Raposa Serra do Sol

STF cumprirá sua função se mantiver demarcação de reserva indígena

Autor

  • Dalmo de Abreu Dallari

    é advogado professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP membro da Comissão Internacional de Juristas. É autor entre outras obras de O Futuro do Estado.

23 de agosto de 2008, 11h59

Para os índios brasileiros, a terra não é um valor econômico, mas um bem essencial para sua sobrevivência. Isso é muito diferente da concepção dos que invadem áreas indígenas visando aumentar o patrimônio sem pagar pelas terras de que se apossam ilegalmente, sem consideração de ordem ética e sem respeito pela vida e pela dignidade dos seres humanos que são os índios.

Para indignação dos brasileiros que respeitam a Constituição e os princípios e as normas nela consagrados, autoridades públicas que deveriam ser um padrão de dignidade e honestidade acobertam e auxiliam os grileiros das terras indígenas, simulando preocupação com o Direito, a Justiça e a soberania nacional, mas, na realidade, colaborando para a espoliação do patrimônio público e a consumação de inconstitucionalidades.

Foi com a colaboração de autoridades públicas que invasores de áreas indígenas criaram por lei estadual falsos municípios, sem existência legal, pois não foram cumpridas as exigências expressas no artigo 18 da Constituição para a criação de municípios.

Uma vez mais o Supremo Tribunal Federal deverá tomar uma decisão em ação judicial movida com o propósito de anular a demarcação de área indígena feita com absoluta regularidade, apoiada em laudo antropológico e rigorosamente dentro da lei.

Trata-se do caso da área indígena Raposa/Serra do Sol, vizinha ao estado de Roraima, há séculos ocupada por etnias indígenas. A decisão que for tomada poderá ter o efeito gravíssimo de anular todas as demarcações de áreas indígenas feitas até hoje com rigor técnico e estrita obediência a regras constitucionais e legais.

Se isso ocorrer, haverá muitos conflitos e as conseqüências poderão ser gravíssimas, dando margem à acusação, já feita anteriormente, de que, no Brasil, se pratica o genocídio indireto.

Se o STF cumprir sua função de guarda da Constituição, isso será evitado.

Antes de tudo, dispõe a Constituição, no artigo 20, inciso XI, que são bens da União “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”. No artigo 231, são fixadas duas normas fundamentais relativamente a essas terras que são de propriedade da União.

O parágrafo primeiro do artigo 231 deixa claro o sentido dessa ocupação: “São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. O parágrafo segundo dispõe: “As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”.

Como fica mais do que óbvio, a ocupação indígena não se limita aos agrupamentos das habitações em que dormem, mas abrange toda a área onde os índios obtêm o indispensável para sua sobrevivência digna, colhendo os frutos da natureza, plantando, criando gado ou pescando, dependendo das condições de cada região.

Além disso, é na área circundante às habitações que o índio identifica, colhe e utiliza plantas medicinais, bem como o material necessário à edificação das casas e à fabricação de roupas, utensílios, enfeites e objetos destinados aos seus rituais, como também suas armas. Ainda mais, é nesse espaço circundante que eles enterram os seus mortos, pelos quais têm grande respeito e veneração.

Por tudo isso, a demarcação das terras indígenas é, necessariamente, de áreas contínuas, em rigorosa obediência à norma constitucional que define como indígenas todas as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, não havendo um só caso de ocupação de “ilhas”, deixando intervalos vagos, sem ocupação, entre um e outro espaço ocupado por aldeamentos.

Assim sendo, é absurda e inconstitucional a pretensão de anular a demarcação de áreas contínuas, abrindo espaço para que aventureiros sem escrúpulos, agredindo a Constituição, criem barreiras entre as aldeias da mesma etnia.

Artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo neste sábado (23/8).

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    é advogado, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, membro da Comissão Internacional de Juristas. É autor, entre outras obras, de O Futuro do Estado.

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