Sociedade vigiada

Entrevista: André Fontes, desembargador do TRF-2

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24 de agosto de 2008, 0h00

André Fontes - por SpaccaSpacca" data-GUID="andre_fontes.jpeg">As interceptações telefônicas são fundamentais para a investigação de determinados crimes, como nos casos de seqüestro. O problema é que, ao monitorar o telefone, são captadas conversas pessoais que nada têm a ver com a investigação. Garimpar ouro em uma montanha de cascalho é o principal desafio do juiz que lida com escutas telefônicas.

A conclusão é do desembargador André Fontes, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (Rio e Espírito Santo). “É preciso saber administrar os milhões de ligações. Às vezes, apenas uma fala de algum crime.”

Para ele, o juiz é responsável por montar o quebra-cabeça de provas só com as conversas que interessam. Aí, entra a grande importância do contexto em que cada conversa aconteceu, embora isso esteja sendo deixado de lado freqüentemente. “Geralmente, a análise não é feita porque o dialogo é apresentado como uma constatação imediata, sem uma reflexão”, afirma. É ruim. Até as imagens podem ter diferentes interpretações, diz.

André Fontes acredita que a troca de experiências é fundamental para encontrar um equilíbrio. “A magistratura, hoje, é menos um castelo fechado e muito mais uma instituição voltada para o diálogo com a sociedade.” Como diretor da Escola da Magistratura Federal da 2ª Região (Emarf), entende que é função da instituição buscar algum tipo de resultado prático.

“Até a criação das escolas da magistratura, nunca se discutiu, por exemplo, como se inquiria uma testemunha. A testemunha ficava à mercê de uma atitude poderosa do juiz. Ele achava que olhando nos olhos, sabia se a testemunha mentia ou não. Mas quantas vezes, do lado de fora, vimos a testemunha, depois de ter ensaiado muitas vezes, dizer que conseguiu fazer com que o juiz acreditasse nela. As varas de família bem mostram isso”, constata.

Apesar de compor a 2ª Turma Especializada do TRF-2, Fontes não é especialista na área criminal. Mas elogia a qualidade das defesas feitas pelos advogados e pelo Ministério Público e diz estar aprendendo muito com ambos. “Procuro me ater ao que está nos autos, me preocupo muito em ouvir as pessoas.”

Fontes chegou ao TRF-2 pelo quinto constitucional do Ministério Público Federal. Advogou por seis anos, até se tornar procurador do município do Rio de Janeiro. Em 1989, entrou para o MPF e lá ficou por 12 anos, até ser indicado ao tribunal. Tem mestrado e doutorado em Direito Civil pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e é professor da Universidade do Rio (Unirio) desde 1992.

Leia a entrevista

ConJur — O grampo telefônico é válido para qualquer investigação?

André Fontes — A lei é sábia ao deixar a escuta como exceção para algumas investigações, mas a tendência é a interceptação se dar de forma mais ampla. Tenho visto, por exemplo, o grampo ser usado pela Vara de Família. Com o sistema de comunicação cada vez mais sofisticado, talvez nossos netos vejam a Polícia ter câmeras sistemáticas nos carros, de forma que tudo seja capturado, como acontece nos edifícios públicos hoje. No futuro, tudo vai ser televisionado e interceptado. Os limites da interceptação vão ser construídos segundo o tempo e o lugar.

ConJur — O senhor acha isso válido para combater a criminalidade?

André Fontes — A sociedade reclama o uso de meios mais sofisticados para as investigações, mas quem tem de fazer uso desses meios são as entidades vocacionadas. É importante lembrar: quem combate a criminalidade é o Estado, por meio das Polícias Militar, Civil e Federal. O juiz não combate. Ele decide a sanção que deve ser aplicada desde que haja lei penal nesse sentido. A tendência com o desenvolvimento do sistema de comunicação é retorno à idéia visionária do Grande Irmão, de George Orwell. Já temos câmeras em todos os lugares. Quando saio de casa, tenho um hábito de olhar meus dentes. O porteiro disse que eu sempre faço careta no elevador. Para ele, é uma careta. Para mim é para ver se os dentes estão em ordem. Essa visão diferenciada fez com que eu pensasse que, se o porteiro, vendo uma imagem, entende diferente, imagine uma conversa.

ConJur — Quando uma conversa telefônica é gravada, há assuntos pessoais que nada têm a ver com um provável crime. Como separar o joio do trigo?

André Fontes — A interceptação telefônica opera em um campo muito sensível e particular que é o da personalidade. Quantos arrependimentos eu não teria se tivesse que reler cada uma das palavras que proferi ao telefone? Mas o telefone também é usado para a prática do crime. O grande problema que a sociedade enfrenta é saber onde fica a personalidade e onde fica o crime. É preciso identificar e, para isso, saber administrar os milhões de ligações. Às vezes, apenas uma fala de algum crime. Os países desenvolvidos têm buscado palavras chaves, identificação concreta. Estamos começando a lidar com isso. A Lei de Interceptações tem só 12 anos.


