Lei Maria da Penha

Não sou contra Lei Maria da Penha, mas a favor da Constituição

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11 de agosto de 2008, 15h17

Há alguns dias vem se desenrolando uma polêmica envolvendo decisões do signatário em relação à aplicação da Lei de Violência Doméstica, conhecida como Lei Maria da Penha, notadamente envolvendo a discussão acerca da sua constitucionalidade.

Independentemente de se criticar ou apoiar a posição pela inconstitucionalidade, é necessário antes se conhecer os motivos do surgimento desta questão. É com esta finalidade, de aproximar o público da discussão que se trava no momento, que me proponho a tecer algumas linhas e convidá-los a uma reflexão.

Uma primeira pontuação, de extrema importância, reside em ressaltar o fato de que, apesar complexidade da linguagem utilizada, os problemas jurídicos costumam enfeixar questões singularmente singelas. Há, eu diria, uma tendência por parte dos profissionais jurídicos em manter as demais pessoas alheias ao Direito, quiçá como uma forma de mantermos nosso status de operadores de um “saber oculto”.

Na verdade, Direito é, antes de tudo, bom senso.

No caso da Lei Maria da Penha e da polêmica instaurada com minhas decisões, que extinguiram as medidas de proteção, se me afigura evidente que estamos diante de uma questão singela a qual me proponho a trazer ao leitor de forma bastante simples e inteligível.

Três ordens de questões me fizeram tomar posição pela extinção das medidas protetivas ajuizadas com embasamento na sobredita lei.

As medidas protetivas, só para que se entenda, correspondem a um dos desdobramentos que um fato envolvendo violência doméstica, e tendo a mulher como vítima, pode ter. A outra é a penal e processual penal. As medidas protetivas que ostentam natureza civil, ou seja, não criminal, são processadas de acordo com o que determina a Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha), subsidiada pelo Código de Processo Civil.

Tendo em vista que não há, em regra, nas comarcas do interior, demanda de processos a justificar a instauração de juizados de violência doméstica, que existem nas capitais, a competência para processamento também das medidas protetivas, que vão desde a prestação de alimentos até o afastamento do agressor do lar ou determinação de distância mínima em relação à ofendida e/ou parentes, é do juiz criminal. Ainda assim, ostentam elas natureza civil.

Funcionalmente, materializam-se em expedientes que, autuados, são encaminhados pela autoridade policial (que é somente o Delegado de Polícia) para o serviço de plantão, que também, como os demais juízes exerço, ou para a distribuição do Fórum, devendo ser decididas de forma liminar, pelo plantonista ou juiz com atribuição.

Feita esta rápida introdução, esclareço que a primeira ordem de questões que embasam a minha rejeição aos procedimentos de medidas protetivas diz respeito à sua inconstitucionalidade. O que é esta palavra que volta e meia é mencionada?

A Constituição é literalmente a “lei maior de um país”. É nela que o poder estatal é estruturado, a atividade política regulada e estabelecidos os direitos e garantias fundamentais do cidadão. Aliás, os direitos e garantias fundamentais constituem os direitos de primeira geração, que surgiram com o constitucionalismo liberal, do século XVIII, com a Carta da Virgínia (Estados Unidos) e com a Constituição Francesa.

Hoje, de acordo com a universalmente aceita teoria da pirâmide constitucional, criada pelo jurista austríaco Hans Kelsen, podemos visualizar a Constituição como sendo o pináculo, o ponto mais alto da pirâmide legislativa, servindo ela como fundamento de validade e eficácia de todas as outras normas. Abaixo dela, vêm todas as outras espécies legislativas como, por exemplo, leis complementares, leis ordinárias, medidas provisórias, regulamentos etc.

Todas as demais normas, sejam quais forem, têm de, necessariamente, se conformar à Constituição para que possam ser “constitucionais”. Caso contrário, elas são “inconstitucionais”, o que implica sua nulidade. De duas formas essa conformação deve ocorrer. As leis têm de ser formalmente constitucionais, ou seja, devem ser produzidas de acordo com o processo legislativo estabelecido na Constituição para cada espécie. Nele é estipulado quem tem a possibilidade de iniciativa de proposição e todo o procedimento de verificação, votação e aprovação de uma lei.

Também devem ser materialmente constitucionais, ou seja, devem ter conteúdos que não contrariem disposições constitucionais.

