Concorrência desleal

O abuso das Micro e Pequenas empresas nas licitações

Autor

  • Alfredo Gioielli

    é advogado sócio do escritório Gouveia Gioielli Advogados especializado em Direito Processual Tributário pós-graduado em Direito Tributário.

27 de agosto de 2008, 11h01

Ao ser editada a Lei Complementar 123, de 14 de dezembro de 2006, o legislador regulamentou o tratamento jurídico diferenciado para as Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, situação esta já consagrada na Constituição Federal.

Desta feita, o referido Estatuto concedeu aos pequenos empresários, uma série de vantagens para simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, visando devida regularização de suas atividades.

Os incisos I e II do artigo 3º da LC 123/06 definem, de forma clara, o que é microempresa e empresa de pequeno porte, fixando limites de faturamento anual para seu devido enquadramento. No primeiro caso, considera microempresa, o empresário, a pessoa jurídica, ou a ela equiparada, que aufira, em cada ano-calendário, receita bruta igual ou inferior a R$ 240 mil e no segundo caso, considera empresa de pequeno porte, o empresário, a pessoa jurídica, ou a ela equiparada, que aufira, em cada ano-calendário, receita bruta superior a R$ 240 mil e igual ou inferior a R$ 2,4 milhões.

É importante ressaltar que as empresas acobertadas pelos benefícios desse regime jurídico diferenciado, ainda ganharam privilégios para a participação em certames licitatórios com o Poder Público como, por exemplo, o diferimento para apresentação da sua comprovação de regularidade fiscal no ato da assinatura do contrato (artigo 42); prazo diferenciado para comprovação de regularidade, caso houver alguma restrição (parágrafo 1º do artigo 43); preferência de contratação quando ocorrer empate entre os participantes, sendo concedido aos pequenos empresários, além de ofertar o último lance para arrematação no certame, o critério de desempate, quando suas propostas estiverem tecnicamente empatadas com outras propostas mais bem classificadas, bastando então, uma variação de valores iguais ou até 10% superiores, ou em se tratando de licitação na modalidade pregão a variação superior de até 5%.

As condições apresentadas até aqui são perfeitamente aceitáveis para, de certa forma, alavancar melhores oportunidades de negócios para o pequeno empresário, afinal, foi justamente essa intenção do legislador.

Ocorre, porém, que razão não assiste as benesses do referido Estatuto, quando o micro ou pequeno empresário se vale das prerrogativas da Lei 123/06 para participar de certames cuja monta envolvida extrapola os limites de seu faturamento, posto que macula o Estatuto e diverge totalmente do que pretendeu o próprio legislador.

O que se vê atualmente, após a edição da norma, é a ocorrência de inúmeras empresas se valendo das prerrogativas do referido regime diferenciado, arrematando em um único certame licitatório montas superiores ao limite de seu faturamento, o que se afigura um verdadeiro disparate, ante os limites fixados para seu enquadramento, causando desequilíbrio entre os participantes.

Ademais, o empresário que se vale das benesses da Lei 123/06 e presta declaração de enquadramento em certames licitatórios, cuja monta a ser arrematada ultrapassa os limites para seu enquadramento, incorre na prática prevista do artigo 299 do Código Penal Brasileiro, vez que tem conhecimento dos limites para se obter referidas benesses.

É prerrogativa legal à administração pública, de modo explícito ou implícito, para a prática de atos administrativos com liberdade na escolha de sua conveniência, oportunidade e conteúdo, porém, a discricionariedade é a “liberdade” de ação administrativa dentro dos limites estabelecidos pela lei, não se confundido com arbitrariedade.

Quando a administração executa determinado ato vinculado, ela deve observar, rigidamente, o que determina a lei, não cabendo, nesse caso, nenhum tipo de liberdade ao administrador ou servidor para a avaliação de conveniência e a oportunidade do ato, assim prescreve o inciso III do artigo 116 da Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990.

A forma preferencial de incentivo às pequenas empresas prevista na Constituição consiste na eliminação ou atenuação de formalidades e exigências fiscais – não na atribuição a elas de uma prerrogativa da contratação privilegiada com o poder público.

É absolutamente inaceitável a aplicação do Estatuto nas licitações, cuja monta extrapolam os limites permitidos para seu enquadramento, confluindo para obtenção da seguinte regra jurídica, estabelecida na própria Lei Complementar 123/2006 a teor do que prescreve o inciso X em parágrafo 10º do artigo 3º, qual seja; sua imediata exclusão.