ConJur — Quem separa é o juiz?

André Fontes — Sim. Eu tenho visto vários processos dos quais 10, 12, 15 volumes de colheita de prova se referem a um único telefonema. Quantas vezes eu tive de marcar os trechos para entender as conversas? Esse quebra-cabeça é feito, hoje, pelo juiz. E, como todo texto, tem que ser interpretado. O pai pode ter falado para a filha: “Você entregou a minha encomenda?”. E encomenda ser um mero CD comprado em uma loja. Às vezes, a autoridade de pai se confunde com a de chefe de uma organização criminosa. O problema é como garimpar ouro, quando há toneladas de cascalho para um grama de ouro. Nas toneladas de cascalho estão vidas humanas, situações das mais variadas.

ConJur — A tarefa do juiz é difícil?

André Fontes — Sim, mas o juiz não faz a primeira leitura da prova. As partes já levam para o juiz uma discussão estabelecida. O papel do juiz é resolver o conflito e não fazer a constatação inicial de tudo o que foi colhido. Se a própria parte não coloca em discussão os demais diálogos, o juiz fará uma leitura mais genérica deles. Na leitura dos jornais, a impressão que se tem é de um juiz bisbilhoteiro que fica querendo saber da vida das pessoas. Já aconteceu de eu não ler o volume de um processo porque era uma conversa amorosa da pessoa com outra que não tinha nada a ver com o processo. Não vou ler diálogos íntimos de quem quer que seja.

ConJur — Mas, ao não ler, o juiz não corre o risco de perder o contexto da conversa?

André Fontes — Acho que não sou obrigado a ler todos os diálogos das pessoas.

ConJur — É difícil achar o ouro em meio ao cascalho?

André Fontes — É uma dificuldade cada vez maior. O mais perigoso ainda é saber o que é feito com o cascalho. O contexto da conversa tem de ser observado. A prova no Direito sempre foi uma prova de terceiros com os documentos. Agora, vem direto da captura da própria imagem ou do som. Isso vai levar a novos paradigmas de apreciação das provas. As imagens, como são abertas, permitem uma constatação mais imediata. Já as interceptações telefônicas dependem de uma análise do diálogo. Geralmente, a análise não é feita, porque o dialogo é apresentado como uma imagem direta de constatação imediata sem uma reflexão. Isso é um problema.

ConJur — Mas as escutas têm as suas vantagens, não?

André Fontes — A interceptação permite coletar informações sobre local de seqüestro, dinheiro e pessoas foragidas, por exemplo. São dados diretos e objetivos, onde não é preciso traduzir idéias. As escutas também recolhem informações que podem ser conjugadas, conectadas e correlacionar com documentos e outras provas. É como uma faca usada para o homicídio quando foi feita para cortar o pão. Teríamos que proibir a faca porque ela foi usada para matar?

ConJur — O problema, então, não é com as escutas, mas a maneira como elas são usadas?

André Fontes — Sim. Quero lembrar que os juízes têm suas mãos limpas. Quando uma prova dessa natureza é apresentada, o juiz recebe porque a lei permite prova documental, pericial e testemunhal. As escutas estão em alta porque qualquer um que soubesse que a vida do seu filho depende de uma interceptação telefônica para saber o local onde a criança está não teria dúvida em defender a escuta. Eu tenho dúvidas sérias se alguém discutiria garantias constitucionais quando está em jogo a vida de uma criança seqüestrada. Mas os limites e a forma como chegaremos aos bons resultados dependerão da experiência e do debate.

ConJur — O uso de escutas telefônicas cresce no mundo inteiro?

André Fontes — Tenho impressão de que sim. Se não estou enganado, hoje, os Estados Unidos conseguem, por meio de palavras chaves, ouvir conversas no mundo inteiro. A privacidade é muito mais invadida do que pensamos. O sistema de computadores é controlado na Inglaterra, na Suécia, nos Estados Unidos e por aí vai. No Brasil, crimes de seqüestro, por exemplo, só são resolvidos com escutas. No entanto, não gostamos quando atinge a nossa vida privada. A grande pergunta é: em uma sociedade como a nossa onde a perversidade é criativa, o que fazer? Suprimirmos o uso do telefone como meio de prova e deixamos o crime operar com o telefone ou estabelecemos um critério de como usá-lo? Ninguém tem a fórmula mágica.

ConJur — É preciso limitar claramente o prazo máximo para interceptação?

André Fontes — Não sei se tem que ser fixado previamente um prazo. Os crimes nem sempre são organizados e estabelecidos em um ou dois anos. Alguns são praticados durante muito tempo. Por isso, depende da natureza do crime para sabermos se haverá tempo suficiente.

ConJur — O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro criou um sistema centralizado para controlar a autorização de grampos telefônicos por juízes. O que o senhor acha desse sistema? O Conselho Nacional de Justiça estuda ampliá-lo para os demais tribunais. O senhor concorda?


