Mera coincidência

Produtora de Cidade de Deus não precisa indenizar ex-traficante

Autor

8 de dezembro de 2008, 19h43

A produtora 02, do cineasta Fernando Meirelles, não terá de pagar indenização por danos morais e materiais a Ailton Costa Bittencourt, conhecido como Ailton Batata ou apenas Batata. Ele afirma que sua história foi contada no filme Cidade de Deus sem que tenha dado autorização para isso e sem receber direitos de imagem. A sentença que rejeitou o seu pedido é do juiz Wilson Marcelo Kozlowski Junior, da 3ª Vara Cível da Comarca de São Paulo.

Segundo Bittencourt, o personagem Sandro Cenoura, interpretado pelo ator Matheus Nachtergaele, foi inspirado na sua vida, na época em que era traficante e disputava o controle das bocas-de-fumo da Cidade de Deus, na zona oeste do Rio de Janeiro, com outro traficante conhecido como Zé Pequeno.

Batata participou das guerras entre traficantes na década de 70, o mesmo período que o filme retrata. Ele um é dos poucos sobreviventes da época em que não existiam facções criminosas como o Comando Vermelho. Ele foi condenado a 36 anos por dois homicídios e cumpriu 15. Hoje, trabalha para uma ONG ajudando ex-detentos a conseguirem empregos.

Ele afirma que o filme o submeteu a um novo julgamento da sociedade e que seu filho seria alvo de piadas sendo chamado de “Cenourinha”.

Para o juiz Kozlowski, as coincidências entre o personagem e Bittencourt são insuficientes para comprovar que ambos são a mesma pessoa. Ele diz também que diversos fatos relatados no filme não fazem parte do livro e nem da biografia penal de Bittencourt, sendo uma visão romanceada da época.

O juiz rejeitou o pedido entendendo que “as referências são acidentais e somente são plenamente identificáveis por aqueles que conhecem a fundo a vida do autor e não por qualquer pessoa que o encontre pelos caminhos desta vida, além do nome, a alcunha e a imagem serem distintos”.

Leia a decisão

Processo Número 2003.001.014617-3

TJ/RJ – 08/12/2008 10:13:31 — Primeira instância — Distribuído em 06/02/2003

Comarca da Capital Cartório da 3ª Vara Cível

Endereço: Erasmo Braga 115 sala 321D

Bairro: Castelo

Cidade: Rio de Janeiro

Ofício de Registro: 4º Ofício de Registro de Distribuição

Tipo de ação: Indenizatória

Rito: Ordinário

Autor

AILTON COSTA BITTENCOURT

Réu

02 FILMES e outro(s)…

Denunciado

PAULO CÉSAR DE SOUZA LINS e outro(s)…

Listar todos os personagens

Advogado(s):

RJ100182 — JOSE RONALDO FERREIRA BEZERRA

SP093549 — PEDRO CARVALHAES CHERTO

SP162166 — HELENA ARTIMONTE ROCCA

RJ089525 — TATI FERREIRA NETO

RJ081132 — SUSANA PAOLA BARBAGELATA KLEBER

Movimento:

118

Tipo do movimento:

Conclusão ao Juiz Vinculado

Atualizado em: 05/12/2008

Juiz:

WILSON MARCELO KOZLOWSKI JUNIOR

Data da conclusão: 05/11/2008

Data de devolução: 04/12/2008

Data do ato: 04/12/2008

1. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAS CUMULADA COM INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS, tendo como causa de pedir a exposição não autorizada da vida do autor no filme ´Cidade de Deus´. 2. Inicial de fls. 02/24 acompanhada de os documentos de fls. 25/148. Decisão deferindo gratuidade de justiça ao autor às fls. 149. Contestação do réu 02FILMES às fls. 198/221, acompanhada dos documentos de fls. 222/537. Contestação do réu LUMIERE às fls. 539/548, acompanhada de os documentos de fls. 549/560. Contestação do réu VIDEOFILMES PRODUÇÕES ANRTÍSTICAS LTDA às fls.562/574, acompanhada de os documentos de fls. 575/582. Contestação da ré TV GLOBO LTDA às fls.583/606, acompanhada de os documentos de fls. 607/644. Réplica às fls. 647/655. Manifestação da parte autora em provas às fls. 664 e da parte ré às fls. 661/662, 666/667, 669 e 672. Documentos juntados pelo autor às fls. 678/682. Manifestação da parte ré sobre os documentos acostados às fls. 685/868, 688/689 e 691/693. Decisão deferindo a denunciação da lide às fls. 694. Contestação da denunciada EDITORA SCHWARCZ às fls. 728/744, acompanhada de os documentos de fls. 745/776. Réplica às fls. 780/785. Manifestação da parte autora informando as provas que pretende produzir às fls.794 e da parte ré às fls. 789, 796, 798, 800, 804/805. Contestação do denunciado PAULO CÉSAR às fls. 814/832, acompanhada de os documentos de fls. 833/835. Decisão deferindo a juntada de prova documental às fls. 838. Réplica às fls. 847/849. Manifestação da parte ré 02 FILMES sobre a contestação do denunciado PAULO às fls. 852/853. Ata da audiência de conciliação às fls. 875. Decisão deferindo a produção de prova pericial às fls. 906. Quesitos às fls. 908, 909/910 e 914/916. Saneador às fls. 945/946. Agravo retido às fls. 958/962, 969/971 e 972/973. Decisão mantendo a decisão agravada às fls. 976. Decisão acolhendo embargos de declaração às fls. 982. Ata da AIJ às fls. 1038/1040. Alegações finais às fls. 1051/1063, 1064/1065, 1067/1071, 1072/1074 e 1075/1085. 3. Relatados, segue-se com a sentença.


II – FUNDAMENTAÇÃO

4. A pretensão do autor se finca na existência de danos à sua personalidade em razão da produção e exibição do filme ´Cidade de Deus´ no qual é contada a história de uma conflagração entre pessoas envolvidas com o tráfico de entorpecentes na referida localidade na zona oeste do Rio de Janeiro. Em tal história, há o relato, segundo alega, da vida do autor, o qual seria conhecido como ´Ailton Batata´ ou ´Batata´ pessoa envolvida com o tráfico ilícito de entorpecentes e que participou dos eventos narrados no filme. O autor alega que no filme é o personagem ´Sandro Cenoura´, o qual foi o único personagem do evento que teve o nome e alcunha trocados. Em razão da exibição do filme sua vida e seus atos estariam submetidos a novo julgamento pela sociedade e os seus parentes, especialmente o seu filho, estariam sendo alvo de violações à integridade moral, já que o filho estaria sendo chamado de ´Cenourinha´. Legitimidade passiva

5. A solução da demanda transcende a simples declaração de ilegitimidade passiva dos réus LUMIERE e GLOBO COMUNICAÇÕES, uma vez que, como já assentado, a decisão proferida no sentido de se reconhecer a legitimidade passiva (fls. 945/946) foi proferida no distante mês de setembro de 2006, sendo que o processo, por definição, é um caminhar para a frente.

