Raposa Serra do Sol

Britto vota pela demarcação contínua de terras indígenas

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27 de agosto de 2008, 18h46

Para o ministro Carlos Britto, do Supremo Tribunal Federal, a demarcação contínua da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, é constitucional. Relator da ação que contesta o decreto que demarcou a área, Britto afirmou que “só a demarcação contínua atende ao que determina a Constituição”.

O julgamento começou às 9h e foi suspenso à 18h porque o ministro Menezes Direito pediu vista dos autos. Direito manifestou-se logo após a leitura do voto de 108 páginas do relator. Britto julgou improcedente a Petição 3.388, dos senadores Augusto Botelho (PT-RR) e Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR), que contestaram a demarcação da área.

A apreciação do caso teve início na manhã desta quarta-feira (27/8). O ministro Carlos Britto abriu a sessão com relatório onde resumiu o pedido feito na Petição 3.388. Os senadores defendem a demarcação da reserva em ilhas, e não em área contínua, como estabelece a Portaria 534, do Ministério da Justiça. Eles justificam que a portaria mantém os mesmos vícios da primeira que demarcou a reserva, a de número 820/98, editada no governo Fernando Henrique Cardoso.

Augusto Botelho e Mozarildo Cavalcanti argumentam que a demarcação foi feita sem que fossem ouvidas todas as pessoas e entidades envolvidas na controvérsia. Dizem ainda que o laudo antropológico produzido para embasar a demarcação foi assinado somente por uma profissional, o que dá claros indícios de parcialidade do documento.

As partes

O advogado Antônio Guimarães, que representa os senadores, foi o primeiro a falar e classificou o decreto que criou a reserva Raposa Serra do Sol como imprestável. Conforme a Agência Brasil, Guimarães argumentou que há uma série de irregularidades no processo de demarcação das terras.

“Um técnico agrícola que nunca participou do processo de demarcação nem esteve na área é citado como tal (no relatório sobre o laudo antropológico). A base do decreto de homologação é imprestável. Essa demarcação jamais poderia ser contínua. Reunir tribos numa mesma base territorial abre as portas para as novas divergências”, afirmou.

O advogado disse que a idéia dos senadores em defesa da anulação da demarcação visa “garantir a soberania do país, a integralidade do pacto federativo e preservação das etnias indígenas”.

Já o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, Francisco Rezek, que defende o estado de Roraima, disse que a criação da reserva Raposa Serra do Sol não poderia ter sido feita por decreto. Para Rezek, “uma Constituição que manda que o Congresso Nacional fale até sobre o aproveitamento de recursos hídricos em terras indígenas não é compatível com o trato dessa matéria por portarias e decretos”.

O ex-ministro disse ainda que o estado de Roraima não pode ser tratado como uma “confederação” que representa os produtores de arroz ou comunidades indígenas. “Ele é uma unidade da federação e seu interesse é perfeitamente legítimo de resolver a questão”, apontou.

O advogado Luiz Valdemar Albrecht, que representou os rizicultores e pecuaristas que estão na região, disse aos ministros do STF que as terras cultivadas pelos fazendeiros nunca foram de ocupação tradicional indígena. “Nunca houve presença de índios nas proximidades das fazendas de arroz. Por isso, a sociedade de Roraima, praticamente por unanimidade, é contra essa demarcação contínua”, disse.

Albrecht apontou documentos da década de 70 que comprovariam a ausência de índios nas bordas sul, leste e oeste, no local onde hoje está a reserva Raposa Terra do Sol. Na opinião do advogado, os índios sofreram influência de religiosos e representantes de organizações internacionais para ocupar a região e criar problemas para os produtores. “Raposa Serra do Sol é um nome marqueteiro, que junta áreas independentes. O laudo antropológico não tem trabalho de campo. É um recorta e cola de gabinetes”, acusou.

Palavra do governo

Já o advogado-geral da União, José Antonio Dias Toffoli, disse ao Plenário do STF que a demarcação da reserva Raposa Serra do Sol em área contínua foi feita em respeito aos dispositivos constitucionais. Os mesmos, segundo ele, garantem aos índios a ocupação de terras tradicionais.

“O governo cumpriu um dever constitucional e a terra não é patrimônio dos índios, mas de toda a sociedade brasileira”, reforçou Toffoli. Ele refutou a tese do risco à soberania nacional com a demarcação de terras indígenas em áreas de fronteira. O advogado-geral rebateu ainda a declaração do advogado Francisco Rezek, que defende o governo de Roraima, de que o governo federal foi leviano ao homologar a reserva em abril de 2005.

“Não acredito que o ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos tenha sido leviano. É uma pessoa da mais alta dignidade e que tratou do tema refletindo por mais de dois anos, ouvindo todos os lados e preparando tudo para que houvesse o mínimo de resistência”, afirmou.

