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Entrevista: Alexandre Clápis, advogado

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17 de agosto de 2008, 0h00

Alexandre Clápis - por SpaccaSpacca" data-GUID="alexandre_clapis.jpeg">Comprar um imóvel é uma atividade de risco. É o que adverte o advogado Alexandre Clápis, especialista em Direito Imobiliário. Isso porque, conta ele, quem compra um imóvel nunca terá a certeza de que aquele bem não será alvo de penhora por conta de dívida do ex-proprietário ou da construtora.

O Direito Imobiliário é uma das áreas mais aquecidas no mercado de trabalho dos advogados. Cada vez mais, eles são chamados para intermediar compras e procurar garantir que nada coloque em risco o patrimônio do comprador, seu cliente. “É um bom mercado de trabalho, mas é bastante tenso”, considera Clápis. Nunca dá para ter 100% de garantia de que o imóvel adquirido não será alvo de penhora.

O advogado procura se munir de diversos documentos para provar a boa-fé do cliente na operação imobiliária para que aquele bem fique de fora de eventuais penhoras no caso de o antigo proprietário sofrer alguma ação de execução.

Mas a Justiça, especialmente a do Trabalho, não parece muito interessada na boa-fé do comprador. Some-se a esse desinteresse a possibilidade de penhora online e o risco da operação aumenta consideravelmente. “Em questão de segundos, a propriedade pode ser alvo de uma penhora que o proprietário nem sabe de onde veio”, diz.

Essa insegurança jurídica não impede, no entanto, o crescimento do mercado imobiliário. Segundo Alexandre Clápis, nos últimos dois anos, a movimentação das operações imobiliárias no Brasil saltou de R$ 9 bilhões para R$ 20 bilhões.

Em entrevista à revista Consultor Jurídico, Clápis falou dos riscos que envolvem a compra de imóvel e os cuidados necessários para conseguir uma mínima garantia. Ele explicou também quais são as novas formas de contrato no mercado imobiliário, como o built-to-suit e o sale and lease back, que acompanham a tendência das empresas de não mais comprar a sua sede, e sim alugar e deixar o capital disponível.

Alexandre Clápis tem 38 anos e começou a sua carreira na advocacia no escritório Machado, Meyer, Sedacz e Opice Advogados, em São Paulo, como estagiário, em 1996. Saiu de lá para auxiliar o pai, aprovado como titular de um cartório de registro de imóveis.

Passou os últimos oito anos trabalhando no cartório, onde adquiriu grande experiência nos meandros do Direito Imobiliário. Em fevereiro passado, voltou ao Machado, Meyer, já como sócio e responsável pela área imobiliária. É também conselheiro do Instituto de Registro de Imóveis do Brasil.

Leia a entrevista

ConJur — É seguro comprar um imóvel no Brasil?

Alexandre Clápis — O registro de imóvel no Brasil nunca é definitivo. É sempre uma prova de compra relativa. Quem compra um imóvel faz a escritura de compra e venda, registra, mas, mesmo assim, nunca está imune a uma penhora trabalhista, por exemplo, contra o antigo proprietário, que recaia sobre este imóvel.

ConJur — Como é em outros países?

Alexandre Clápis — Na Alemanha e Espanha, o registro é absoluto, ou seja, não é necessário o contrato de compra e venda. Na França, Portugal e Itália, a prova da transmissão do imóvel é só o contrato. O Brasil está no meio termo desses dois grupos: exige o contrato e o registro, mas ambos têm força relativa como prova e podem ser questionados.

ConJur — Mas há, pelo menos, jurisprudência que proteja o comprador de boa-fé de uma eventual penhora do imóvel por causa de dívida do antigo proprietário?

Alexandre Clápis — Por incrível que pareça, não. O juiz trabalhista simplesmente não quer saber da boa-fé. O comprador faz a pesquisa do proprietário do imóvel antes de comprar, registra tudo direito, mas, se o juiz achar que houve intenção de fraude do antigo proprietário, ele descaracteriza a venda e penhora o imóvel.

ConJur — Como se prevenir, então, na hora de comprar um imóvel?

