Juiz não pode se sentir no direito de obrigar réu a ter religião
26 de agosto de 2008, 16h27
A liberdade condicional de Vilma Martins Costa, condenada e presa por ser a seqüestradora do caso Pedrinho, foi notícia no país inteiro. Nada mais natural. O que passou despercebido é o fato de que, na peça do juiz Éder Jorge, da 4ª Vara Criminal de Goiânia, lado a lado com as recomendações usuais para manter endereço fixo e não portar armas, também conste que ela deva freqüentar “entidades religiosas de formação cristã” e seguir “religião cristã”.
O desinteresse ou desatenção dos jornalistas e da sociedade merece um artigo à parte. O que gostaria de explorar aqui é o fato de essa determinação também ter sido altivamente ignorada pela comunidade jurídica. Dias depois da veiculação nacional da notícia, ainda não tenho conhecimento de declaração pública ou artigo de nenhum operador de direito. O próprio texto do Consultor Jurídico, que é um razoável termômetro do interesse jurídico, sequer menciona a pérola do juiz, sinal de que ela não tem nada de absurdo ou extraordinário.
O corriqueiro e o normal não são notícia. Para quem preferiu dormir durante as lições de história e depois dar ouvidos aos mitos sobre como somos pacíficos, gostaria de lembrar que a trajetória religiosa de nosso país jamais se deu sob a marca da tolerância. Durante quatro quintos de nossa história, o país teve uma religião oficial e reprimiu todas as demais posições.
Muitos dos nossos colonos portugueses eram “cristãos novos”, dos quais também sou descendente. Aliás, essa expressão é um macabro eufemismo para “judeus mui gentilmente poupados da fogueira sob promessa de conversão e ameaça de desterro”. Esta terra nunca foi, portanto, livre do anti-semitismo. Foi antes um produto dele.
Índios e negros também foram convertidos à força, e se hoje os cultos afro-brasileiros têm traços de aparência cristã, não foi por pacífica osmose, mas por necessidade absoluta de sobrevivência em um meio hostil e intolerante — o que a peça do juiz Éder Jorge deixa claro que não se trata de um passado remoto, mas de uma realidade presente, e bem viva.
Nada disso foi feito à revelia da lei, mas sob o mais estrito procedimento jurídico. E a instituição da laicidade do Estado brasileiro, que veio de junto com a República, simplesmente não mudou muitas das práticas correntes. O que desejo apontar aqui é que a mentalidade confessionalmente sectária, predominante dos operadores de direito atuais, é o mecanismo vital de manutenção dessa aberração jurídica. Mesmo quando nossas leis são laicas (o que nem sempre é o caso), os advogados, promotores, juízes e doutrinadores pensam e agem em espírito contrário e fazem as mais excruciantes contorções hermenêuticas, lógicas e semânticas para manter uma prática ululantemente confessional.
O caso Vilma Martins não poderia ser mais claro. Primeiro, um juiz sente-se no direito de determinar não apenas que uma ré tenha prática religiosa, mas também que tipo específico de prática é admissível para responder aos seus arrogantes pruridos teológicos. E a seguir, os juristas do país inteiro ficam de costas para a acintosa violação dos artigos 5º e 19 da Constituição Federal em uma determinação do próprio Judiciário.
Ora, se isso é perfeitamente normal e legal, então não é de se espantar que os tribunais de todo o país ostentem símbolos religiosos e finjam que são apenas artefatos “culturais”, na interpretação do Conselho Nacional de Justiça. É o mesmo espírito proselitista que contorna a igualdade e a neutralidade determinadas por nossa carta magna, tanto no caso dos símbolos religiosos em repartições públicas, como na escabrosa determinação estatal para que um cidadão siga esta ou aquela fé, ou nenhuma. E o irônico é que essas pessoas desejam identificar a laicidade como expressão “talebã”, quando em verdade se passa justamente o oposto: são os talebãs e a maioria dos atuais juristas que desejam impor suas posições, e não o contrário.
Assim, também não é de se admirar que nova tentativa de concordata esteja tramitando agora pela Casa Civil, sem gerar um pio de protesto. E existe até quem se pronuncie com todas as letras a favor desse estado de coisas. O site da Associação do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, publicou artigo de Victor Mauricio Fiorito Pereira, membro do MPE-RJ, em que ele defende que o “princípio da maioria” pode permitir, “quando necessário for”, que o Estado “opte por determinada crença”.
E isso inclui a possibilidade de “elaborar sua legislação tomando como base as orientações doutrinárias de um determinado credo, nisto incluindo questões polêmicas como aborto, uso de células de embriões humanos e união homoafetiva”. Isso nada mais é do que um ativo desprezo pelos direitos individuais e as chamadas liberdades laicas frente à possibilidade de obrigar toda a população a seguir os princípios de algum grupo religioso.
É de se perguntar se o membro do MP manterá sua opinião caso a população brasileira se torne majoritariamente muçulmana wahabita e exija apedrejamentos públicos. A idéia de que existem casos em que o Estado realmente deva optar por alguma crença já é, em si, contrária à laicidade. E o mais grave, mesmo, é que ele não está sozinho. Proteger os direitos individuais acima das vontades da maioria é talvez a marca mais acentuada e característica do Estado de Direito, e cabe aos juristas fazer a sua parte.
Quem deseja um Estado com sabores teocráticos mais fortes deveria se
perguntar se gostaria de emigrar para o Irã. Em caso de negativa, o negócio é apostar mesmo na democracia e na laicidade, e parar com a hipocrisia e o autoritarismo disfarçado de moralidade pública.
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