O controle desta conformidade se chama Controle de Constitucionalidade. Aqueles que tiverem curiosidade acerca do que ele representa e como funciona em pormenores, podem consultar texto de minha autoria, intitulado “Introdução ao Controle de Constitucionalidade, Difuso e Concentrado”, que foi publicado na Revista Forense, nº 389, e que também pode ser acessado pela internet.


Pois bem, no sistema jurídico brasileiro, existem duas formas de controle de constitucionalidade exercido pelo Poder Judiciário. Uma é chamada difusa, indireta ou concreta. A outra é a forma concentrada, direta ou abstrata.

A difusa é exercida por todos os juízes diante dos casos concretos que julgam ou apreciam, bem como pelo Supremo Tribunal Federal, através do recurso extraordinário, que pode ocorrer, presentes os pressupostos, em qualquer processo.

A concentrada é exercida pelo Supremo Tribunal Federal, em relação à Constituição Federal, e pelos Tribunais de Justiça, em relação às Constituições Estaduais. Neste caso, a atividade jurisdicional é provocada, principalmente, através das Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade, conhecidas como ADI, e pelas Ações Declaratórias de Constitucionalidade, chamadas ADC. Em ambos os casos, o rol de pessoas e entidades que podem propô-las é bastante restrito. O processo concentrado tem como única finalidade a aferição de constitucionalidade de uma lei.

Especificamente no caso da lei de violência doméstica, a questão toda gravita em torno do artigo 5º, inciso I, da Constituição Federal. Diz ele: “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.

Não é preciso formação jurídica para se ver claramente que duas conclusões podem ser extraídas da interpretação do citado inciso. Primeiro, estabeleceu ele a regra da igualdade entre homens e mulheres. Segundo, afirmou que esta igualdade seria regulada pela própria Constituição, exclusivamente.

Destas duas conclusões, uma terceira pode ser, também de forma fácil, extraída, qual seja a de que somente as desigualdades estipuladas no próprio texto constitucional podem existir validamente. Os desiguais devem ser tratados de forma desigual quando e na medida em que o permita o texto da Constituição.

Ora, não há em todo o texto constitucional uma só linha que autorize darmos tratamento diferenciado a homens e mulheres quando em voga a condição de partes processuais ou vítimas de crime. É exatamente isso que a lei de violência doméstica faz: concede uma série de instrumentos de proteção à mulher somente tendo em vista o sexo. A violência doméstica cometida contra a mulher enseja medida protetiva, contra homens não. Há ainda, uma série de diferenças em relação ao processo criminal, até mesmo em questão de competência do órgão jurisdicional e espécies procedimentais.

Se não há autorização na própria Constituição, e lembremos que a igualdade é “nos termos desta Constituição”, a lei ordinária 11.340/06 afronta o artigo 5º, inciso I, da CF/88, sendo inconstitucional e, portanto, visceralmente nula. Diversamente, quando vemos, por exemplo, diferenças no tempo de serviço para aposentadoria menor para as mulheres, ou na existência de licença maternidade com prazo maior, estamos diante de situações que a própria Constituição estabeleceu, diferenças que são, por conseguinte, constitucionais e válidas.

Tem se invocado, então, o fato de que os idosos e as crianças e adolescentes também têm tratamento diferenciado, com a edição dos respectivos estatutos, os quais nunca teriam sido questionados. Ora, esta premissa é incorreta, uma vez que idosos e crianças e adolescentes tem previsão constitucional de tratamento diverso, coisa que, repito, inexiste para as situações da lei Maria da Penha.

Diante deste quadro, como magistrado, sou obrigado a efetuar a análise de constitucionalidade da lei, a “filtragem constitucional”, e sendo a lei, porque inconstitucional, inválida, não resta outra alternativa que não seja a extinção dos expedientes a ser decretada de ofício, pela inconstitucionalidade do fundamento jurídico da causa de pedir.

Uma segunda razão é de ordem puramente funcional. Muitas pessoas que dirigiram críticas ao meu entendimento desconhecem a realidade diária de aplicação desta lei. Normalmente os expedientes nos chegam sem prova alguma que não seja a palavra da (pretensa e auto-afirmada) vítima. Incidentes de pequena monta ensejam toda uma gama de pedidos. Movimenta-se o serviço público, envolvendo polícia civil, Ministério Público e Poder Judiciário, neste último caso um juiz e um servidor, em regra.

A medida é apreciada sem ouvir o outro lado. Onde fica o direito ao contraditório e à ampla defesa, previsto igualmente no texto constitucional, artigo 5º, incisos LIV e LV, da Constituição Federal de 88? Quando excepcionado, há que haver um mínimo de respaldo probatório inicial.