Alexandre Clápis — Essa é a grande função do advogado. Ele tem de exaurir ao máximo as informações do vendedor, buscar certidões da Justiça do Trabalho em todas as localidades em que eventualmente o proprietário possa ter passado. Isso é uma loucura porque o sistema de informática do Judiciário não é integrado no Brasil. Posso ter um imóvel em São Paulo e ter feito dívidas em Manaus, por exemplo. Como vou pedir certidão em todos os estados? Não dá.

ConJur — Mesmo com todas essas certidões obtidas pelo comprador, se um dos antigos proprietários tem dívidas, o imóvel pode ser penhorado?

Alexandre Clápis — Se a venda foi feita no curso da execução, sim. A boa-fé no Direito brasileiro sempre existiu como um princípio. Hoje, foi trazida expressamente para o Código Civil e os tribunais começam a considerá-la nas relações imobiliárias. Mas, de maneira geral, os juízes ainda não têm muita paciência para isso não, principalmente os juízes do Trabalho.


ConJur — Mas isso transfere ao comprador um ônus que não é dele.

Alexandre Clápis — O Brasil precisa dar um passo a frente. Essa situação é ainda um resquício do sistema de sesmarias, quando a distribuição de terras não tinha controle e qualquer um podia receber do rei a sesmaria e tirar de lá o então proprietário. Essa bagunça veio para o Código Civil de 1916 e foi mantida no de 2002. Esse ponto no Código novo é o mais absurdo. Ele exige, para os contratos, boa-fé e probidade. Depois, diz que, independente da boa-fé, pode desconsiderar um contrato de compra e venda. Isso é uma aberração. A pessoa toma todos os cuidados, tem boa-fé, faz o registro do imóvel e, depois, o próprio Código diz que ela pode ficar a ver navios.

ConJur — O que poderia ser feito para mudar isso?

Alexandre Clápis — A legislação brasileira precisa trazer para o nosso sistema o princípio da fé pública registrada, o que significa dizer que, a partir do momento em que todas as diligências necessárias para aquisição do imóvel foram feitas, como a escritura pública e certidões do vendedor, o registro tem de ser feito com uma força maior. Uma vez registrado, acabou a discussão. Tinha de ser assim.

ConJur — Tem algum projeto nesse sentido no Congresso?

Alexandre Clápis — Há o Projeto de Lei 3.077, que melhora um pouco a situação, mas ainda não trata da fé pública como deveria. O Brasil poderia, por exemplo, nas incorporações imobiliárias, adotar a fé pública registrada. O empreendedor, quando vai fazer uma incorporação, precisa levar diversos documentos para o cartório de imóveis. O registrador analisa esses documentos e, se acha que a operação pode ter riscos, não registra o imóvel. Se registrou, é porque já analisou tudo. Aí é que deveria incidir o princípio da fé pública registrada.

ConJur — Por que o Brasil não adota esse princípio?

Alexandre Clápis — Porque o Brasil é muito grande. Na área rural, há lugares em que é difícil saber exatamente a dimensão do imóvel. A fé pública, nestas áreas, impediria quem teve sua área invadida por outro de questionar isso. Porque, uma vez feito o registro, acaba qualquer possibilidade de discussão. A situação é caótica porque não arruma o lado rural e prejudica o crescimento com rapidez e segurança do lado urbano. Mas as regras têm de ser as mesmas para a área urbana e rural.

ConJur — Se o imóvel é considerado bem de família, ainda assim dívida do antigo proprietário pode resultar na sua penhora?

Alexandre Clápis — Depende. Em geral, não. Mas há exceções, por exemplo, quando as dívidas são relacionadas ao imóvel, como IPTU.

ConJur — Mesmo que as dívidas tenham sido deixadas pelo ex-proprietário, e não pelo atual?

Alexandre Clápis — Essas dívidas decorrentes do próprio imóvel — IPTU e condomínio, por exemplo — são chamadas de propter rem, ou seja, acompanham o bem, independentemente de quem seja o titular da propriedade.

ConJur — Essa insegurança na compra e venda de negócios prejudica o setor imobiliário?

Alexandre Clápis — As operações imobiliárias estão com valores astronômicos e ainda não há segurança jurídica de que não vão ser questionadas no futuro. Mesmo assim, o setor imobiliário vai que vai. Nos dois últimos anos, no Brasil, tivemos um salto de aproximadamente R$ 9 bilhões para R$ 20 bilhões nas operações imobiliárias.

