Limites dos direitos

Direitos do cidadão têm sido usados contra ele próprio

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19 de dezembro de 2008, 11h59

A Declaração Universal dos Direitos Humanos completou 60 anos. Mundialmente, mais difícil do que garantir os direitos nela prescritos, está a disposição contida no Artigo XXIV: “3. Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos propósitos e princípios das Nações Unidas.”

Nele está implícito o estabelecimento de limites para que os direitos garantidos não sejam utilizados ao arrepio da principiologia daquela Carta, seu espírito, seu componente teleológico: a valorização do homem em seu amplo espectro, particularmente enquanto integrante de uma sociedade, da qual não pode ser vítima e nem violentá-la.

No Brasil, o aniversário daqueles Preceitos foi marcado por aquele desafio, para que os direitos não possam ser exercidos de forma contrária àqueles princípios. Nesse sentido, entre os exemplos, o uso de algemas figura como uma das vertentes mais polêmicas. Não deixa de ser uma contradição, não se admitir o uso de algemas – o mal menor, ao mesmo tempo em que a sociedade admite o mal maior – a prisão. É justamente por fugir a uma lógica tão primária que as discussões sobre o assunto, mesmo sob a bandeira de defesa dos direitos humanos, são viciadas e perdem a credibilidade.

Concorrem para aquela realidade outras agravantes. A primeira é que, finalmente, a Polícia Federal prendeu um figurão que, segundo uma reportagem da revista Veja, edição 2.068, de 16 de julho último, teria laços suspeitos tanto com o atual governo, quanto com o anterior.

“O banqueiro que esteve no centro dos maiores escândalos de corrupção da última década foi preso duas vezes em uma única semana. Ah, se ele contasse o que sabe!”, destacou a revista sob o título “Dantas contra a parede”. No corpo da reportagem, o veículo relaciona ações milionárias suspeitas, operações lesa-pátria sem precedentes, até acentuar: “Poucos homens de negócios representam com mais nitidez a natureza perversa do capitalismo brasileiro dependente do estado macrófago do que o banqueiro”.

Feitas as ressalvas ao jornalismo praticado por aquele periódico, uma figura de repercussão, com supostos laços fortes com a atual estrutura do Estado, do presente e do passado, foi presa e o trato da questão foi diferenciado. Acabou se consolidando no imaginário coletivo a figura do banqueiro, rico, intocável e, conseqüentemente, não algemável.

Em meio ao debate, o Supremo Tribunal Federal expediu com inusitada urgência a Súmula 11, considerada por muitos um desserviço ao princípio da igualdade constitucional. Diz aquela decisão que: “Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.

Na prática, a decisão não vetou o uso, mas jogou o assunto para o nebuloso e controvertido campo da subjetividade, ao se referir a “fundado receio de fuga ou perigo”, abrindo um vasto campo para especulações para nulidades processuais. Leia-se, impunidade.

Mais uma vez, ficou difícil para o cidadão comum entender o “behind Word” de que falam os ingleses. Parte-se de presunções, cujo raciocínio o cidadão comum não alcançará: quem por presunção não foge das algemas goza da mesma presunção de que da cadeia também não fugirá. A prevalecer a lógica econômica, poderá até fugir do País. No campo da subjetividade, esses cidadãos privilegiados poderão, caso condenados, ficar até mesmo em suas casas, num quarto de hotel. Afinal, da cadeia ou de casa, de lá não fugirão, poderão circular livremente, pois não irão se evadir. Em resumo, aquela súmula acabou por reforçar, indiretamente, o estigma das algemas para os consagrados três “P”, “pobre, preto e prostituta”.

Algema é tema polêmico, sendo usada ou não, desde que o preso seja famoso, pertença à classe abastada. Não foram poucas as críticas à Polícia Federal quando da prisão do ex-juiz Nicolau dos Santos Neto. Ele fora preso longe das câmaras, sem algemas, sob forte esquema de segurança para que não fosse filmado. As poucas imagens de Nicolau foram captadas por uma grande emissora de televisão através de uma vidraça quebrada na escadaria da PF paulista. Ainda assim, foi preciso a ajuda de uma lente de aproximação. Também ali, os crimes foram esquecidos e a imprensa passou a dar cobertura ao protecionismo exercido pela Polícia Federal. Para a mídia, a regra era mostrar.

