Direito penal de consumo

Interceptação eletrônica moderniza tortura para extrair verdade

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26 de agosto de 2008, 19h59

O Direito Penal de consumo foi a tônica da palestra do professor Geraldo Prado no 14º Congresso Internacional do Ibccrim, em São Paulo. Citando o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (Vida para consumo), a repensar nossas relações do privado com o público, onde nada mais restou sigiloso e tudo ganhou uma esfera diminuída de intimidade num mundo de consumismo aflito, conclui-se que a própria vida particular também foi alçada ao grau de curiosidade mórbida e, portanto, transformada em mercadoria.

De fato, um dos valores individuais sacralizados pela sociedade pré-globalização é a intimidade. Com a “vida em rede” perdeu-se o privilégio de manter-se num relativo anonimato, sendo mesmo motivo de suspeita a conservação da privacidade. Isso, no dizer de Prado, considerando-se o caso paradigmático coreano que, até para a colocação no mercado profissional, as empresas lançam mão da pesquisa de perfil postado no Orkut. Surge então a necessidade de uma mediação eletrônica para os relacionamentos humanos. Uma vida escancarada, aberta às investigações privadas, onde as relações frenéticas transformam o ser humano num objeto de observação paga.

Prossegue na lógica o professor Geraldo Prado — ora, então se o cidadão “normal” tem a sua vida exibida e conduzida à publicidade máxima, então por qual razão a intimidade do “vilão”, do “bandido”, do “marginal” deveria ser constitucionalmente conservada? Inverte-se a lógica do processo penal como mecanismo de proteção do acusado para voltar-se justamente contra ele, numa luta desigual entre os propalados interesses sociais pela segurança contra a conservação de prerrogativas para o cidadão que se “esconde (ria)” na teia de garantias legais. Diante da perfeita formulação dessa cruel realidade, Prado encerra a sua fala fazendo uma distinção entre fontes e meios de prova.

Seria perfeitamente admissível superarmos o conceito de fontes de prova, como caminhos a ser seguidos pelo trabalho investigativo ou processual. Ocorre, todavia, que as fontes de prova são tomadas como sinônimos da prova penal em si mesma, o que leva a admissão de interceptações telefônicas, por exemplo, como suficientes para a condenação do indivíduo. Atropela-se uma fase indispensável que é a construção da própria prova, sendo “suficiente” (como diria Ferrajoli) num estado autoritário voltarem-se as estratégias estatais contra o acusado, manejando a própria fala.

De antemão, toda a doutrina parece estar convencida de que a auto-incriminação compulsória está vedada pelas normais constitucionais num Estado Democrático de Direito. Ocorre que, como pontua Prado referindo-se, por sua vez, a Claus Roxin, é bastante tênue a identificação do que é, de fato, a auto-incriminação compulsória. Ora, se as conversas pessoais são colhidas sem a ciência do imputado (investigado, processado), é claro que não se pode tomar a própria pessoa como método lícito a condená-lo pela própria boca, sem que consinta expressamente. Em paralelo com essa fundamentação é a garantia do silêncio, pela qual ninguém é impelido a usar da própria fala para calçar uma condenação criminal contra si mesmo.

A interceptação de meios de comunicação é tão excepcional como o é qualquer abrupta e invasiva intervenção na vida e na liberdade de um ser humano. Ocorre que tais situações de exceção são “normalizadas” pelo cotidiano das investigações sorrateiras que são os métodos mais “eficazes” no combate ao crime organizado, paulatinamente tomados como “meios indispensáveis” para instrumentalizar meios de condenação. Essa lógica de guerra, onde impera um estado atípico de interrupção democrática politicamente justificada, não pode pautar o processo criminal ordinário, até mesmo para atingir os criminosos de maior calibre.

Parafraseando o desembargador Tourinho Neto, em entrevista concedida em Cuiabá, as interceptações, da exceção constitucional, viraram muleta investigativa para desmontar “organizações criminosas”. Isso porque não há um sistema burocrático eficiente onde a inteligência seja a tônica prevalente — daí que a simplicidade da invasão da intimidade por meio de tecnologias que dissimulam, recortam e deformam a realidade, passa a ser a alternativa jurídica de possível para necessária; de permitida para imprescindível; de exceção para regra.

Um ser humano, alvo do feixe de direitos e garantias constitucionais não pode ser processado ou condenado pelo que o aparato estatal extraiu dele, sem a prévia ou posterior autorização. Não se pode utilizar o corpo como meio de prova, modernizando a medieval tortura que impunha a crueldade para extrair a “verdade”, para vestir a mesma roupagem de autoridade sobre o corpo, mas sem dor. Não nos enganemos — é a mesma manipulação do “ser”, com cores mais esmaecidas. Um método oficial de manipulação do corpo e seus atributos, só que mais “humanizado”.

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