ConJur — Como é a penhora online de imóveis?

Alexandre Clápis — Já existe lei com essa previsão, mas ainda precisa de regulamentação. Em São Paulo, está sendo feito um sistema para integrar os cartórios e as Varas Cíveis, por exemplo. O juiz poderá verificar nesse sistema se tem imóveis em nome do devedor e determinar a penhora com sua assinatura digital. Quando isso estiver implantado, será bem mais célere.

ConJur — Suspender a penhora também será célere assim?

Alexandre Clápis — Liberar um imóvel é um transtorno. Só pode ser feito com decisão judicial transitada em julgado.

ConJur — Como a penhora online vai influenciar os negócios imobiliários?

Alexandre Clápis — Em questões de segundos, a propriedade pode ser alvo de uma penhora que o proprietário nem sabe de onde veio. Quem vai comprar um imóvel pode conseguir uma certidão que diz que está tudo quitado, que vale por 30 dias, virar as costas e o imóvel ser penhorado. O comprador só vai ficar sabendo quando for registrar a escritura. Isso porque temos essa forma rápida e moderna de penhora online e uma lei que é da década de 80. O sistema tem, portanto, diversas brechas que prejudicam o adquirente de boa-fé. Uma idéia para resolver isso seria dar reserva de prioridade para quem conseguiu a certidão, durante os 30 dias de sua validade. Neste caso, enquanto não vencer a certidão, nada pode acontecer a aquele imóvel.


ConJur — Quem compra apartamento de grandes construtoras também corre o risco de sofrer com dívidas do antigo proprietário do terreno ou quem responde é a construtora?

Alexandre Clápis — Quando o apartamento é comprado ainda em fase de construção, ele pode ser registrado como fração ideal. Quando ele fica pronto, o registro passa a ser da unidade autônoma. Esse registro é importante porque, se a empresa quebra, como aconteceu com a Encol, quem não tem contrato não tem preferência na massa falida. Se o comprador não registra a sua parte e a construtora sofre uma penhora, a parte não registrada vai ser penhorada como patrimônio da construtora. Se a construtora comprou um terreno e esse terreno foi alvo de penhora, ela pode pagar a dívida do antigo proprietário ou então perder o imóvel. Por isso, é importante também investigar a construtora que está vendendo imóvel para saber se tem credibilidade ou não.

ConJur — Além da insegurança jurídica, quais outros obstáculos para os grandes empreendimentos imobiliários?

Alexandre Clápis —O Direito Ambiental hoje não é uma coqueluche à toa. No nosso escritório, há um departamento de Direito Ambiental que trabalha sempre com o departamento de Direito Imobiliário. Para um grande empreendimento, é preciso analisar desde possibilidades de contaminação do solo até a necessidade de preservar determinada área. A questão ambiental, então, está sempre ligada, o que é muito saudável porque o crescimento imobiliário é bom, gera emprego, habitação e dinamiza o mercado, mas é importante também cuidar para que a cidade cresça de forma ordenada.

ConJur — A legislação do setor imobiliário é atual?

Alexandre Clápis — Não. A legislação do setor imobiliário é um complexo de leis. A principal é o Código Civil. Na parte de registro, tem lei que é de 1973.

ConJur — O que é contrato build-to-suit?

Alexandre Clápis — O Direito Imobiliário mudou muito e está mais sofisticado. O build-to-suit é um contrato pelo qual uma empresa adquire um imóvel, constrói de acordo com a necessidade de determinada empresa e aluga para ela. O aluguel serve como uma forma de ressarcimento desse investimento que a construtora fez. Já foi o tempo em que as empresas tinham sede própria. Hoje, isso não já é mais vantajoso. No build-to-suit, o empresário tem o espaço ajustado às suas necessidades. Economiza em espaço, em dinheiro e também em impostos, pois o valor do aluguel entra como despesas na contabilidade.

ConJur — E o contrato sale and lease back?

Alexandre Clápis — O empresário vende seu imóvel para outra pessoa e aluga o mesmo imóvel dessa pessoa. A idéia é desmobilizar esse capital, que estava parado no imóvel, e investir. Os bancos tiveram que fazer isso porque o Banco Central determinou um limite para imóveis. Eles tiveram de vender sedes e alugá-las.