Outro foco comprometedor das discussões pode residir ou se acentuar no fator ano político, em que o que menos importa, para grande parte dos políticos, é o bem estar social, o progresso, a consolidação da democracia no País. O mais importante na selvageria política, quando se está na oposição, é defenestrar o concorrente. Dentro desse contexto, o debate se vicia por deixar transparecer o ranço político, quando a Polícia Federal começou a prender financiadores de campanhas.

Algemas na berlinda, o Artigo XXIV, 3, da DUDH em cheque, o debate precisa ser aprofundado, pois, afinal, o que não falta nos fins de tarde na televisão brasileira é a exibição de pessoas algemadas, jogadas nos camburões, sob o achincalhe e execração de um apresentador virulento. Sobre isso, paira o silêncio de muitos críticos das algemas.

Pela contradição, por fugir a lógica primária do poder prender e não poder algemar, por poder mostrar o pobre e não poder mostrar o rico, o debate perde a credibilidade. A discussão sobre o combate à corrupção perde espaço para o método usado contra um “figurão”, o que serviu de mote até para expedição de uma súmula, que empurra o tema na seara das presunções.

O debate sobre as algemas não é primário apenas entre os defensores dos figurões. Dentro da PF, ele engatinha. “É preciso fomentar a consciência, a obrigação de preservar a imagem dos presos. Mas os “cana-dura” insistem em querer exibir o preso como um troféu, com pouca ou nenhuma prova”, avalia o delegado federal Walace Pontes, da PF capixaba. Com essa ressalva, ele abre uma vertente feliz do debate que é o uso ostensivo de algemas, o constrangimento em si, que reside na exibição do preso algemado. Faz coro com ele a delegada Arryanne Queiroz, da PF do Distrito Federal: “É preciso coibir a exposição popularesca do indivíduo algemado”.

Going to the point, como dizem os magistrados ingleses, a Polícia Federal tem cometido falhas até abusivas, quando já chegou a permitir a veiculação de imagens de presos trajando cueca, outros recém-despertados. Tudo, registre-se, em detrimento do direito de imagem das pessoas, com afronta às próprias normas internas da PF, que formalmente condena a prática. A propósito, antes de cada operação, além dos detalhes técnico-operacionais, são feitas recomendações quanto à preservação da imagem das pessoas, entre outros avisos.

O homem, quando preso, sofre poucas restrições em seus direitos de cidadão, entre as quais um dos maiores: a liberdade, mas a grande maioria sobrevive, inclusive o de ter sua imagem reservada. Na PF, não são poucas as críticas internas. Num recente congresso, afirmou um delegado que não quis se identificar: “Cansamos de participar de operações com vários presos e, na hora de interrogá-los, não somos munidos com os indícios de materialidade nem de informações suficientes para uma perfeita avaliação do caso”. Segundo ele, “a pasta do alvo não contempla indícios robustos o suficiente para ensejar até mesmo um pedido de prisão”. “Por vezes”, diz o policial, “tudo que se tem é um áudio, sem que se tenha uma noção se é só aquilo ou se integra um quebra-cabeça que ao final terá algum sentido”. É com base em fragilidades como essas que, em algumas operações, pessoas são presas, algemadas e exibidas à sociedade. Tratam-se de vícios, que embora não configurem regra, que podem ser superados e contribuir para melhorar o nível da discussão, o aperfeiçoamento dos trabalhos.

Debate viciado, a PF está sob o risco de que atos da espécie fragilizem outros trabalhos, em que policiais mostraram o melhor de seus talentos, atingiram melhor os fins do Estado. De outro lado, em discussão a aura da Justiça, onde, ainda que se reconheça que a decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes possa ter sido constitucional, técnica e amparada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, as circunstâncias em que a decisão foi tomada estão longe de afastar do imaginário popular a idéia de que a justiça existe apenas para proteger os ricos.

Nesse largo espectro de contradições, emerge o desafio de pôr em prática a máxima da presunção da inocência diante da necessidade de se impedir que os direitos não possam ser exercidos de forma contrária aos princípios das Nações Unidas. Nesse sentido, a corrupção, fonte de ameaça a todos os outros direitos da Carta Universal, mote para interceptações telefônicas, uso de algema, sinaliza com a necessidade de se ampliar o debate e torná-lo menos vicioso. Limites! Eis a palavra-chave, posto que a contundência da realidade não pode fomentar o espírito da tirania, numa sociedade em que o próprio direito corre o risco de ser utilizado contra ela própria. Que venham as sapatadas!

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