Presepada da “desanistia”

Revisar a Lei de Anistia é ato de selvageria jurídica

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20 de agosto de 2008, 11h32

Relator do “caso das algemas”, o ministro Marco Aurélio disse, certa vez, que sua imposição a conhecido político fora “uma presepada”. Que certos policiais e bacharéis de atuação política, mas sem vivência do ramo dêem-se a elas é corriqueiro. Mas, agora, há pessoas de formação e intenções boas defendendo a revogação da anistia do final da ditadura militar.

A discussão seria de interesse se o Brasil não tivesse Constituição. É que, como a maioria dos países civilizados, nós também adotamos a regra de que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” (artigo 5º, XL). Isso não foi novidade de 1988, mas já existia no Brasil desde o Império e constava do Código Penal do Estado Novo como figura no atual. Mas ela vem de antes: Após a queda da Bastilha a declaração dos direitos da Revolução estabeleceu essa garantia (artigo 8). A Convenção Americana de Direitos Humanos proclama-a no artigo 9º. Trata-se de um preceito inerente à civilização.

A lei, como regra geral, não retroage; como exceção, a lei penal retroage, só para beneficiar o indivíduo. Esta é uma das chamadas “cláusulas pétreas”, indiscutíveis, da Constituição. A civilização não admite que alguém seja punido em termos só criados depois, nem por fato que deixou de ser crime.

Por isso, nenhum benefício a acusado pode ser “cassado” depois. Anistia é benefício dado a quem é, foi ou pode vir a ser acusado e, pois, não se revoga. A lei que hoje revogar a que a concedeu valerá daqui para frente, não se aplicando aos já beneficiados. “Desanistiar” é ato de selvageria jurídica, incompatível com nosso estágio de desenvolvimento político e social.

Talvez por isso, tenta-se outro caminho: dizer que a lei da anistia não deveria ter sido lida da maneira como o foi nos últimos 29 anos pois, na verdade, nunca anistiou os torturadores. Mas essa tese não vinga, em termos jurídicos.

É que, no Brasil, a punibilidade pela prática de qualquer crime se extingue pela prescrição no prazo máximo de 20 anos, com exceção do racismo ou da ação de grupos armados contra o Estado democrático (artigo 5º, XLII e XLIII). A imprescritibilidade, criada pela Carta de 1988, só vale a partir de sua vigência.

Como a tortura na repressão política é anterior a 1988 e mais de 20 já passaram, os delinqüentes têm assegurada a prescrição. Ainda que se tente enquadrar os torturadores na categoria dos “grupos armados”, o prazo já decorreu, porque anterior à norma penal prejudicial para o acusado. E não cabe argumentar que a Constituição cidadã começasse por renegar seus próprios preceitos, criando uma retroatividade que expressamente repudiou.

Nem de todo impunes, contudo, ficaram os valentes agressores de pessoas amarradas. Conquanto nossa sociedade tenha sido mais tolerante do que a argentina, eles ficaram relegados à planície de suas carreiras. Não sabiam que quem pede a outrem que faça serviço sujo despreza não só o serviço, mas também quem o presta. Por isso, os militares que se envolveram nessa torpeza jamais viram a cor do generalato, como os policiais nunca chegaram à classe especial.

Será que esses covardes merecem que se rasgue o ordenamento jurídico? De modo algum. Vamos ficar com a plenitude da Constituição e deixá-los fenecer no mesmo esterco em que um dia vicejaram, contemplados pelo disfarçado desprezo de seus ex-chefes e companheiros. O resto é presepada.

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