Maria da Penha

Lei Maria da Penha protege as mulheres na medida necessária

Autor

  • Carmen Hein de Campos

    é doutora em Ciências Criminais pela PUC-RS professora visitante no programa de pós-graduação em Direito da UFPel e integrante da Rede Latino-Americana de Acadêmicas e Acadêmicos de Direito (Red Alas).

22 de agosto de 2008, 13h35

Em artigo publicado na revista Consultor Jurídico em 11 de agosto de 2008 o juiz Marcelo Collombeli Mezzomo (Erechim, RS) expõe as razões pelas quais considera inconstitucional as medidas protetivas previstas na Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) e em consequência, não as concede.

Brevemente, o juiz Collombeli as entende inconstitucionais porque violariam o princípio da igualdade entre homens e mulheres, previsto no artigo 5º, inciso I, da Constituição Federal, pois segundo o magistrado “não há em todo o texto constitucional uma só linha que autorize darmos tratamento diferenciado a homens e mulheres quando em voga a condição de partes processuais ou vítimas de crime”. É exatamente isso que a Lei Maria da Penha faz, concede uma série de medidas de proteção em razão do sexo. Argumenta ainda razões de ordem funcional, já que as mulheres, não raras vezes, querem desistir da ação, ou desejam apenas dar um “susto” em seus parceiros, utilizando-se do sistema de justiça criminal. Por fim, sustenta que a proteção especial aumentaria a (re)vitimação feminina, e quem aplaude a diferenciação estabelecida pela lei apoiaria o machismo existente.

Feita essa pequena introdução, passo a analisar os argumentos do magistrado.

1. Procede o argumento de que a Constituição Federal estabelece o princípio da igualdade formal entre homens e mulheres, que proíbe a discriminação em razão de qualquer natureza, o que inclui a discriminação baseada no sexo. No entanto, a leitura que o magistrado faz do princípio da igualdade parece limitar-se à sua dimensão formal.

A igualdade, em sua dimensão jurídica, refere-se não apenas ao seu aspecto formal — igualdade perante a lei — mas também a seu aspecto substancial, o que reclama o reconhecimento das diferenças sociais. É o mandamento da igualdade substancial que autoriza a discriminação positiva, cujo objetivo é superar os limites da igualdade formal. O texto constitucional não menciona a possibilidade de discriminação positiva em razão da raça/etnia, por exemplo. No entanto, as ações afirmativas demonstram a aplicação da discriminação em razão de raça, idade, e até mesmo condição social.

A discriminação positiva tem por objetivo realizar o princípio da igualdade em sua dimensão substancial, do contrário, dito princípio consubstanciado na Constituição torna-se-ia letra morta. O sentido da discriminação positiva é neutralizar o desequilibrío fático que torna as pessoas substancialmente diferentes. Assim, a tutela de grupos através dos critérios de sexo, etnia, orientação sexual, deficiência, inimputabilidade e outros busca proteger grupos socialmente discriminados que de outra forma não teriam acesso a bens públicos.1

Essa dimensão positiva da discriminação constitui-se em uma obrigação de fazer, por parte dos poderes constituídos, em benefício de grupos sociais marginalizados ou fragilizados. Portanto, o princípio da igualdade deve ser entendido em sua dupla dimensão (formal e substancial), razão pela qual a discriminação é autorizada constitucionalmente para a plena realização desse princípio.

No que se refere à discriminação em razão sexo trazida pela tutela penal exclusiva estabelecida pela Lei Maria da Penha, contrariamente a posição do referido magistrado, ela tem de ser reputada constitucional. O argumento de que não há previsão constitucional para o tratamento diferenciado ou discriminador operado pela Lei Maria da Penha não se sustenta. Uma leitura da Lei conforme a Constituição deve, em primeiro lugar, atentar que ela se funda no parágrafo 8º do artigo 226, da Constituição Federal (que dispõe sobre dever do Estado de proteger a família, e cada um dos seus membros), na Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Convenção Cedaw) e na Convenção Inter-Americana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra Mulher (Conveção Belém do Pará).

Por força do parágrafo 2º do artigo 5º da CF, os direitos humanos estabelecidos em tratados internacionais ratificados pelo Estado brasileiro são parte integrante do capítulo dos direitos fundamentais. Nesse sentido, as disposições estabelecidas na Convenção Cedaw e na Convenção de Belém do Pará devem ser lidas como integrantes do texto constitucional. A Convenção Cedaw, em sua Recomendação-Geral 19 estabelece que a violência contra a mulher é uma forma de discriminação.

O artigo 4.1 da Convenção Cedaw autoriza os Estados partes a adorem medidas especiais para acelerar a igualdade de fato entre homens e mulheres, dispondo que tais medidas não serão consideradas discriminatórias. As medidas de proteção previstas na Lei são medidas especiais destinadas a prevenir a violência, bem como garantir a segurança da vítima.

A Convenção de Belém do Pará é ainda mais específica, pois destina-se a prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher em todos os âmbitos, inclusive no espaço doméstico. O artigo 7º da Convenção determina aos Estados partes adotarem medidas adequadas, inclusive legislativas, para modificar ou abolir leis e regulamentos vigentes que respaldem ou tolerem a violência contra mulher (d). Obriga, ainda, aos Estados partes estabelecer procedimentos justos e eficazes para a mulher sujeita a violência, inclusive, medidas de proteção, juízo oportuno e efetivo acesso a tais processos (f) (grifado).