André Fontes — Não conhecíamos esse sistema. A Escola da Magistratura Federal da 2ª Região (Emarf) [da qual o desembargador é diretor], então, organizou um encontro com desembargadores estaduais para conhecer esse sistema do TJ-RJ feito para o controle estatístico do número de interceptações telefônicas. Assim como o TJ do Rio, o TRF-2 também tem autorizado dezenas de escutas. Por isso, entendo que seria no mínimo falta de coerência ou pouco sábio não entendermos o motivo pelo qual o TJ tomou decisão tão radical de submeter o número total de interceptações telefônicas ao controle.

ConJur — Então, por que o senhor chama o controle de radical?

André Fontes — Como registrar e controlar uma atividade sigilosa? O que eu vi do sistema estadual é uma medida extrema e radical para impor um controle rígido. Parecia uma coisa estranha e incompatível. Mas, depois, foi explicada e me pareceu bem razoável dentro da estrutura sistemática adotada. Talvez seja um primeiro caminho. De fato, hoje, não tem controle. Não sabemos quantos monitoramentos estão sendo feitos no Brasil.

ConJur — Tem que haver esse controle?

André Fontes — Sim. Tenho a impressão de que se perguntarmos aos países desenvolvidos quantos telefonemas são interceptados, acho que eles terão condições de informar. Não é possível que o Brasil não saiba. O Estado de Direito passa pelo controle. Assim como sou favorável à escuta telefônica como meio de investigação, também concordo que precisa haver um controle.

ConJur — O controle pode evitar desvios.

André Fontes — Sim. Desvios da finalidade dos grampos, por exemplo, deixariam de existir. E há muitos relatos de desvios, como o caso de uma policial jovem, recém-casada, que estava desconfiada de que o marido estava em contatos mais próximos com a amiga dela e, por isso, inseriu o telefone do marido no pedido de interceptação.

ConJur — O sistema do TJ fluminense é eficaz para fazer esse controle?

André Fontes — Ao agrupar os dados, o sistema do TJ aparentemente inibe o problema de desvio de finalidades do grampo. Mas há uma aparente falha. Tenho dúvida se o sistema de controle não acaba com a surpresa do uso da interceptação, já que alguém mal intencionado pode pedir ao juiz a interceptação de uma linha telefônica apenas para saber se o número já estava sendo monitorado ou não. Não sei se o sistema do TJ é o mais eficiente ou o melhor, mas é o caminho para manter uma sistemática de controle. Também não sei se já houve a experiência de ter sido quebrado o regime de sigilo do próprio sistema porque o objetivo é estatístico, não de conteúdo.

ConJur — O senhor costuma autorizar interceptação?

André Fontes — Sim, porque nem sempre as causas são processadas em primeiro grau. Eu já autorizei mais de uma vez.

ConJur — É possível o juiz autorizar a Polícia a usar senha para acessar diretamente o banco de dados das operadoras de telefonia?

André Fontes — Não existe um formulário padrão para se requerer as coisas ao juiz. Cada um solicita de uma forma. Geralmente, nas indicações, vem o número de telefone e do período. Toda vez que recebi, veio com números. Alguns telefones não eram de titularidade do acusado, mas estavam em nome de terceiros. Eu autorizei, mas, na decisão, expliquei que os telefones estavam sendo interceptados porque eram usados pelo investigado.

ConJur — O STF vai julgar se a Constituição autoriza ou não o Ministério Público a fazer investigação criminal. O senhor acha que o MP tem poder investigatório na área criminal?

André Fontes — No Brasil, não só o MP investiga, como o juiz também. Quem faz a investigação do juiz no país é o juiz. Quem faz investigação de procurador é o Ministério Público. Eu não tenho dúvida de que, se qualquer um pode prender, se qualquer dossiê que registre prática de crime pode substituir o inquérito, é possível ao MP investigar. O que não me parece possível é o MP, sem decisão judicial, fazer escutas telefônicas. É uma garantia a todo brasileiro que o MP requeira ao juiz. Normalmente o juiz defere, porque os requerimentos são feitos de boa fé, de forma fundamentada.

ConJur — A Polícia pode pedir autorização para fazer grampo direto ao juiz ou precisa ter o intermédio do MP?

André Fontes — O Ministério Público tem essa posição de intermediar, mas eu acho isso muito burocrático. A lei está correta ao dizer que, deferido o pedido, o MP tem que tomar ciência da medida, mas considero equivocada a exigência do MP de querer avaliar antes qualquer pedido de escuta feito pela Polícia. Nos casos de seqüestro, temos conseguido, no Rio, encontrar soluções sem a participação do MP.

ConJur — Como diretor da Emarf, o senhor enxerga que a nova geração de juízes tem uma postura mais ativa?

André Fontes — Caberia ao legislador evitar isso, mas o legislador brasileiro cada vez mais aumenta o poder do juiz. O ativismo judicial não é só uma questão de atitude ideológica da magistratura. É uma abertura deixada pelo legislador, que não consegue dar conta da sofisticação, da complexidade da vida moderna.

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