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Seqüestro da sociedade foi um golpe sobre natureza do ser

27 de agosto de 2008, 0h00

Por Luiz Edson Fachin

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Os periódicos de grande circulação podem ter deixado de anunciar expressamente um rapto contemporâneo, o seqüestro da própria sociedade. Não se tratou de verdadeiro arrebatamento e essa seqüestração não é apenas um crime da tipologia dos delitos penais.

Arrestou-se a utopia. Está sob a penhora a esperança. Levou-se para o depósito da clausura a mobilidade do corpo social, das transformações emancipatórias, das alavancas libertárias e seus correlatos.

Tal ato mostrou bem a que veio. Chegou-se do corpo social ao homem insular, apreendido por si próprio, encerrado na finitude do tempo e do espaço que vitima essa condição humana.

A sociedade como coletividade de aspirações resumiu-se a clubes ou companhias, corporação dotada de ordem jurídica providenciada pelas razões sociais e comerciais. A comunidade fez parceria com os grupos de arresto dos sonhos.

O que era multidão tornou-se bando; as caravanas mitificaram-se em alianças, coligações e confrarias. As congregações passaram a ligas e blocos, a grande massa travestiu-se de camada.

A sociedade de classes domesticou-se como conjuntos da diversidade, operando por comissões, hierarquias, divisões e credos.

Do povo se fez comitê apto a ficar dentro desse quadro que se subdivide em facções, lados ou partidos. Às famílias foram destinados lotes sociais cujos ambientes são miragens ou nuvens que passam.

Nesse vazio pontificou o mercado. Não apenas o comércio, negócio ou tráfico. Tal construção esmerada principiou por agenciar tratos e fez boa corretagem dos interesses da aldeia. Nos campos e cidades, no povo, nos burgos e nos arraiais, encontrou-se o tempo do vazio e o espaço do consumo. Desde a grande urbe aos vilarejos, desde as imensas avenidas às vilelas e vilotas, operou-se essa transação, ligação entre o “marketplace” e o pacto, a dúvida, a trama e daí o acordo.

Para alguns ficou a barganha e o logro, para outros, mais pragmáticos, o convênio entre o possível e a utopia, e para os demais (sem dúvida, práticos) a sedução do engodo, a força móvel da acomodação, da adaptação e do amoldamento.

Tornou-se, por conseguinte, em dado o que foi construído. O fenômeno ganhou ordem jurídica, números, informação e debate. Nesse processo, foram colhidos os corpos intermediários, as agências de saberes, organizações, entidades e núcleos. Por apoio ou irresignação se fez o padrão social: abona-se o sim e o não, para dar ou oferecer as opções de manutenção do status quo.

O sentido do próprio sentido da razão foi repaginado, beneplacitando o aval que garante permanentes atualizações sem que a programação central desse arrebatamento chegue ao fim.

O afiançado povo tornou-se seguro no que aí encontrou como coberto e garantido, desabando nos braços dos seqüestradores como filhos da promessa e da nova pátria.

Imperceptivelmente um novo desejado das nações, apontando para estrelas e mártires supostos, mostrou-se em face redentora.

Antes, ainda ao menos cabiam ao derradeiro suspiro perguntas indignadas: de um lado, falava-se no “basta”, “chega”, lembrando as catilinárias que principiaram com Marco Túlio Cícero dizendo “quosque tandem abutere, Catilina, patientia nostra”. E de outra parte costumava-se indagar “quo vadis” para saber para onde; agora, esse som se foi, e em seu lugar a rebelião ouve apenas pelo caminho a singela questão: “where are you going?”

Esse seqüestro deixou órfãos que ainda não se reconheceram em tal condição. Perdura, sobranceiro, esse filho gerado, o homo economicus, de tal modo que pela generalidade dos universais decretou-se, por essa via, o fim do próprio tempo e do espaço.

Com tal ação, desprezadas são as condições sociais próprias e a dimensão concreta e histórica. Emergiu uma atividade humana racional que põe em funcionamento ordens e normas. Nelas não há previsão de pessoas de carne e osso e sim de novos seres racionais, a povoar ilhas, campos e cidades, bem assim empresas, trabalhadores, pequenos negócios ou conglomerados transnacionais. Para tanto todos foram formalmente elevados à categoria de cidadãos, na qual, menos que emancipação, encontrou-se uma suposta parificação entre aqueles que podem viver sem trabalhar e aqueles que têm de trabalhar para viver.

O seqüestro da sociedade foi um golpe fatal sobre a natureza cultural do ser. Daí a ordem jurídica para aparelhar a compreensão normativa desse novo ente, não real, e sim ideado, pensando e construído para tomar o lugar da própria sociedade.

Disso nasceu essa verdade que, embora não esteja nos jornais, ali mesmo está, e todos os dias, para fundamentar cotidianamente a justificação material e moral do “novo homem livre”: a mundialização das leis, dos consumidores, dos trabalhadores e dos empresários. No corpo social instaurou-se um “mundo” natural, autônomo, disposto a ser soberano, propondo-se a atuar como mediação de interesses, realização de negócios, regulação de bens e coisas. O povo resta substituído pelo conceito de circunstância social e em tal plano não há que se falar de justiça ou injustiça. Basta uma lei, pura e simples, para quem quer que seja.

Em suma, a pessoa deixou de ser a medida de todas as coisas e os objetos passaram a ser a medida das pessoas. Se isso for tomado como definitivo, inalterável e indiscutível, esse seqüestro terá se convertido em latrocínio. Vale dizer: essa forma de roubo com agressão simbólica e violência cultural, por ataque à mão armada com tais argumentos, vitimará de morte a própria sociedade. Mais que um crime contra o patrimônio histórico e cultural que criou a possibilidade de pensar em utopia, chegar-se-á a um delito hediondo: a morte da política, da liberdade e dos sonhos. Será mesmo o fim da história.

O futuro dirá se esse fantasma terá realmente produzido a negação do homem. Quem sabe se deve começar pela compreensão de que a fome não é a falta de bens e sim a ausência de direitos. Não basta escolher pensando que o resto vem por si só. Está em jogo, pois, saber a quem responderá o direito e a ordem jurídica.