Não pode ser admitida a imposição de privilégios desprovidos de justificativa razoável. Nessa mesma esteira e na análise de tal razoabilidade, mesmo que identificada a situação diferenciada, exige-se que seja verificada uma relação proporcional entre a discriminação proposta pelo legislador infra-constitucional e a finalidade perseguida, para que permitam sejam considerados válidos em detrimento do regramento original e dos objetivos que a igualdade anterior visa resguardar, no caso de empresas que maculam sua participação sob a égide da LC 123/06, com escopo de obter as vantagens do Estatuto, participando de licitações cujo valor a ser arrematado ultrapassam os limites de seu enquadramento, estas devem ser desclassificadas sofrendo as sanções previstas no artigo 7º da Lei 10.520, de 17 de julho de 2002, posto que se comportaram de maneira inidônea, sem prejuízo das sanções penais previstas no ordenamento.

As diferenças econômicas podem conduzir a tratamento mais protegido para os carentes, mas não podem conduzir à eliminação de direitos fundamentais dos economicamente mais privilegiados. Tratamento desigual como prevê a Constituição, deve ser adotado tomando em vista o conjunto dos princípios e norteadores da ordem econômica, mas desde que seja adotada técnica compatível com o princípio da proporcionalidade.

Nas palavras do eminente jurista Marçal Justen Filho o alcance da regra da Lei Complementar 123/06 não reserva às empresas contempladas a totalidade de suas contratações, “…seria inconstitucional estabelecer preferência de cunho absoluto, reservando a totalidade das contratações administrativas para ME e EPP. Isso significaria excluir a possibilidade de competição das empresas de maior porte e acarretaria severos prejuízos aos cofres públicos. Portanto, a constitucionalidade das preferências em favor de ME e EPP deriva da coexistência de diferentes regimes, o que significa que a maior parte das contratações administrativas não será norteada pelo tratamento privilegiado referido” 1.

Ora, bem se vê que ao franquear o Estatuto da Microempresa, arrematando o certame as empresas que se apresentam como tal, porém, extrapolam o limite de faturamento permitido pelo próprio ordenamento, o administrador está permitido o prejuízo da livre concorrência e incorrendo a infração a ordem econômica, podendo até sofrer sanções administrativas, como até ser responsabilizado funcionalmente, assim como determina o artigo 121 e artigo 122 , parágrafo 2º da Lei 8.112/1990.

Sob este prisma, o artigo 33 da Lei 9.841, de 05 de outubro de 1999, que regulava a matéria antes da Lei Complementar 123/2006, já previa sanções penais para aqueles que objetivavam os benefícios das prerrogativas do estatuto da microempresa, sem realmente se enquadrarem;

Art. 33. A falsidade de declaração prestada objetivando os benefícios desta Lei caracteriza o crime de que trata o art. 299 do Código Penal, sem prejuízo de enquadramento em outras figuras penais.”

No sentido de evitar desequilíbrios e vantagens excessivas entre a concorrência, foi editada a Lei 8.884, de 11 de junho de 1994, que transforma o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) em Autarquia, dispondo sobre a prevenção e a repressão às infrações contra ordem econômica e dá outras providências, e no caso em apreço, a regra do Inciso I do artigo 20 do mencionado diploma legal é perfeitamente aplicável.

Outrossim, as Comissões de Licitações e seus membros têm ciência que o valor dos certames supera as montas estabelecidas na Lei Complementar para conceder vantagens às empresas vencedoras, ou seja, sabedores da situação e nada fazendo, flagrante é a sua omissão, posto que conceder vantagem a um terceiro que conforme Lei, extrapola o limite de seu enquadramento, enseja a responsabilização do administrador ante a falta de observância da norma.

Nas palavras do professor Ives Grandra da Silva Martins; “…é irresponsável aquele que macula, tisna, fere, atinge, agride a moralidade pública, sendo ímprobo administrador, favorecendo terceiros…” 2.

Conclui-se, portanto, que as vantagens concedidas pela LC 123/06 possui limites para as benesses do próprio Estatuto, bem como a participação nos certames licitatórios, devendo, os abusos cometidos e a falta de observância a lei, serem denunciados tanto ao Tribunal de Contas de cada Estado, como também ao Ministério Público, para efetiva adoção das medidas administrativas e judiciais cabíveis.

1 MARÇAL, Justen Filho. O Estatuto da Microempresa e as licitações Públicas, 2.ed Dialética, p.40

2 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional Administrativo, São Paulo: Atlas, p. 320.

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