A decisão do Supremo no caso deverá servir de base para outros processos sobre as terras indígenas. Reportagem publicada pelo jornal O Estado de S.Paulo indica que há 144 ações no Supremo envolvendo a demarcação de terras indígenas nos estados da Bahia, Pará, Paraíba, Distrito Federal e Rio Grande do Sul.

Tensão social

Qualquer que seja o resultado do Supremo, a expectativa é de que cresça a tensão social entre os índios e fazendeiros. O fazendeiro João Paulo Quartiero, que liderou a resistência à presença da Polícia Federal na região, em abril, disse que uma decisão favorável à reserva o deixará duplamente desempregado. “Vou perder a fazenda de arroz e o cargo de prefeito de Pacaraima”, explicou o arrozeiro.

A maior parte da população local defende a exclusão do território de Pacaraima da área da reserva. Na oportunidade, dez índios das etnias macuxi e ingarikó foram feridos a balas após tentativa de ocupação da fazenda Depósito, de Quartiero, que logo depois foi preso pela PF.

O macuxi Dionito José de Souza, coordenador do Conselho Indigenista de Roraima (CIR), teme também uma onda revanchista contra os índios da região caso o STF autorize as ilhas territoriais não indígenas. Ele disse que as famílias que já foram retiradas da área ameaçam voltar para os lugares que ocupavam anteriormente. “Pode acontecer um massacre por aqui”, afirma.

O governo começou a retirar as famílias não indígenas da área no ano passado. Segundo levantamento do Incra, na zona rural existiam 180 famílias — das quais 130 requeriam lotes de 100 a 500 hectares e as outras 50 reivindicavam parcelas de até 100 hectares. No total, seriam 33 mil hectares, distribuídos entre os municípios de Boa Vista, Bonfim e Amajari.

Em abril deste ano quase todas as famílias já tinham sido retiradas. Restava, porém, um foco de resistência: um grupo de seis grandes produtores de arroz, sob a liderança de Quartiero. Tropas da Força Nacional de Segurança e da Polícia Federal foram então despachadas para a região, mas acabaram enfrentando resistência. No processo de formação da reserva, povoados foram esvaziados — e logo em seguida ocupados por famílias indígenas.

Processo histórico

As terras indígenas ocupam 42% do estado. O terreno da Raposa Serra do Sol equivale a 7,7% de Roraima. O processo de demarcação da Raposa remonta aos anos 1970. A Funai somente deu seu parecer antropológico sobre a extensão do território em 1993.

O conceito de terra indígena é baseado em quatro elementos — área da aldeia, áreas usadas para atividades de subsistência, áreas para preservação do meio ambiente e área para reprodução física e cultural. Por isso, o conceito de terra indígena deve prever o crescimento da comunidade. O espaço deve ser suficiente para que a tribo sempre se mantenha como um grupo diferenciado.

Argumenta-se que a Raposa Terra do Sol é uma área grande demais para os 19 mil índios que moram lá. Roraima tem 224.299 km² e 391.317 habitantes, o que equivale a 0,57 km²/hab. Na terra indígena, a proporção é de 1,17 km²/hab, duas vezes mais que a média do Estado.

A questão entrou na pauta da Justiça em 1998, quando a área foi demarcada pelo presidente FHC. Na época, já estavam estabelecidos na reserva cerca de 60 fazendeiros.

Agricultores, pecuaristas e políticos do estado ajuizaram na Justiça Federal de Roraima uma série de ações judiciais para impedir o processo do Executivo para efetivar a reserva. A posição dos mandatários do estado fica bem demonstrada quando o então governador Ottomar Pinto, morto o ano passado, decretou luto oficial de sete dias em todo o estado em protesto ao reconhecimento da reserva.

Com o tempo, muitos fazendeiros foram desistindo e deixaram a reserva depois de receberem indenizações da Funai. Sobraram apenas seis rizicultores, que ocupam a área sul da reserva em um espaço que representa cerca de 1% do total das terras.

O assunto chegou ao Supremo em 2004. Na oportunidade, a ministra Ellen Gracie entendeu que a homologação contínua causaria graves conseqüências de ordem econômica, social, cultural e lesão à ordem jurídico-constitucional. Por isso, ela negou o pedido do Ministério Público Federal, que queria suspender a decisão da Justiça Federal no estado permitindo a permanência dos arrozeiros.

Com a homologação da reserva m 2005, pelo presidente Lula, o assunto passou para a competência do Supremo. A partir de 29 de junho de 2006, o Plenário do STF reconheceu que a questão é de sua alçada. As contestações dos agricultores vêm sendo liminarmente negadas pelos ministros desde então.

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