Administração do trânsito

Governo transfere ao cidadão a culpa pelo caos no trânsito

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13 de dezembro de 2008, 8h47

Decepcionante, sob qualquer prisma, o projeto de lei que acaba de ser aprovado pelo Senado, exigindo um ano de habilitação para que o motorista possa dirigir em estradas. Segundo o referido projeto os novos motoristas terão apenas uma permissão para dirigir em perímetros urbanos durante esse período, só depois podendo sair para as rodovias.

Trata-se de mais uma proposição destinada a esconder a ineficiência do sistema de fiscalização do trânsito e atribuir uma vez mais ao cidadão culpa que não tem.

Não quer o governo assumir sua exclusiva responsabilidade pelo caos na administração do trânsito em todos os níveis da federação.

Antes, para justificar a compra e instalação de radares como armadilhas nas ruas e estradas, indicava-se o excesso de velocidade como o responsável pela maioria dos acidentes. Há pouco tempo, passou-se a acusar o bêbado pelos acidentes nas vias públicas. Aprovou-se a chamada lei seca, até com inaceitáveis abusos de inconstitucionalidade. A fiscalização continuou deficiente. Vê-se agora que de nada ou pouco adiantou a referida lei. Agora, aponta-se o novo motorista como o culpado pelos mesmos acidentes. A fiscalização continuará falha e, então, diante da ineficácia da futura lei, as autoridades governamentais já terão outro bode expiatório.

O certo é que a administração de trânsito não existe ou é absolutamente inoperante.

De fato, o único sistema de fiscalização a funcionar na prática é o dos radares foto-eletrônicos que, de forma muito suspeita porque instalados ou mantidos por empresas remuneradas pela quantidade de autuações lançadas, registram supostas ocorrências de excesso de velocidade.

Infrações muito mais graves, de responsabilidade de velhos, novos, dopados, embriagados ou sóbrios motoristas, deixam de ser objeto de autuação.

Na cidade de São Paulo, aqui citada como exemplo porque, é de pasmar, segundo as autoridades nacionais de trânsito, é localidade em que a lei tem elevado nível de cumprimento, gravíssimas infrações de trânsito são constatadas a cada segundo por quem quer que utilize as ruas, seja como motorista, seja como pedestre.

Ônibus e caminhões, sempre conduzidos com excesso de velocidade, não observam qualquer sinalização, estacionam inadequadamente e em locais proibidos, fazem ultrapassagem indevida a todo o momento, avançam em sinais vermelhos e sobre pedestres mesmo nas faixas de travessia, sob equipamento foto-sensor e, pior, sob o nariz de agentes da polícia de trânsito, numa indicação de que a fiscalização falha deliberadamente e com aparente corrupção de seus agentes. As motocicletas atentam sob todas as formas contra o princípio básico da ordem no trânsito, que é a previsibilidade, sempre agindo com irregularidade e surpreendendo outros condutores e pedestres, com violência e malabarismos indescritíveis. Fazem das estradas e das ruas da cidade um verdadeiro rali de camicases e, por isso, não se preocupam também com a vida alheia.

Além disso, as vias públicas são mal acabadas, mal sinalizadas, mal iluminadas, com faixas divisórias de pistas apagadas, quando não fixadas sem margem de segurança para a movimentação de veículos, invariavelmente cheias de obstáculos (veículos, caçambas, carroças, entulho, lixo, buracos, inclinações e lombadas em situação visivelmente irregular), numa demonstração inequívoca de que o maior responsável pelos acidentes fatais na cidade é o próprio governo. E isso não é diferente nas rodovias.

Aliás, nas autovias nacionais, todo dia e toda hora, há os chamados viajantes da pista da esquerda, donos do mundo. Em geral andam em baixa velocidade. Não permitem que ninguém os ultrapasse, senão pela direita. Há os privilegiados ou da vantagem, únicos com o direito de chegar na frente, os escolhidos, que tomam em alta velocidade os acostamentos. Esses, mesmo velhos de carta, como se diz, deveriam ter suspensa a habilitação, porque não raramente causam transtornos e acidentes, com danos a toda a sociedade.

Todavia, para eles, não há fiscalização e conseqüente punição.

É necessário considerar, de qualquer modo, que as infrações, praticadas, ao contrário do que se propaga, tanto por velhos como por novos motoristas, poderiam ser evitadas, em grande parte, com suficiente campanha educativa, através de orientação pessoal de agentes da administração pública ou por meio de sinalização, com placas mais informativas do que ameaçadoras.

O que sucede, na verdade, é que, na medida em que se tornou conveniente transformar o Código de Trânsito em Código Tributário, um instrumento de arrecadação, quanto mais infrações existirem, melhor para o orçamento dos governantes.

O que ninguém quer tornar transparente é a real destinação que tem sido dada à arrecadação das multas de trânsito que, de acordo com o CTB, deve ser aplicada, exclusivamente, em sinalização, engenharia de tráfego, de campo, policiamento, fiscalização e educação de trânsito. Uma coisa é incontestável: a sociedade não tem visto esse retorno.

Ora, qualquer projeto para tornar mais rigorosas as sanções contra os motoristas ou restringir-lhes os direitos deveria pressupor uma situação ideal ou exigir, primeiro, a implantação de uma malha viária sem falhas e um sistema de fiscalização comprovadamente eficiente. Só é possível aprimorar o que já funciona em condição de regularidade. Em outros termos, não é possível melhorar o que não existe.

Não se deve imputar ao cidadão unilateralmente a responsabilidade pelos defeitos de um sistema cujo funcionamento depende predominantemente do Estado.

E o projeto inicialmente mencionado, mesmo em circunstâncias ideais, revelar-se-ia ineficaz e até injusto. Basta, pois, imaginar o fato de que, para o cumprimento da nova lei, se aprovada, motoristas das cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, por exemplo, que têm no seu território urbano vias com mais de dez quilômetros de extensão, com várias pistas de elevada velocidade, com um volume de milhares de veículos por hora, mesmo sendo considerados habilitados a conduzir veículos em situação tão complexa, só terão o direito de dirigir em pacatas estradas do interior depois de um ano da habilitação.

Para dizer com outras palavras, seria o mesmo que exigir do médico experiência em cirurgias neurológicas para dar a ele habilitação de clínico geral.

Esqueceu-se o Senado de que milhares de condutores de veículos nas cidades e estradas brasileiras, velhos ou jovens, nem mesmo contam com uma carteira de habilitação, ou porque nunca a tiveram ou porque tiveram o seu direito de dirigir suspenso. E sem fiscalização efetiva nas ruas e rodovias isso nunca mudará.

O que dizer daqueles que, em grande número, conseguem dos órgãos competentes, no endêmico esquema de corrupção, por meio de falsificação de documentos, sua carteira de habilitação, sem nunca ter freqüentado curso teórico ou prático de trânsito? Certamente as vias públicas nacionais continuarão ocupadas por incontáveis falsários, com carteira fajuta de habilitação de motorista datada de mais de ano.

Talvez fosse o caso, então, de exigir o povo que o deputado ou senador só tivesse autorização para apresentar projetos de lei depois de um ano de experiência na apresentação de projetos para alteração do regimento interno de sua casa legislativa.

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