6. Ademais, a despeito de o Código de Processo Civil ter adotado a distinção entre sentenças terminativas e definitivas de mérito, no caso das chamadas condições da ação tal separação perde efeito prático em várias hipóteses, posto que a extinção do feito por se dizer que alguém tem ou não legitimidade para o exercício da ação, possui ou não interesse (adequação e/ou necessidade) e que o pedido é admitido pelo ordenamento jurídico traz necessariamente em si a afirmação ou negativa do direito material. Em situações como a presente, em que o feito se protraiu por tanto tempo, é de se entender que a sentença terminativa não é a melhor solução, culminando o Judiciário por se afastar de seu escopo – a pacificação social com justiça . A se preservar a distinção técnica, porém artificial, o intérprete terá necessariamente que fazer concessões a teorias incompatíveis com o próprio ordenamento pátrio, sem embargo das normas insertas nos artigos 267 e 269 do CPC, isto porque se negará a apreciar o mérito seja com base na teoria concretista do direito de ação ou eclética, restando sem explicação alguns questionamentos . Ao fim, malgrado o indiscutível mérito do Ministro BUZAID na sistematização do Processo Civil brasileiro, é acertada a visão de MARINONI e ARENHART: ´(…) é evidente que a sentença que afirma a ausência de condição da ação e a sentença que julga improcedente o pedido (por não ter o autor o direito que afirma possuir), têm o mesmo efeito. Em outras palavras, não há vantagem alguma em se falar em sentença de carência de ação, em vez de se pensar em sentença de improcedência do pedido. Na verdade, como a afirmação da ausência de condição da ação dia alguma coisa no plano do direito material, é equivocada a posição do nosso Código de Processo Civil, no sentido de que o juiz pode sentenciar afirmando a ausência de condição da ação ou sentenciar afirmando a existência ou não do direito material afirmado em juízo.´

7. É de se registrar, ainda como razões de decidir a questão processual, que o autor entende que os réus lhe trouxeram sofrimento moral, sendo dever esclarecer se houve ou não a conduta danosa por parte dos réus.

Denunciação da lide

8. No que diz respeito à litisdenunciação, a melhor solução aponta para a sua rejeição, visto que o contrato de cessão celebrado entre as partes não sustenta a responsabilidade dos cedentes dos direitos autorais sobre a obra literária quanto ao que foi feito a título de obra cinematográfica, conforme se depreende de suas cláusulas, especialmente a décima.

9. Tal assertiva é reforçada na medida em que se constata que a garantia contra turbações externas ao uso do direito cedido não faz com que o concedente se responsabilize pelas conseqüências advindas do uso da obra, como é o caso.

10. Desta feita, a denunciação da lide é de todo improcedente. Mérito

11. A questão de fundo cuida dos lindes da liberdade de expressão e a da tutela jurídica de danos à personalidade relacionados ao uso deste direito.

12. A liberdade de expressão possui, assim como os direitos da personalidade, especial tutela pelo ordenamento constitucional, conforme se depreende dos artigos 5º, IX, e 220 da CRFB/88.

13. A despeito de ser possível solucionar a questão lançando mão dos mecanismos de ponderação de valores, tal como já o fez o Supremo Tribunal Federal, é de se registrar o alerta de HABERMAS sobre o politeísmo de valores na sociedade contemporânea, sendo preferível o delineamento dos direitos em comento, identificando os seus campos de proteção e verificando se há uma violação objeto de tutela pelo ordenamento jurídico.


14. Não se ignora, neste desiderato, que os direitos da personalidade são expressões do baldrame republicano dignidade humana (artigo 1º, III da CRFB/88), algo que a liberdade de expressão também o é.

15. Em primeiro lugar, não se vislumbra como adequada a solução proposta no sentido de se rejeitar ou reduzir a proteção daqueles que são pessoas públicas, visto que tal entendimento culmina por fazer uma distinção onde não existe suporte a tanto. Melhor explicando, ao se dizer que uma pessoa pública ou que se envolveu em algum fato público não é protegida pela norma jurídica como uma pessoa comum ou anônima cria-se uma distinção artificial dentro da norma quando, em verdade, a distinção é dada pela própria fattispecie, ou seja, o que é distinto não é a norma ou a proteção dela decorrente, mas sim a situação fática é que pode culminar em um resultado distinto, dadas as suas peculiaridades.

16. A liberdade de expressão é considerada como um dos alicerces do chamado Estado constitucional, já que possibilita o desenvolvimento das individualidades ao fortalecer o espírito e as suas manifestações, desenclausurando o ser, o qual pode não só criar mas, sobretudo, ter acesso ao que os outros seres criam nas artes e ofícios.

