos direitos e liberdades fundamentais.

Não é por outra razão que a atividade policial está inclusa entre as carreiras típicas de Estado, para cujas atribuições o legislador constituinte reservou um lugar especial em nossa magna carta. Entretanto, em que pese a segurança pública figurar como um dever precípuo de Estado, a realidade nos mostra que os órgãos policiais vem sofrendo interferências políticas de sucessivos governos.

O efeito deletério das ingerências sobre a polícia já seria por si mesmo indesejado; contudo, há inúmeras outras variáveis que tornam esse quadro ainda mais nocivo. Culturalmente, viemos de uma tradição política lusitana de cunho patrimonialista, na qual o interesse privado costuma se imiscuir livremente na esfera pública; logo, é comum que aspirações particulares se sobreponham aos interesses coletivos, colocando o poder público a serviço de segmentos sociais bem específicos.

Essa tendência culturalmente enraizada em nosso país se traduz de forma bastante anedótica pelo provérbio atribuído a um dos maiores expoentes do Estado patrimonialista brasileiro, Getúlio Vargas, quando declarou: “aos amigos, tudo; aos inimigos, os rigores da lei”. E é digno de nota que esse tipo de mentalidade se coaduna perfeitamente com as concepções políticas do teórico nazista Carl Schimitt, que pregava a dicotomia beligerante do “amigo versus inimigo” como arquétipo das relações políticas nos mais diversos níveis.

Retomando o foco sobre a segurança pública, resta-nos indagar qual seria o papel da Polícia nessa conjuntura em que as leis são aplicadas segundo um moto político de caráter personalista. Será que as leis devem se submeter a um desideratum particular, que elege os “inimigos” de ocasião e sobre eles recaem com todo o seu rigor? Ou, inversamente: devem ser volatizadas, relativizadas, quando seus alvos forem, por assim dizer, os “amigos do rei”?

Essas antinomias nos usos do poder e na aplicação das leis, contudo, não se restringem a disputas político-partidárias em uma perspectiva, digamos, horizontal. Elas possuem também sua verticalização, na medida em que geram reflexos sobre as relações interclasses sociais. Esse é o componente ideológico propriamente dito, que pode ser tomado em sua acepção consagrada pelos teóricos do marxismo.

A ideologia, segundo essa ótica, é entendida como um instrumento de dominação que age de forma sub-reptícia através do ambiente cultural (superestrutura). Embora nunca se imponha por meio da força física, sua influência é quase irresistível. Assim, a ideologia funciona como uma espécie de “falsa consciência”, que imprime um caráter coletivo e universal a um conjunto de valores, idiossincrasias, ou visão de mundo, que em sua origem são particulares, já que pertencem a grupos sociais hegemônicos.

E aqui parece estar traçado o destino da instituição policial no quadro que se desenha. Em razão das múltiplas influências que sofre, acaba pervertendo os usos de seu poder coercitivo ao colocá-lo a serviço de interesses esconsos, imbuídos unicamente na manutenção de um status quo que lhes seja favorável. E esses grupos influentes podem ser representados tanto pelos que eventualmente se valem do poder político, quanto por aqueles que desde sempre se impuseram pelo poder econômico.

Esse é o corolário político de um Estado de configuração patrimonial, clientelista, ineficiente e personalista, descrito por Raymundo Faoro como origem de toda burocracia e corrupção nacionais. E é nessa conjuntura que o privilégio se institucionaliza e o bem comum torna-se apenas um conceito vago, intangível, encontradiço unicamente em discursos parlamentares.

Mas, prossigamos em nossas indagações. Se as leis não são feitas para todos, segundo esse modelo, como garantir que seus efeitos não se ressintam indistintamente? Quais estratégias o sistema se utiliza para que o poder e as leis sejam ideologicamente manipulados em prol de interesses alheios, tal como descrevemos anteriormente? Presume-se que as estratégias sejam as mais sutis, quase imperceptíveis no complexo jogo de forças envolvidas no campo político e econômico. Entretanto, no tocante às instituições policiais, podemos formular algumas hipóteses com certo grau de verossimilhança.

Já vimos que a Polícia se põe a serviço de grupos partidários quando se submete às constantes ingerências de sucessivos governos. Em que pese a natural alternância de poder nos regimes democráticos, ainda assim testemunhamos um reiterado uso político da máquina pública. Como os órgãos policiais ficam subordinados aos governos eleitos, seus gestores terminam por ser designados, invariavelmente, a partir de afinidades políticas. Ainda que em alguns casos haja espaço para o mérito, a cartilha partidária acaba falando mais alto, e estará pronta a defenestrar o primeiro que lhe contrarie os caprichos. E é dessa forma que a Polícia perde toda autonomia e fica refém das conveniências políticas de ocasião.

Delineamos aí, portanto, uma das estratégias que o sistema se vale para criar uma espécie de blindagem ao franco exercício da atividade policial. A outra, talvez mais capciosa, é decorrente de uma omissão deliberada das autoridades públicas, cujo descaso para com os órgãos de segurança produz o seu inevitável sucateamento. A todo o instante, vemos instituições policiais atribuladas por inúmeros problemas estruturais e logísticos, que comprometem radicalmente a qualidade dos serviços que prestam à sociedade. As dificuldades encontradas são as mais diversas: quadros deficitários, mal capacitados, plano de carreira antiquado, tecnologia defasada, carência de equipamentos e uma remuneração absolutamente irrisória. Eis aí os ingredientes necessários para se fazer uma Polícia subserviente, corrupta e truculenta.

E essa degradação sistemática dos órgãos de segurança pública termina por deixá-los à mercê de um poder econômico que, embora aparentemente insuspeito, encontra-se muitas vezes vinculado a facções criminosas articuladas, com ramificações no governo, e que se aproveitam da fragilidade organizacional das Polícias para assediá-las e corrompê-las.

Paralelo a isso, uma onda de descrédito institucional se propaga rapidamente entre a população, e dissemina no país uma verdadeira cultura do crime e da contravenção, que acaba encontrando solo fértil na sensação generalizada de impunidade. Esse estado de coisas afeta mais intensamente as classes menos favorecidas, que não costumam ter por parte da justiça a benevolência de que desfrutam as classes privilegiadas (ainda que os crimes do “colarinho branco” sejam socialmente muito mais danosos).

Ao contrário do que se tem alardeado cinicamente por aí, estamos longe de ter hoje no Brasil algo semelhante a um Estado policial. Estamos muito mais próximos de uma espécie de “Estado marginal”, onde a corrupção nos mais diversos níveis, a injustiça e os desmandos políticos freqüentam cotidianamente o noticiário nacional. Se Rui Barbosa vivo fosse, diria a mesma coisa que disse há quase cem anos atrás:

De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto. (Senado Federal, RJ. Obras Completas, Rui Barbosa. v. 41, t. 3, 1914, p. 86)

É dentro desse quadro, portanto, que devemos considerar a urgência de se fortalecer as instituições públicas, com atenção especial para os órgãos policiais. Esse objetivo só será alcançado no dia em que tivermos uma Polícia verdadeiramente republicana, autônoma, livre de interferências político-ideológicas; capacitada técnica e cientificamente para atuar em um ambiente de respeito aos Direitos Humanos; e enaltecida por uma sociedade capaz de lhe retribuir com uma pecúnia a altura de sua nobre missão.

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