A defesa da Constituição, em uma perspectiva do controle da constitucionalidade advogada pelo magistrado, requer também, o reconhecimento jurídico e a aplicação de todos os instrumentos de direitos humanos ratificados pelo Brasil. Não sem razão, o Comitê Cedaw que monitora o cumprimento das obrigações dos Estados partes da Convenção Cedaw, reteirou a necessidade de uma legislação específica para o combate à violência contra a mulher e, em seus Comentários Finais referentes ao Relatório Brasileiro apresentado em julho de 2006, elogiou a criação da Lei Maria da Penha e chamou a atenção para a necessidade de sua plena implementação.

A relutância em aplicar a Lei Maria da Penha talvez possa ser explicada pelo desconhecimento da violência de gênero em nossa sociedade e pelo senso comum teórico dos juristas (Warat). Ao desconhecer que a violência de gênero é estruturante das relações hierarquizadas entre os sexos, os operadores do direito desconhecem que ela produz uma vulnerabilidade específica. É exatamente essa situação que torna a natureza da violência doméstica distinta de todos os demais delitos. Esse desconhecimento tem como conseqüência decisões inadequadas que acabam por sustentar a aceitação social da violência contra as mulheres.

Três são as características fundamentais da violência doméstica: a) hierarquia de gênero; b) relação de conjugalidade ou afetividade entre as partes; e c) habitualidade da violência. A hierarquia de gênero implica na supremacia de um dos atores na relação e tem como conseqüência a negação ou submissão do outro. As relações hierarquizadas de gênero são fundadas socialmente e revelam a assimetria dos pares. Um dos pólos da relação (em geral o feminino) é invisibilizado ou inferiorizado, tornando-se o alvo majoritário de uma violência que tem sido justificada social e juridicamente.

A segunda característica diz respeito à relação existente entre as partes. Diferentemente de outros tipos de violência, a relação estabelecida entre os atores jurídicos é uma relação de conjugalidade ou afetividade, em geral constituída a longo prazo. A particularidade da relação afetiva entre o autor e vítima tem, historicamente, caracterizado essa violência como ‘privada’ (portanto não um delito), justificando a ausência ou insuficiência de proteção jurídica. Assim, os crimes de lesão corporal, ameaças e até mesmo tentativas de homicídio eram sistematicamente, desqualificados como menores.

A habitualidade é outra particular característica da violência doméstica. Os inúmeros registros de ocorrência reportados pelas mulheres nas delegacias de polícia demonstram um padrão sistemático de violência, por um lado, e a ausência de uma proteção efetiva por outro. A persistência da habitualidade de um padrão de relação violenta associada à relação afetiva entre as partes faz com que a resposta tradicional do ordenamento jurídico seja obscurecer a existência de direitos fundamentais das mulheres, demonstrando uma incapacidade de entender o caráter singular dessa violência.

A grande maioria dos operadores de direito desconhece essas características da violência que estão associadas ao denominado ciclo da violência doméstica, fenômeno que determina as inúmeras idas e vindas, renúncias, solicitações de retiradas das denúncias e na conhecida frase “eu queria apenas dar um susto nele”.

2. O argumento “puramente funcional” de que o aparelho de estado é movimentado sem uma “prova consistente” a não ser a palavra da “pretensa” vítima, e que a medida é concedida sem que o outro lado seja ouvido, violando-se o princípio do contraditório é, no mínimo, estranha. Assim fosse, nenhuma medida liminar poderia ser concedida em processo algum, pois em que pese a ameaça ao direito (fumus boni iures), nenhum magistrado poderia autorizá-la sem ouvir a outra parte.

Sabe-se que quando as mulheres decidem recorrer ao Poder Judiciário é porque entenderam ser esse o último recurso para cessar a violência. A recusa de protegê-las através das medidas protetivas pode colocar suas vidas em risco. Não raras vezes, após o registro da ocorrência ou mesmo após uma audiência, as mulheres continuam ameaçadas e muitas delas são mortas. Ao não conceder a medida protetiva que pode salvar a vida de uma mulher em situação de risco, o magistrado assume o risco de produzir um dano irreversível. Quem irá responder pela irresponsabilidade do Poder Judiciário? Quem responde pela morte de uma mulher que teve negada uma medida protetiva?

3. A legislação penal estabelece tutelas específicas, discriminando, por exemplo, em relação em relação ao sujeito passivo que sofre a ofensa, agravando a pena quando o crime é cometido contra pessoa enferma ou funcionário público, ou no crime de injúria racial. O reconhecimento de uma vulnerabilidade específica (a violência praticada por parceiro íntimo) é marca distintiva da Lei definindo a abrangência da tutela penal exclusiva da mulher. É claro que os homens também podem ser submetidos à violência doméstica, mas inúmeros estudos demostram que são as mulheres as vítima majoritárias desse tipo de violência. Assim, a discriminação por intermédio dessa tutela penal específica não está em dissonância com a legislação penal.

O tecnicismo jurídico utilizado para negar validade à Lei Maria da Penha é exemplo de um cinismo jurídico, o mesmo cinismo que criou a tese da legítima defesa da honra para absolver homicidas. A utilização de um argumento jurídico aparentemente neutro, mas que na verdade é gendrado, produz e reproduz o lugar da mulher no direito. Desconhece que a cidadania feminina passa necessariamente pelo direito de viver livre de violência dentro de casa, e que a existência de uma violência específica viola, no nascedouro, esse direito fundamental.

A busca pela igualdade de gênero requer o reconhecimento dessa desigualdade fática alimentada pela cotidiano da violência doméstica. A Lei Maria da Penha acolhe essa desigualdade e protege as mulheres na exata medida em que elas, ao acionarem o Poder Judiciário, reconhecem-se enquanto sujeitos de direitos.

Nota de rodapé:

1. Veja-se a lei de quotas partidárias (Lei 9.504/97), a Lei 11.096/05 (Programa Universidade para Todos) e lei de reserva de vagas para deficientes (Lei 8.112/90).

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