ConJur — Quais são as vantagens da alienação fiduciária?

Alexandre Clápis — A Lei 9.514/97, que completa 11 anos, revolucionou o mercado de financiamentos. Com as hipotecas, o sistema de garantias legais do financiamento era vinculado ao Poder Judiciário. Em caso de inadimplência, o credor precisava ir à Justiça e esperar mais de oito anos para recuperar o crédito. Tudo isso tornava os financiamentos muito caros. Na alienação fiduciária, a execução da garantia não depende de interferência do Judiciário. Se o devedor não paga a dívida, ele é notificado. Se não pagar nos próximos 15 dias, o imóvel, que é a garantia do financiamento, vai para leilão. A alienação fiduciária é extremamente saudável para o sistema financeiro. Alivia o Poder Judiciário e rapidez para recuperar um crédito depende só do credor.

ConJur — Imóvel objeto de alienação fiduciária pode ser protegido como bem de família?

Alexandre Clápis — Se o imóvel é a garantia da dívida, não pode ser considerado bem de família. Não há nada na lei e nem na jurisprudência que o proteja. Caso contrário, a garantia da alienação fiduciária seria inócua em muitos casos e dificultaria os empréstimos.

ConJur — Qual a sua opinião sobre a prisão civil para devedor em alienação fiduciária?

Alexandre Clápis — É muito radical e não deve ocorrer. Essa forma de recuperar o dinheiro vem do Direito romano, quando o devedor era a garantia da obrigação e, se não pagasse, virava escravo do credor. Isso já foi superado. Hoje, a garantia é o patrimônio. O departamento jurídico da empresa que vai dar o financiamento tem de analisar se o devedor terá condições de pagar a dívida. Prender por não pagar é impossibilitar o cumprimento da obrigação.

ConJur — Em julho, foi sancionada a Lei 13.160/08, de São Paulo, que permite o protesto de quem deixa de pagar condomínio. O que o senhor acha dessa lei?

Alexandre Clápis — Ela é muito útil para a sociedade de condomínios. Colocar o nome do devedor em cadastro de inadimplentes motiva o pagamento. Eu morei em um prédio onde um dos moradores estava há 10 anos discutindo na Justiça uma ação de cobrança de condomínio. Quem paga por essa demora são os outros moradores, que pagam o condomínio em dia.

ConJur — Isso não prejudica pessoas de boa-fé que, por alguma eventualidade, não conseguiram pagar o condomínio?

Alexandre Clápis — Pois é, mas é difícil estabelecer uma regra que possa dimensionar esse tipo de situação. São circunstâncias da vida. Mas a lei é importante porque, sem ela, o condomínio não pode fazer nada: ele não pode cortar a prestação de serviços para o morador inadimplente e, enquanto tenta cobrar a dívida na Justiça, quem paga são os outros moradores.

ConJur — Essa lei vale só para São Paulo. Como funciona em outros estados?

Alexandre Clápis — A lei paulista é só uma interpretação. A lei de protestos já fala que podem ser protestados títulos de créditos e outros documentos de dívida. Outros estados, como o Rio Grande do Sul, já entendiam que o condomínio e o aluguel estavam abrangidos nos outros documentos de dívida. Em São Paulo, para chegar a esse entendimento, foi preciso de previsão expressa.

ConJur — Como está o mercado de trabalho para o advogado no Direito Imobiliário?

Alexandre Clápis — É um bom mercado, mas também é bastante tenso. Está aquecidíssimo e os salários dispararam, inclusive para advogados com poucos anos de experiência.

ConJur — Está faltando especialista na área, então?

Alexandre Clápis — Há bons profissionais, mas poucos especialistas. Direito Imobiliário é uma área que tem muito a crescer ainda.

ConJur — Que conselho o senhor dá para o estudante que quer trabalhar com Direito Imobiliário?

Alexandre Clápis — Ele tem que começar a dormir com o Código Civil. Estudar bastante a legislação civil. Tem de ser bastante detalhista também e desconfiar de tudo. Tem que ter um olhar atento e investigativo.

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