Deferida a medida de afastamento do lar, não raras vezes quando o oficial de justiça chega para cumpri-la, encontra a pretensa vítima reconciliada com o acusado agressor, ambos “tomando chimarrão na porta de casa” . Ou então lhes é revelado, pela sedizente vítima, que “queria apenas dar um susto”. Estas situações eu não as estou inventando. Me foram reveladas e confirmadas pelos oficiais de justiça, pessoas que acompanham de perto o problema. Por vezes, tem o servidor de se descolar, interior afora, longas distâncias para, chegando ao local, constatar situações assim. Quem paga por todo este gasto inútil? Os impostos do contribuinte. Isso sem falar que o tempo gasto para analisar situações como esta deixa de ser utilizado em outras situações de suma gravidade.


Diariamente verificamos concretamente a utilização irresponsável da lei para as mais variadas finalidades, desde conseguir uma separação de corpos ou alimentos, que poderiam ser perfeitamente solicitadas por demanda judicial na Vara de Família (3ª Vara Cível), ou até mesmo como mecanismo de pressão.

Marcada a audiência, no mais das vezes, a pretensa vítima roga para que o procedimento não seja levado adiante, pois o marido ou companheiro “é um santo homem, e só fica ruim quando bebe”, e não poucas vezes se retrata, asseverando que as coisas não foram exatamente como declinadas por ela inicialmente.

O quadro é ainda mais grave quando verificamos que todas as medidas de proteção previstas na mencionada lei poderiam ser, como já referi, obtidas e de forma igualmente célere, através de ações judiciais, já possíveis antes nos termos da legislação processual civil em vigor. Por isso reafirmo: a lei choveu no molhado!

Vejo-me compelido a dar razão a um oficial de justiça de Sapiranga (RS) que, em e-mail de apoio, mencionou que crê, por sua experiência profissional, que a nossa população não está preparada para uma lei desta espécie, pois desconhece as graves conseqüências que decorrem de um boletim de ocorrência.

O que se fez foi tomar uma realidade de situações pontuais, nas quais o aparato estatal não consegue responder com a necessária celeridade, considerada a legislação processual que havia, e passar a ter essa como uma regra para todos os Estados da Federação. Esta não é a realidade aqui no Rio Grande do Sul.

Uma terceira ordem de questões é jurídico-filosófica. É que me parece de uma clareza meridiana que, partir do pressuposto da presunção das mulheres como pessoas fragilizadas e vitimizadas, antes de protegê-las, implica dar azo, dar continuidade e fomentar uma visão machista, que apregoa exatamente isso, vale dizer, que as mulheres têm menos capacidade e têm que ser tratadas de forma diferenciada. Nada mais falso.

Hoje as mulheres são chefes de muitos lares. Colaboram decisivamente na vida econômica das famílias e do país, correspondendo a mais da metade da força de trabalho do Brasil (ad exemplum, mais da metade dos magistrados gaúchos são mulheres). Não são pessoas de menor capacidade que precisem de um “tutor estatal” a presumi-las inaptas e indefesas.

A mulher não precisa de protecionismo, precisa de reconhecimento. Reconhecimento da sua condição de igual ao homem, e igualdade deve ser, em tudo, salvo naquilo que a própria Constituição ressalvar, e sempre levando em conta não o sexo em si, diretamente, mas condições que podem ter relação com ele.

Em síntese, quem aplaude e apóia a diferenciação sem razão, aplaude e apóia o machismo, porque está sustentando a diferenciação onde ela não deveria existir, não mais hoje.

Ademais, a dor e a humilhação de quem sofre violência em sua casa, verbal ou física, não são maiores em uma mulher do que em um homem. Nessas horas deve haver pessoas, cidadãos, não homens e mulheres.

Estes, em linhas gerais, são os motivos que me levaram a tomar as decisões que tenho tomado. Não sou contra nada e nem ninguém. Sou a favor da Constituição, pois quando ela é violada, se abrem as portas para o totalitarismo e para a negação do Estado de Direito.

Concito a todos que meditem sobre a questão e se posicionem de forma consciente, porque cidadania não é só votar, é participação democrática e efetiva na vida política e jurídica da nação, e todas as leis, diretamente ou indiretamente, têm reflexos sobre nossas vidas. Cada um de nós, como responsável pelo legislador, é também responsável pelas leis que ele produz e pelas conseqüências, boas e ruins, presentes e futuras, diretas ou indiretas, que delas dimanam, nas nossas vidas e nas vidas de outros.

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