17. Como se colhe em MACHADO, a liberdade de expressão ´(…) tem um relevo básico e uma posição preferencial na ordem constitucional, na medida em que constitui um pressuposto para a própria construção e manutenção discursiva dos seus princípios estruturantes e dos direitos fundamentais em geral.´ .

18. Por outro lado, os direitos da personalidade tutelam o ser como ele é, havendo, então, uma esfera de proteção que diz respeito aos caracteres identificadores de um ser, como ocorre com o nome, a imagem, a honra, a integridade psico-física etc.

19. Sem qualquer meias palavras, é de se pontuar que as obras do espírito criadas em um ambiente livre podem ser ofensivas aos direitos da personalidade, dês que assim concretamente se apresentem. O conflito entre os direitos em comento dispensa a ponderação, já que a esfera de proteção de liberdade de expressão é, por evidente, limitada, sendo que os lindes estão justamente na rejeição de toda e qualquer obra que venha a ser considerada ofensiva aos direitos e valores fundamentais como, por exemplo, os direitos da personalidade e a dignidade humana. Tal assertiva quer dizer que a liberdade em análise, como não poderia deixar de ser, possui em si mesma a limitação, tudo decorrente de uma hermenêutica concretizadora do texto constitucional.

20. Delineadas as breves razões acima, é possível questionar se a obra cinematográfica ´Cidade de Deus´ é violadora do direito da personalidade do autor. A resposta, sem maiores digressões estilísticas, é negativa, conforme ora se ajusta a teoria à fattispecie.

21. O nome, o codinome, a família e a vida do autor já foram objeto de ampla divulgação pelos meios de comunicação, como o próprio assevera em sua inicial, juntando provas documentais de tanto. O conhecimento do privado pelo público se deu em razão de o autor ter se envolvido com o tráfico ilícito de entorpecentes e outros crimes, restando condenado e tendo cumprido pena por estes atos.

22. O filme retrata os dramas vivenciados pela comunidade carente chamada Cidade de Deus, localizada na Zona Oeste do município do Rio de Janeiro, sendo uma versão romanceada dos acontecimentos dos anos 70 do século XX.

23. Costurando tais constatações, conclui-se que os fatos fazem parte da história da sociedade carioca, não havendo como acobertá-los, bem como é certo que o próprio autor deu causa ao conhecimento de suas particularidades ao se envolver com atividades ilícitas.

24. Levantar o direito ao esquecimento somente funciona, na espécie, como freio contra o efeito detersivo da verdade e da transparência, prestigiando versões remendadas da história e favorecendo a repetição dos erros passados, eis que agora ocultos.

25. Tudo o que foi até aqui esposado serve para o caso em que o filme tenha contado exatamente a história do autor.

26. Porém, a realidade dos autos é ainda prejudicial à pretensão do autor. Isto porque a história contada pelo filme não é a história do autor. As poucas coincidências entre o personagem Sandro Cenoura e o autor (Ailton Batata) são insuficientes a comprovar que ambos são versões da mesma pessoa. Não bastante o nome, a alcunha e a imagem serem diametralmente distintos, diversos fatos retratados no filme nem ao menos fazem parte do livro homônimo ou da biografia penal do autor. As referências são acidentais e somente são plenamente identificáveis por aqueles que conhecem a fundo a vida do autor e não por qualquer pessoa que o encontre pelos caminhos desta vida.

III – DISPOSITIVO Posto isso, REJEITO o pedido, na forma do artigo 269, I do CPC, e também, por conseqüência, a DENUNCIAÇÃO DA LIDE. Condeno o autor ao pagamento de honorários na razão de 10% (dez por cento) sobre o valor da causa para cada réu. Condeno o denunciante em honorários na razão de 10% (dez por cento) sobre o valor da causa para cada denunciado. Custas e despesas pelo autor, observada a gratuidade deferida. Após o trânsito em julgado e o recolhimento das custas, dê-se baixa na distribuição e arquivem-se os autos.

PRI

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